sábado, fevereiro 19, 2011

O Álibi Sci-fi Retro do Projeto MARS500: os objetivos bem terrestres de uma missão espacial

Para além do álibi sci-fi retro (viagens tripuladas a Marte), na verdade o Projeto MARS500 atende indiretamente a dois objetivos: agenda tecnognóstica do assalto à mente e consciência humanas e, segundo, o reforço da mitologia sobrevivencialista dos reality shows. 

Depois de uma viagem de oito meses, no dia 14 de fevereiro desse ano o russo Alexandr Smoleevsky, o italiano Diego Urbina e o chinês Wang Yue finalmente pousaram na superfície de Marte às 13h00, horário de Moscou, e deram os primeiros passos no terreno marciano. Após essa saída do módulo de serviço, eles irão se aventurar mais duas vezes pela superfície do planeta: dias 18 e 22 de fevereiro.

É o ponto alto do projeto MARS500 patrocinado pela ESA (Agência Espacial Européia) em parceria com o Instituto de Problemas Biomédicas de Moscou. Apenas um detalhe: tudo faz parte de um projeto que pretende simular uma viagem a Marte, lançado no primeiro semestre de 2009. Composta por uma tripulação de seis pessoas (três russos, um italiano, um chinês e um francês), toda a missão ocorre no interior de uma instalação de 500 metros cúbicos no Instituto de Problemas Biomédicos onde, desde junho de 2010, os seis homens estão confinados. O plano é que fiquem dentro dessa nave simulada até novembro de 2011.

O objetivo do programa MARS500 é estudar os efeitos mentais, psicológicos e físicos em um grupo que, numa viagem real a Marte, ficaria encerrado por longos meses em alojamentos compactos. O programa limita-se unicamente ao estudo desses efeitos, já que, na superfície da Terra é impossível simular a gravidade zero (a não ser por breves momentos).



A MARS500 não é o primeiro projeto que encerra seres humanos em estruturas fechadas para monitoramento e estudo. Além do projeto piloto inicial de 105 dias em 2009, também houve em 1991 o projeto Biosfera 2, no deserto do Arizona, EUA. Como já discutimos em postagem anterior (clique aqui para ler), esse projeto dos anos 90 foi um fracasso científico, mas um sucesso midiático: inspirou o surgimento dos reality shows na TV mundial.

Será que um dia vamos para Marte?

Para o David Dinges, professor de psicologia da Universidade da Pensilvânia e que lidera um grupo de estudo ligado ao MARS500 “é o início para se obter dados fundamentais sobre a ecologia comportamental do confinamento em longa duração. É um esforço global para entender os principais eventos em um missão de longa duração” (veja o artigo “How Real Can a Fake Mars Mission Be?”)

Essa declaração em tom genérico de Dinges (“ecologia comportamental em missão de longa duração”) é reveladora. Pouco importa se o homem irá algum dia para Marte. O mais importante são os dados brutos para análise, colhidos em situações reais onde seres humanos são colocados em situações-limite onde não há vivência, mas sobrevivência psíquica.

Tripulação da MARS500 ficará confinada 520 dias, simulando
o tempo de uma viagem de ida e volta a Marte
Para o urbanista e filósofo francês Paul Virilio o fim da era heróica das viagens espaciais tripuladas a Lua coincidiu com o domínio das chamadas “tecnologias estáticas” (computacionais e informacionais): temos o “elogio à deficiência física” onde a tela simula aquilo que ocorre à distância. Assim como na guerra a infantaria e o confronto físico são substituídos pela telemetria (mísseis, satélites de espionagem etc.), também na tecnociência o presencial e o espacial são substituídos pelo telemático. É o mundo da simulação da presença. (Veja os livros de Virilio "A Máquina de Visão" e "O Espaço Crítico")

O corpo torna-se dispensável. Nesse raciocínio, astronautas heroicos colonizando outros mundos se tornam desnecessariamente dispendiosos (ainda mais numa economia on demand em que vivemos).

Midiaticamente a MARS500 é de um imaginário retro. Ainda mais quando sabemos das condições econômicas globais e da própria ESA. A Agência Espacial Européia é mantida pela contribuição dos países membros calculada a partir do PNB (Produto Nacional Bruto) de cada país. O custo per capita para os cidadãos membros da Agência corresponde ao preço de um ingresso de cinema, quatro vezes menos que nos EUA.

Diante desse quadro de investimentos, fica difícil acreditar que dentro de uma economia global onde o quadro de crises e incertezas é crescente (porque também a economia tornou-se telemática com a financeirização dos fluxos econômicos) seria possível um esforço épico transnacional de colonização de outros planetas.

