quarta-feira, fevereiro 29, 2012

Em "Mais Estranho Que a Ficção" Deus é um Mau Escritor

Mais Estranho que a Ficção (Stranger Than Fiction, 2006) propõe uma interessante ironia: e se nossas vidas não passarem de plots de uma narrativa literária? Tramas da obra de um mal escritor, uma divindade, um "Deus Ex-Machina" (termo para designar soluções arbitrárias, sem nexo ou plausibilidade na narrativa, para solucionar becos sem saída encontrados em roteiros mal conduzidos). É o velho tema da batalha do ser humano contra um Demiurgo que quer impor uma narrativa fatalista  e luta pelo despertar do livre-arbítrio dentro do reino da fatalidade. Um irônico paralelo entre Teologia e Literatura: Deus é uma má escritora que tenta matar o protagonista da sua obra.

Harold Crick (Will Ferrell) é um auditor da Receita Federal que leva uma vida solitária e rígida, governada por números (ele sempre conta o número de vezes que escova os dentes verticalmente e horizontalmente), pelo seu relógio de pulso e pela rotina. Seu apartamento é impessoal como um quarto de hotel, sem objetos pessoais, fotografias, memórias ou desordem.

Mas, em uma manhã, Harold começa a ouvir uma voz narrando suas ações: “um modesto elemento da sua vida considerada normal poderá ser o catalisador para uma nova vida”, diz a estranha voz vinda aparentemente do céu. Imerso num cotidiano de números e cálculos, pela primeira vez cria uma nível meta (ou consciência de transcendência espiritual?) na sua vida: quem é esse narrador onisciente? De que plano provém? Harold passa a ser perseguido por essa voz em off, até descobrir seu propósito: narrar a iminente morte de Harold.


Após desistir de procurar apoio terapêutico, Harold busca uma solução menos ortodoxa: busca o auxílio de um eminente professor de Teoria Literária, o professor Jules Hebert (Dustin Hoffman). A partir daí o filme estabelece uma interessante ironia narrativa: mais do que a preocupação com seu estado mental, Harold percebe que a sua vida parece estar dentro de um propósito maior, como a narrativa de uma obra literária. Portanto, com o auxílio de Julius, deve descobrir em qual plot e gênero literário está envolvido, para, dessa maneira, descobrir como seria o desfecho mortal para evitá-lo.

A voz off é da escritora Karen Eiffel (performada por Emma Thompson - famosa por matar todos os seus protagonistas em seus livros). Suas imagens iniciais no filme são simbolicamente sugestivas (observa o protagonista do alto dos edifícios, como o Demiurgo gnóstico criando uma trama cósmica para confinar o protagonista anthropos).

De início, dois elementos dos filmes gnósticos estão presentes em “Mais Estranho que a Ficção”: a solidez e regularidade da realidade que se esfacela ao descobrir que tudo consiste numa narrativa literária e arbitrária de um Demiurgo e a desconstrução irônica da própria narrativa fílmica – na estória constantemente criam-se níveis meta como, por exemplo, a discussão dos próprios elementos do roteiro do filme (Ironia Dramática, Deus “ex-machina” etc.) e a busca de Harold e Julius em determinar em qual gênero o filme que o espectador assiste se insere (comédia? Drama? Tragicômico?).

A Escritora é um Demiurgo

Karen Eiffel é o Demiurgo que, de tão inebriado pelo poder de matar seus protagonistas, entra em crise e sofre um bloqueio criativo: não sabe agora como matar Harold de forma criativa. Tal como na mitologia gnóstica, todo o poder do Demiurgo não é capaz de solucionar a falha principal do seu universo material: o devir, o tempo. A editora envia uma assistente para ajudá-la a superar o bloqueio e pressioná-la quanto aos prazos para entrega dos originais.

Para a mitologia gnóstica, o Demiurgo aprisiona o homem em seu cosmos físico com um objetivo principal: roubar-lhe as partículas de luz, reminiscência do verdadeiro plano superior da Pleroma contido no ser humano, plano este que está além dos poderes do Demiurgo. Isso é representado na timidez e ingenuidade de Harold, que fará cada vez mais a escritora Karen fascinar-se pelo seu próprio protagonista ao ponto de relutar em matá-lo. Aos poucos vai libertando-se da rigidez do mundo burocrático e certinho (na medida em que descobre a artificialidade do mundo em que vivia).

Essa pureza da sensação do “olhar da primeira vez” é emblematicamente trabalhada com vários simbolismos bíblicos do Gênesis. A maçã na boca de Harold ao sair apressado para o ponto de ônibus toda manhã; o encontro com Anna Pascal (Maggie Gyllenhaal - confeiteira auditada pela Receita) que lhe oferece cookies cujo sabor fará ainda mais Harold abrir-se para um mundo de novas sensações (o pecado original do Paraíso bíblico); a atração por uma velha guitarra Fender da mesma cor da maçã que toda manhã está na boca de Harold etc.

