sexta-feira, outubro 12, 2012

Os Cátaros, Paulo Coelho e o turismo esotérico

Escalar uma "montanha mágica" nos Pirineus para encontrar a fortaleza dos heréticos Cátaros do século XII. O problema é que, para eles, toda a suposta beleza dos céus e da Terra era “obra de um demônio”. Mas para um turista esotérico isso não importa: a jornada descrita pelo famoso escritor de best sellers esotéricos Paulo Coelho confirma os principais mitos dessa agenda “new age” cujo imaginário criou um subgênero na indústria do turismo. Os mitos dessa jornada: Os “Sinais”, O “Todo”, Os “Lugares Especiais” e O “Antigo”.

Em uma das minhas visitas à cidade de Santos (meus pais moram lá) me detive diante de uma banca de jornal e parei na primeira página do jornal “A Tribuna de Santos”. Era domingo, dia em que o jornal vem com o suplemento “ATrevista”, uma revista de variedades culturais, culinárias e dicas de compras. Temas bem amenos para um típico domingo santista ensolarado e quente. Folheando a revista, perdido entre receitas culinárias e páginas publicitárias, encontro uma coluna do famoso escritor de best sellers esotéricos Paulo Coelho intitulado “Montanha Mágica” (clique aqui para ler).

O texto começa com uma típica descrição turística sobre “uma das as mais belas regiões do mundo”, Languedoc nos Pirineus e Sudoeste da França. “Mas foi nesse lugar magnífico que nasceu a primeira grande “heresia” europeia: o catarismo. Muitos livros foram escritos sobre o tema, entretanto, é possível resumir a filosofia cátara numa simples frase: o universo foi criado pelo demônio. Toda esta beleza aparente é uma obra diabólica.” Uauuu! Que tema para um domingo de sol e praia!

Para quem não sabe, os Cátaros foram os responsáveis pelo reaparecimento do Gnosticismo na Europa no século XII, esparramados pelo Sul da França, Languedoc, Catalunha e norte da Itália. Foi um movimento cristão considerado herético pela Igreja, com forte paralelo com os gnósticos do princípio da era cristã, mais precisamente com o dualismo de Mani (viveu no Irã no século III) que sustentava que o cosmos seria dividido por dois poderes opostos: o Bem e o Mal, o verdadeiro Deus e o Demiurgo, uma divindade decaída e enlouquecida com o próprio poder que nos aprisiona em um universo físico corrompido.


Além dessa concepção ontológica do Mal, eram ascéticos, vegetarianos e celibatários: procriação e prazeres seriam fontes do mal por produzir mais “matéria”. E para completar, eram tenazes críticos da Igreja, segundo eles, corrompida por estar ocupada com os deveres da caridade e empenhada na venda de indulgências em cruzadas para libertar Jerusalém e saquear Constantinopla. Eram contrários ao culto a santos e relíquias, considerados “idolatrias”.

Essa heresia despertou a ira do papa Inocêncio III que lançou contra eles uma campanha militar (a Cruzada Albigense), oferecendo com recompensa a terra dos hereges. O genocídio dos cátaros durou meio século. A instrução era matar tudo que se mexesse e reduzir as casas a cinzas. Essa violência da Cruzada Albigense, infame até para os padrões da época, ficou famosa pois por sua causa oficializou-se a Inquisição.

O gnosticismo maniqueu dos cátaros impactou por séculos o cenário cultural. Voltaire dedicou um capítulo de seu “Essai sur lós moeurs et l’esprit dês nations” ao massacre dos cátaros. Percebemos ecos do catarismo nas críticas do poeta William Blake ao cosmos descrito por Isaac Newton, organizado e parecido com um relógio. “Mas a Natureza é obra do Demônio”, dizia Blake.

Catarismo no século XX


E ainda encontramos no filósofo franco-romeno Emil Cioran (1911-1995) um “catarismo ateu”, um “misticismo sem absoluto” ao aproximar-se da concepção cósmica e ontológica do Mal. Ou ainda na revolução epistemológica e ontológica do pensador francês Jean Baudrillard (1929-2007): primeiro ao abandonar a dialética marxista e privilegiar o dualismo e, segundo, ao compreender que a realidade do mundo desde o início ter sido seduzida pela ilusão e a impossibilidade da Razão e da linguagem compreender a verdade da realidade.

Mas tudo isso é pesado demais para um domingo de sol e para um artigo distribuído para diversos veículos impressos e digitais para seções de cultura e variedades. A partir daí, Paulo Coelho explica que nesse lugar específico, a fortaleza de Montségur, houve em 1244 um prolongado cerco que resultou na morte na fogueira de 250 “perfeitos” (como se autodenominavam os cátaros), homens, mulheres e crianças. Em seguida, o autor faz uma descrição do belo local (a gigantesca rocha sobre a qual se encontra a fortaleza) e das estranhas coincidências que seriam “sinais” indicando a necessidade de aceitar o desafio de escalar uma montanha envolta em neblina à noite. “Tudo pareceu se encaixar”, escreve Coelho, ao retornar ao hotel e encontrar uma única lanterna existente no local para a escalada noturna.

Cioran: o "catarimo ateu"
Finalmente, ele e mais dois personagens escalam a montanha, cruzam as nuvens e chegam ao topo sob um céu cheio de estrelas e com lua cheia, para em seguida disparar: “Entramos, contemplamos as ruínas. Os cátaros contemplavam este mesmo céu e, mesmo assim, achavam que todas estas estrelas eram obras do demônio. Jamais compreenderei os cátaros (...)”.