Tal como o antigo projeto Biosfera 2, o MARS500 é mais um desses projetos científico-midiáticos. Através de um discurso de relações públicas ecológico (no caso do Biosfera 2) ou sci-fi retro ao estilo anos 60 (como na declaração do astronauta italiano que “andou” em Marte: “A Europa por séculos explorou a Terra liderada por Colombo e Magalhães. Agora seremos os primeiros a olhar Marte”) oculta o verdadeiro resultado indireto do Projeto: cartografar a mente para produzir modelos cognitivos de funcionamento da consciência e do comportamento. Tal como cobaias em ambientes simulados, os “astronautas” são monitorados e os dados brutos vão fazer parte de banco de dados para novos modelos de simulações para previsão e virtualização do funcionamento da mente.

Como vimos em postagens anteriores (veja links abaixo) esse verdadeiro assalto à mente faz parte de uma agenda tecnognóstica, a confluência das ciências neuronais, cognitivas, cibernética e Inteligência Artificial, com a finalidade última de entender o que é a consciência. Como Virilio afirma recorrentemente em suas obras, a evolução tecnocientífica tem íntima relação com a Guerra, seja ele externa (enfrentar o “inimigo”) ou interna (engenharia social, gestão de pessoas e controle político). Cartografar e colonizar esse território desconhecido (a mente) é muito mais emergencial do que ir para outros planetas.

Portanto, passamos a compreender o tom genérico da declaração de David Dinges: “ecologia comportamental em missões de longo prazo” aplica-se desde à simulação da MARS500 até a gestão de pessoas em ambientes corporativos. A mesma sensação claustrofóbica dos “astronautas” da MARS500 também é experimentada por funcionários nas pequenas baias dos imensos escritórios de empresas (as de telemarketing são as piores!).

Não é por coincidência que muitas dessas pessoas que passam por essas simulações de situações-limite (de reality shows televisivo a experimentos científicos) são, logo depois, convidadas para darem palestras motivacionais para grupos de projetos especiais em empresas. Aliás, muitos astronautas do Projeto Apolo acabaram ganhando a vida dando esses tipos de palestras.

Mitologia Sobrevivencialista

Projetos como a MARS500 são midiaticamente bem sucedidos porque incendiam a imaginação mórbida do público: o imaginário sobrevivencialista, o fascínio por pessoas que lutaram pela sobrevivência, que estiveram à beira da morte ou em situações onde experimentaram os limites das privações físicas e psíquicas.

Para o historiador norte americano Christopher Lasch, a vida cotidiana atual passou a ser interpretada à luz das situações extremas. Desde o pós-guerra, a partir dos relatos das vítimas dos campos de concentração nazistas, passou a ser construída toda uma mitologia sobrevivencialista: situações extremas nos ensinariam lições morais para a vida cotidiana (trabalho, vida conjugal, negócios etc.).
“Tal exploração do holocausto pode ser inserida na crescente preocupação com as estratégias de sobrevivência, na irresponsabilidade com a qual os analistas passam a fazer generalizações dos campos de concentração para a vida cotidiana e na ânsia crescente de enfocar os campos como metáforas da sociedade moderna (...) A vida cotidiana passou a pautar-se pelas estratégias de sobrevivência impostas aos que estão expostos às adversidades extremas. A apatia seletiva, o descompromisso emocional frente aos outros, a renúncia ao passado e ao futuro, a determinação de viver um dia de cada vez – tais técnicas de autogestão emocional, necessariamente levadas ao extremo em condições extremas, passam a configurar, em formas mais moderadas, a vida das pessoas comuns em condições normais em uma sociedade burocrática, amplamente percebida como um vasto sistema de controle total” (LASCH, Christopher. O Mínimo Eu – sobrevivência psíquica em tempos difíceis. São Paulo: Brasiliense, 1987, PP 47 e 101).
Numa sociedade resignada, onde o desejável foi substituído pelo possível, diante das pressões do cotidiano burocrático onde a vida social é percebida como controle total, passamos a ter como modelos morais não mais a religião ou a racionalidade, mas as táticas sobrevivencialistas das vítimas de situações extremas (holocausto, terremotos, inundações, sequestros etc.), vítimas que sobreviveram graças a táticas aplicáveis como modelos motivacionais a situações críticas do cotidiano. Táticas que se transformam nos mais variadas fórmulas de autogestão emocional, autoajuda, autoconhecimento, modelos de gestão, teorias de lideranças corporativas etc.

Não é à toa que nove em cada dez filmes os protagonistas só vão descobrir que se amam após passar toda uma série de adversidades que os coloquem no limite entre a vida e a morte. Paroxismo da mitologia sobrevivencialista: só nos sentimos vivos quando experimentamos a proximidade da morte.

Para além do álibi sci-fi retro (viagens tripuladas a Marte), na verdade o Projeto MARS500 atende indiretamente a dois objetivos: primeiro, atende à agenda tecnognóstica do assalto à mente e consciência humanos e, segundo, alimenta midiaticamente a mitologia sobrevivencialista de seres humanos que passam por situações extremas e se tornam modelos morais para nossas vidas sitiadas.

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