Aliás, a personagem Anna Pascal ocupa importante papel para a gnose de Harold. Assim como na mitologia gnóstica o personagem feminino de Sophia ocupa importante papel ao trazer sabedoria para o cosmos físico, o personagem de Ana Pascal ao oferecer a “Maçã do pecado original” (os cookies) que abrirá a mente de Harold.

O “Oceano da Gnose”

O principal tema do filme é a gnose de Harold. Ele tem uma vida vazia, burocrática e repetitiva (típica caracterização do personagem “O Viajante” nos filmes gnósticos) cujo processo de gnose deve ser através de um Jogo (o processo metalingüístico da descoberta do plot narrativo da sua vida) onde os limites entre a ficção e a realidade se confundem, como uma viajem através do qual o protagonista despertará. Tal ambigüidade é o caminho aberto para a gnose.

Essa gnose de Harold se inicia na simbólica cena onde Harold folheia as fichas da gaveta de uma imensa sala de arquivos da Receita federal. A voz off de Karen Eiffel narra: “O som do papel contra o separador tinha o mesmo tom de uma onda a rebentar na areia. E quando Harold reparou nisso, percebeu que já tinha escutado ondas o suficiente para constituir o que ele imaginou como sendo um profundo e interminável oceano”. Temos aqui o simbolismo do “Oceano da Gnosis”, o cerne de inúmeros ensinamentos metafísicos Sufis (Sufismo, corrente mística e contemplativa do Islamismo que se ocidentaliza através do hinduísmo) como, por exemplo, do poeta e místico muçulmano Jalal AL-Din Rumi. Para ele, percebemos Deus não através de ensinamentos mas pelo “coração”, como se estivéssemos “imersos num oceano”.

Harold sabe que vai morrer, luta contra esse destino narrativo imposto pela escritora/demiurgo. Tal como no filme “Blade Runner” (filme de 1982, baseado em livro do gnóstico escritor Philip K. Dick onde um robô replicante luta para encontrar seu criador para reivindicar por mais tempo de vida), Harold vai ao encontro do seu criador, a escritora Karen Eiffel. Chocada, ela se confronta com sua própria criação.

O professor Julius e Harold lêem os originais da escritora e chegam à conclusão: Harold tem que aceitar a morte, afinal, o novo livro é a obra-prima de Karen Eiffel. Novamente, o recurso meta-narrativo da estória: como em qualquer roteiro, o protagonista deve se sacrificar por uma causa maior, no caso, a obra-prima de Eiffel. Julius Hebert, como professor de Teoria Literária, tenta convencer Harold da inevitabilidade da sua morte. Tem a ver com um “Plano Maior”, o desfecho de uma excelente obra literária, o ponto alto da carreira da Escritora/Demiurgo.

Com tantas referências bíblicas e místicas que o filme faz, é inevitável a comparação com a Paixão de Cristo. Harold, assim como Cristo, sabe que vai morrer. Jesus Cristo deve morrer por uma causa maior (a salvação da humanidade) assim como Harold deve morrer por causa de um “Plano Maior”: a necessidade imposta por uma engenhosa narrativa. Mas, estamos em um filme gnóstico: assim como no Gnosticismo onde Cristo não veio para nos salvar (sua morte nada teve a ver com isso), mas para nos “curar” (trazer a gnose, mostrar que estar no mundo não é ser dele), Harold não veio ao mundo para morrer por um “Plano Maior”, mas para alcançar a gnose.

Ao descobrir a “sensação oceânica” na banalidade dos gestos cotidianos, Harold interpõe o elemento do acaso na causalidade narrativa: o fragmento do relógio estanca uma hemorragia que seria fatal ao protagonista em um acidente ironicamente genial elaborado por Eiffel. Novamente a limitação do poder do Demiurgo: o tempo, representado pelo relógio despedaçado.

“Mais Estranho que a Ficção” explora o gnosticismo tanto no conteúdo como na forma: a realidade que aprisiona Harold como um “constructu” arbitrário e a desconstrução metalingüística do próprio roteiro fílmico ao longo da narrativa.

Ficha Técnica

  • título original: (Stranger than Fiction)
  • lançamento: 2006 (EUA)
  • direção: Marc Forster
  • atores: Will Ferrell , Denise Hughes , Tony Hale , Maggie Gyllenhaal, Emma Thompson
  • duração: 113 min
  • estúdio:Mandate Pictures / Three Strange Angels / Crick Pictures LLC
  • distribuidora:Columbia Pictures / Sony Pictures Entertainment
  • roteiro:Zach Helm
  • produção:Lindsay Doran


Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review