quarta-feira, outubro 12, 2011

O "Inumano" no Filme "A Centopeia Humana"

Se os gêneros ficção científica e Terror exploram principalmente os temas do Pós-Humano e do Desumano, em "A Centopéia Humana" do holandês Tom Six temos uma novidade: o tema do Inumano, poucas vezes trazido para as telas do cinema pela sua maneira radical e perturbadora de encarar o Mal. Não se trata mais de impingir o horror, sofrimento e a morte final à vítima. Mas retirar dela toda sua humanidade ao fazê-la regredir à condição animal por meio dos próprios intrumentos da evolução humana: Ciência, Técnica e Razão.

O tema do Pós-humano é recorrente no cruzamento entre ficção científica e terror: desde a estória de Frankenstein, passando por filmes como “Robocop” (RoboCop, 1987) para chegarmos aos pesadelos do diretor Cronenberg como em “Videodrome” (1983) e eXistenZ (1999) : fantasias cabalísticas onde o homem quer ser Deus e tenta produzir vida a partir de um “golem”; seres híbridos de carne, sistemas eletrônicos e servomecanismos para superar as limitações corporais humanas; interfaces biológicas com redes digitais onde o Eu transcenda o corpóreo etc.  No pós-humano há o desejo gnóstico-cabalístico da superação das limitações existenciais e corporais humanas (finitude, temporalidade e senso de fragilidade corporal). O elemento do horror é a presença da ambiguidade do pós-humano, a diluição das fronteiras entre homem e máquina, espírito e matéria e orgânico e inorgânico. E horror de vermos o inorgânico e sem vida ganhar consciência e dominar o espírito humano.

Já o Desumano está no campo da moralidade e da “hermenêutica do mal”. Torturas, humilhações e assassinatos são impingidos por um serial killer, um monstro sobrenatural ou um psicopata. Pense num filme como “Jogos Mortais” (Saw, 2004): o vilão aprisiona pessoas em elaborados dispositivos e jogos para punir atos pregressos imorais ou anti-éticos das vítimas. Ou ainda, sanguinário personagem  Alex do filme “Laranja Mecânica” (Clockwork Orange, 1971) que sabe que suas atrocidades são puníveis pelo Estado e Polícia. Teme a lei e foge para não ser preso. Alex e o Jigsaw são, portanto, imorais.

O tema do Desumano conta ainda com uma “hermenêutica do Mal”: psicopatas como Jason e Fred Krueger são assassinos seriais e cruéis por decorrência de traumas do passado que marcaram para sempre suas personalidades. As narrativas procuram racionalizar o Mal buscando uma explicação no psiquismo humano.

Portanto, podemos denominar a condição da vítima como “desumana” porque há ainda no horizonte referências como o Humanismo, a Ética e a Moral.

A novidade do filme “A Centopéia Humana” (The Human Centipede - First Sequence, 2009) é trazer para o gênero terror o tema do Inumano: não se trata mais de subjugar, humilhar ou destruir o psiquismo da vítima pelo horror, medo ou tensão. E, muito menos, se trata de querer punir a vítima com o sofrimento e a morte final. Trata-se muito mais de anular qualquer humanidade ao fazer a vítima retroceder ao estágio animal, morficamente falando e não no sentido figurado. 

O homem e a humanidade retrocedida à forma de centopeia! E o que é mais radical: não há mais uma hermenêutica, mas uma reversibilidade irônica do Mal: tudo é levado a cabo justamente por instrumentos resultantes da evolução humana: a Ciência, a Razão e a Técnica.

Dirigido pelo holandês Tom Six, o filme começa com uma narrativa que, temos certeza, já vimos em algum outro lugar de tão clichê: duas jovens turistas americanas viajam pela Alemanha quando, em uma noite, decidem ir para um bar. No caminho o pneu do carro acaba furando no meio de uma floresta em uma noite chuvosa. Decidem sair andando em busca de ajuda até encontrar uma bela residência de um morador com uma aparência sinistra e de poucas palavras.

Em questão de minutos são postas para dormir e acordam amarradas a camas juntas com outro homem preso em uma aparente sala de cirurgias.

Eis que surge na sala o homem sinistro: Dr Heiter (Dieter Laser), cirurgião de renome internacional e especialista em separações de gêmeos siameses. Didaticamente e com uma frieza profissional, com ajuda de transparência em um retroprojetor, ele explica o seu projeto em meio a choros e gritos de horror das vítimas: pretende juntar aquelas três pessoas formando um único tubo digestivo, parte “A”, “B” e “C”, cabeça, corpo e calda, para criar a primeira centopeia humana. Ah! E ainda com um mórbido detalhe: o osso da patela, no joelho, será retirado para que eles não consigam ficar eretos e, dessa maneira, caminhem tal como uma centopeia.

Uma produção com orçamento baixíssimo e filmada em vídeo digital, mas com um tema talvez inédito no gênero terror (o Inumano). Dessa maneira, o filme entra para o hall de filmes “sadianos” como “Saló – 120 Dias de Sodoma” de Pasolini. E por que não utilizar a palavra “sádico”?

