quinta-feira, janeiro 06, 2011

As origens do "Paradigma Disney": arquétipos na comunicação globalizada


O “Paradigma Disney” é um exemplo dessa forma globalizada de explorar os arquétipos, ao mesmo tempo repetitiva e transformadora, ao confinar os símbolos do insconsciente coletivo na ideologia do mundo globalizado e seus valores corporativos: individualismo, empreendedorismo, mobilidade social, inovação e relativismo ético e moral.


Em uma postagem do ano passado falávamos sobre a habilidade das animações norte-americanas, voltadas para o público infantil, de tornar divertidos temas trágicos, pesados e adultos (para ver clique aqui). Para ficarmos nos exemplos das produções dos Estudios Disney, desde Bambi (onde o protagonista perde a mãe de forma cruel) até Wall-E (ficção científica cínica e dark) as animações dos estúdios norte-americanos exercitam essa capacidade de fazer crianças rirem do cruel e do trágico.


Na última postagem, quando analisamos o filme “Tron: O Legado”, também da Disney, discutimos como uma produção comercial de entretenimento explora uma complexa simbologia alquímica (homem primal, Anthropos, casamento alquímico etc.). Essas duas reflexões nos conectam com as discussões em torno do chamado “Paradigma Disney” e dos estudos sobre a morfologia e estrutura das fábulas e contos de fada.

A década de 80 foi o divisor de águas na história da indústria do entretenimento no que se refere às técnicas para a exploração das mitologias, mito e arquétipos do inconsciente coletivo. Nesta época as produções Disney passavam por um período ruim: produções como “O Cão e a Raposa” (The Fox and the Hound, 1983), “O Caldeirão Mágico”(The Black Cauldron, 1985) ou “Oliver” (1988) foram fracassos de bilheteria e de marketing. Parecia que a fórmula de sucessos como os clássicos Bambi, Dumbo ou Branca de Neve já não mais funcionava.

O "Memorando Vogler"

Christopher Vogler na Convenção de Escritores em Oregon
 (EUA)  em 2008
Diz a história que o roteirista Christopher Vogler trabalhava nos anos 80 nos estúdios Disney, quando, em meio a formação de diferentes equipes de criação que buscavam novas fórmulas, redigiu um memorando corporativo de sete páginas onde apontava os principais erros de roteiro e sugeria a adoção de um modelo narrativo baseado no “ciclo do herói” que comporia a estrutura básica de todas as mitologias humanas.

Vogler estudara Cinema na USC Scholl of Cinema-Television e sempre fora fascinado pelas ideias do historiador de mitologias Joseph Campbell, em particular a obra “O Herói com Mil Faces”.

Baseado nos estudos do austríaco Jung em torno dos arquétipos e inconsciente coletivo, Campbell desenvolveu a noção de “monomito”. Para ele, todos os grandes mitos fundadores das culturas humanas poderiam ser, em última análise, reduzidos a um única estrutura narrativa recorrente: a jornada do herói – plenitude, queda, martírio, morte, ressurreição e renovação.
“Em primeiro lugar ele tem que atender ao chamado da aventura. Muitas vezes ele recusa este chamado, mas tem um auxílio sobrenatural que o ajuda a ultrapassar o primeiro limiar e seguir seu caminho em direção ao cumprimento da tarefa. Este é um caminho de provas onde o herói é um aprendiz sujeito a falhas e a figura da mulher pode surgir em sua trajetória como uma deusa ou como fonte de tentação. Superadas as tentações e outros percalços da jornada, uma bênção final lhe é concedida antes de cumprir sua missão. Conquistada a tarefa, seja ela a salvação de uma princesa, ou a derrota de muitos inimigos, este mesmo herói tem que empreender uma viagem de retorno. Sua jornada apenas se completa quando ele volta para o centro de seu mundo com o prêmio conquistado. Só ao chegar ao seu ponto de partida é que ele completa sua missão” (ZATTI, Angela Helena. “Quando o Mocinho é um Bandido: análise da inversão das esferas dos personagens nas produções audiovisuais”. Paraná: Uiversidade Tuiuti, p. 3 disponível em www.bocc.upi.pt)
Antes da Campbell, o teórico russo Vladimir Propp publicou em 1928 a “Morfologia dos Contos de Fadas” no qual estabelecia os elementos narrativos básicos que compunham os contos folclóricos russos. Propp identificou sete classes de personagens (“agentes”), seis estágios de evolução da narrativa e 31 funções narrativas das situações dramáticas. A linha narrativa que ele traça é fundamentalmente uma só para todos os contos, ainda que flexível.