A palavra “sádico” sempre foi mal aplicada, sempre usada para designar vilões desumanos. Pelo contrário, os libertinos cruéis e assassinos de Sade são seres amorais e, portanto, muito mais associados ao universo do Inumano. Por isso, pelo desgaste que a palavra “sádico” acabou sofrendo, vamos usar o termo “sadiano” para nos referir ao Dr. Heiter.

O Sadiano

Adorno e Horkheimer no livro “Dialética do Esclarecimento”  no capítulo “Juliete e o Esclarecimento Moral” apontam para uma característica de Sade que o faz juntar-se aos escritores sombrios do primórdio da burguesia como Maquiavel, Montaigne, Hobbe e Mandeville: descrever os subterrâneos do Iluminismo cartesiano da ciência e das virtudes morais. Isto é, se o esforço da ciência cartesiana foi o de fugir da barbárie, o gênio de Sade foi demonstrar que a violência pode ser cometida com os mesmos instrumentos que deveriam debelá-la.

O que mais chama a atenção na obra de Sade é a monotonia, a apatia e o estoicismo dos libertinos (valores associados à virtude na moralidade burguesa). A narrativa dos crimes e depravações não é construída por cenas dominadas pela paixão ou horror. Pelo contrário, são longas dissertações monótonas onde, por meio de tiradas eruditas, paradoxos e filosofia lógica, o libertino procura uma espécie de distanciamento científico. As narrativas são repletas de mensurações. Às vezes em meio ao ato perverso, o libertino gosta de tomar medidas, os membros viris são medidos em polegadas ou linhas...

O libertino não é um louco, possesso ou demoníaco. Tal como o Dr. Heiter no filme, ele é frio, dominado pelo cálculo científico. Capaz de fazer uma apresentação didática para as suas vítimas, como se estivesse aculturando os selvagens, trazendo a luz da ciência para a humanidade idiota.

A violência não seria o outro lado da Razão, praticada com os mesmos instrumentos da racionalidade? Dr. Heiter fala a certa altura: “não gosto de seres humanos”. A Ciência e a Razão falam em nome da Totalidade, do Universal. Diante do sofrimento da cobaia, do indivíduo ou do particular, Ciência e Razão são indiferentes. O particular é imperfeito porque não tem consciência da perfeição do Todo. O indivíduo tem que ser liquidado em nome das leis universais, da Religião até a Ciência.

Enquanto os vilões desumanos são loucos, apaixonados, obcecados, o vilão inumano ou sadiano é um estoico. O ego do Dr. Heiter pouco importa: o fastio e a monotonia da bizarra cirurgia que unirá os três seres por um único tubo digestivo parecem demonstrar que ele está ali para cumprir um desígnio, uma missão na qual ele é mero executor.

Tanto é verdade que para ele pouco importa o seu destino. Ele deixa pistas fáceis para que os policiais cheguem até sua casa à procura das vítimas desaparecidas. Os policias entram na sua casa e, ao invés de o Dr. Heiter procurar um ardil para se desvencilhar da Lei, ao contrário, vê neles novos espécimes para seu projeto de aumentar a centopeia humana. O cirurgião é um mártir da Ciência, assim como Hitler acreditava que pouco importava a derrota do III Reich: os escombros da Alemanha seriam como uma nova arquitetura que representaria o estoicismo e sacrifício do povo alemão, mártires dos secretos desígnios da História.

Será apanhado e preso? Morrerá? Dr. Heiter parece ser indiferente tanto com as vítimas quanto com ele mesmo. Está ali apenas para cumprir um propósito do Universo: exterminar toda e qualquer humanidade, porque imperfeita diante do design do Todo. A humanidade merece voltar à natureza para ser mais facilmente dominada pela Ciência.

Ciência e Nazismo

Não há como ver o filme e, através dos simbolismos espalhados pela narrativa (Alemanha, referências ao nazismo e a indumentária do Dr Heiter que lembra a dos médicos das SS), não se lembrar das experiências bizarras de médicos alemães, como as de Joseph Mengele, em campos de concentração da Segunda Guerra Mundial: unir veias de gêmeos, injetar tinta azul nos olhos de crianças judias etc.

As conexões entre Ciência, Técnica e extermínio em massa mostrou o Mal na sua essência: a sua reversibilidade. O irracional parece estar no interior da própria razão que se converte em violência histórica. A fria formulação algébrica dos conceitos e finalidades faz a Razão perder suas finalidades humanas. A racionalidade transforma as coisas vivas em coisas úteis.

Através de um filme de baixo orçamento, bizarro e asqueroso, Tom Six consegue fazer uma exposição do Mal na sua radicalidade, como o Inumano: a secreta aliança entre Razão e Irracionalidade, Ciência e Técnica capazes de criar tamanha frieza que expulsam a própria humanidade dos seus desígnios metafísicos.

De forma estranha, Tom Six mostra que nas luzes da Razão escondem-se sombras. E numa dessas sombras está à nossa espera o Dr. Heiter.


Ficha Técnica

  • Título: A Centopeia Humana (Human Centipede - First Sequence)
  • Diretor: Tom Six
  • Roteiro: Tom Six
  • Elenco: Dieter Laser, Asheley Williams, Ashlynn Yennie
  • Produção: Six Entertainment
  • Distribuição: IFC Midnight, Six Entertainment
  • Ano: 2009
  • País: Holanda




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