Em Propp, a análise era basicamente morfológica e estrutural (centrada na busca de funções e relações formais e linguísticas). A vantagem da análise de Campbell é a compreensão dos conteúdos psíquicos dessas estruturas linguísticas. As narrativas mitológicas não se resumem apenas à repetição de estruturas, mas um complexo drama, uma jornada de martírio, morte e ressurreição. Esta jornada passaria por 12 etapas:
Mundo Comum - O mundo normal do herói antes da história começar.
O Chamado da Aventura - Um problema se apresenta ao herói: um desafio ou a aventura.
Reticência do Herói ou Recusa do Chamado - O herói recusa ou demora a aceitar o desafio ou aventura, geralmente porque tem medo.
Encontro com o mentor ou Ajuda Sobrenatural - O herói encontra um mentor que o faz aceitar o chamado e o informa e treina para sua aventura.
Cruzamento do Primeiro Portal - O herói abandona o mundo comum para entrar no mundo especial ou mágico.
Provações, aliados e inimigos ou A Barriga da Baleia - O herói enfrenta testes, encontra aliados e enfrenta inimigos, de forma que aprende as regras do mundo especial.
Aproximação - O herói tem êxitos durante as provações
Provação difícil ou traumática - A maior crise da aventura, de vida ou morte.
Recompensa - O herói enfrentou a morte, se sobrepõe ao seu medo e agora ganha uma recompensa (o elixir).
O Caminho de Volta - O herói deve voltar para o mundo comum.
Ressurreição do Herói - Outro teste no qual o herói enfrenta a morte, e deve usar tudo que foi aprendido.
Regresso com o Elixir - O herói volta para casa com o "elixir", e o usa para ajudar todos no mundo comum.”
Embora a jornada do herói seja o monomito que fundamenta as mitologias de diferentes culturas, sua aplicação pela mídia chegava a um momento de esgotamento. Na fase de globalização da indústria do entretenimento, a partir da década de 80, as estórias centradas na figura do herói demonstraram ser mercadologicamente complicadas em sua difusão pelo mundo.

A Jornada do Herói no mundo globalizado

O martírio e renovação do herói Sam Flynn
em "Tron: O Legado"
Por exemplo, Vogler alertava que em países como Austrália e Alemanha, historicamente a figura do herói sofrera grande desgaste: os australianos desconfiavam da figura do herói por que esse conceito fora utilizado pelos colonizadores britânicos; na Alemanha o legado de Hitler e da propaganda nazista maculou a figura do herói. Além disso, em muitos países do Leste europeu a cultura é dominada por uma visão cínica em relação aos esforços do herói em transformar o mundo (veja em VOGLER, Christopher. A Jornada do Escritor, R. de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 26). Isso sem falar na explosão punk rock na cultura ocidental no final dos anos 70 com músicas como “No More Heroes” dos Stranglers.

Por isso, a proposta do “monomito” apresentada por Campbell fascinou roteiristas e diretores de Hollywood. Sua “jornada do herói” não se limitava apenas à descrição de uma estrutura repetitiva, mas apresentava uma série de etapas e uma galeria de personagens capazes de gerar uma infinidade de plots narrativos para colocar a trama em movimento: pícaros, guardiões do limiar, sombras, arautos, camaleões etc. Ironicamente, se Joseph Campbell escreveu o “Herói de Mil Faces” como crítica aos clichês e fórmulas repetitivas da indústria cultural, após quatro décadas os produtores da indústria do entretenimento começaram a encarar esse livro como um verdadeiro manual para roteiristas.

Com a globalização crescente dos produtos culturais e as estratégias de marketing ao estilo “blockbusters” (o filme como agregador de valor a uma série de subprodutos – games, brinquedos, etc) a estrutura repetitiva dos contos tradicionais (tal como descrita por Propp) não mais dava conta da complexidade do alcance global dos negócios.

Os desenhos animados clássicos do Estúdio Disney ainda refletiam essa estrutura repetitiva dos contos de fada: “Era uma vez, um lobo muito fedorento que pegou uma criancinha para fazer seu jantar. Mas, um corajoso caçador entrou na toca do lobo, deu uma tremenda surra no bichano malvado e salvou a criancinha. E viveram felizes para sempre”.

Essa estrutura narrativa refletia ainda uma sociedade estática, burocrática, com uma organização de trabalho baseada em papéis fixos e repetitivos (fordismo, taylorismo)

Nos tempos pós-modernos atuais, essa organização social foi transformada com as novas tecnologias em tempo real, tempo fragmentado e os papéis e identidade sociais fluidos.

Christopher Vogler compreendeu bem esse momento de transformação e as novas exigências mercadológicas. Ao divulgar as ideias de Campbell e instrumentalizá-las nos roteiros dos novos produtos globalizados, ajudou a criar não só o novo “Paradigma Disney”, mas, também, toda uma nova maneira de explorar as mitologias e o inconsciente coletivo por meio dos arquétipos.

O “Paradigma Disney” é um exemplo dessa forma globalizada de explorar os arquétipos, ao mesmo tempo repetitiva e transformadora, ao confinar os símbolos do insconsciente coletivo na ideologia do mundo globalizado e seus valores corporativos: individualismo, empreendedorismo, mobilidade social, inovação e relativismo ético e moral.

Como no exemplo da última produção dos Estúdios Disney, “Tron: o Legado”: complexa simbologia alquímica recheando a clássica jornada do herói (protagonista Sam Flynn, filho de Kevin Flynn) que passa por todo o martírio, quase morte e a ressurreição e renovação finais – volta para casa renovado e pronto para assumir de forma responsável a empresa do falecido pai.

Postagens Relacionadas:

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review