Tudo realmente se “encaixou”. Na verdade o escritor Paulo Coelho usou os cátaros como um álibi para um típico texto sobre “turismo esotérico”, um subproduto da ideologia do turismo que transforma em mercadoria a promessa de que encontraremos a “aventura”, o “original”, o “único”, o “intocado”, o “elementar” na viagem que promete a quebra da nossa cinzenta rotina (veja ENZENSBERG, Hans Magnus, “Uma Teoria do Turismo”, In: Com Raiva e Paciência, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985).

Paulo Coelho faz a exaltação do olhar turístico para vales, montanhas, rios, céu e estrelas e, por isso, acha incompreensível os cátaros acharem que tudo isso seja obra do “demônio”.

O artigo “Montanha Mágica” é exemplar ao apresentar didaticamente os mitos que compõem aideologia dessa modalidade contemporânea de “turismo esotérico” e, de resto, os mitos que estruturam a própria ideologia da chamada “New Age” – a “Nova Era”. Vamos relacionar alguns desses mitos:

Mito 1: Os Sinais


O termo “sinais” seria a secularização daquilo que os neo-pentencostais chamam de “milagres”. Milagres estariam por todas as partes, no atacado, demonstrando a presença de Deus. Somente que nessas igrejas a coisa é mais “dura”: para merecê-los é necessária retidão moral e de costumes – além, claro, da oferta do dízimo.

No turismo esotérico seria mais “soft”: tudo depende da sensibilidade, autoconhecimento, insight etc. Os sinais viriam de coincidências significativas (baseado na concepção junguiana de sincronicidade), tais como as relatadas por Paulo Coelho. “Sinais são os sinais”, afirma ele. Mas aqui temos um mito a partir de uma forçação de barra: das coincidências significativas ou sincronicidades de Jung (a existência de uma ordem a-causal ligada ao arquétipos ou imagens do inconsciente, ou seja, a coincidência entre o estado psíquico e acontecimentos externos) vermos a conversão em “sinais”. Dessa vez não mais de uma providência divina, mas de um ordenamento cósmico ou manifestação de uma “realidade quântica” – uma expressão fetiche e pouco compreendida. O universo conspiraria sempre a favor dos turistas esotéricos.

Mito 2: o Todo


É uma decorrência do Mito 1: a compreensão da intencionalidade desses sinais seria um momento sagrado, quase uma epifania: a compreensão intuitiva do Todo. Dentro desse mito estão as velhas questões clichês cuja resposta seria apenas encontrada no “Todo” depois de descobrir o enigma dos “sinais”: de onde viemos? Quem somos nós? Para onde vamos? Qual o propósito da nossa existência?... e assim por diante. 

Mas o ponto de chegada é o mesmo: pérolas motivacionais especialmente elaboradas para o mundo corporativo e de vendas (no final, os grandes consumidores destes tipos de textos e vídeos para motivar equipes de vendas, gerencias e chefias), noções filosóficas e científicas fragmentadas e arbitrariamente associadas aos temas de auto-ajuda etc. A essência desse mito é a seguinte: o indivíduo é limitado por não conseguir se conectar com o “Ser Abstrato Puro”, com a “Consciência Abstrata Pura”, com o “Ser Transpersonal Único”. A consciência seria limitada por ser “um subproduto do Espírito quando entra na Matéria”. As velhas dualidades teológicas são atualizadas, até chegar a liquidação total do indivíduo: a secularização do pecado. Essa limitação do Espírito confinado na Matéria propicia a limitação da percepção e do pensamento, preso que está a esquemas viciosos (melancolia, depressão, tristeza e “negatividades” em geral). Esquemas que produzem fracasso, derrota etc.

A verdade está no Todo e jamais no indivíduo, persistentemente limitado e em queda numa nova forma de pecado: a do desconhecimento da “Consciência Abstrata Pura”. Seu pecado é o da ignorância da qual o turista esotérico que fugir por meio de roteiros de vigens enriquecedores.

Mito 3: Lugares Especiais


Existiriam lugares especiais no planeta que nos inspirariam ou criariam condições para compreendermos os “Sinais” enviados pelo “Todo”. Escaladas de montanhas mágicas, caminhadas por rotas repletas de mosteiros ou igrejas, exploração de cavernas com forças elementais, visitas a cidades que seriam vórtices ou aberturas energéticas do planeta etc. Assim como o surgimento do alpinismo na indústria do turismo desde 1787, como nos descreve Enzensberger, personificaria a ideologia romântica do “elementar”, do “intocado”. 

O valor desses lugares torna-se fetiche cuja única singularidade abstrata reside na dificuldade em alcançá-los.

Mito 4: O Antigo


O turista esotérico viaja em busca de algum conhecimento, saber, tradição perdido na antiguidade ou corrompido ou esquecido pela civilização materialista, consumista e hipertecnológica. O antigo deve ter uma sabedoria necessariamente superior a da atualidade. Ela viaja em busca da chave, de uma relíquia que necessariamente se transformará em um suvenir de valor fetichista. Desconhece que toda a sabedoria da humanidade é recorrente, transmitida por uma linha condutora subterrânea cujos conteúdos ou arquétipos retornam sempre sob nova roupagem de época. Como a própria história da sabedoria gnóstica demonstra: Mani no século III, os Cátaros no século XII, William Blake no século XVIII e no século XX os exemplos de Cioran e Baudrillard em vertentes filosóficas bem diversas.

O Antigo é como um paraíso idílico perdido cujo ticket do turista é o portal que o levará aos saberes secretos. Paradoxalmente, quando uma civilização antiga apresenta uma tecnologia ou sabedoria verdadeiramente diversa e mais avançada do que a nossa (como a precisão matemática apresentada pela pirâmides egípcias), recai a suspeita da impossibilidade disso na antiguidade: recorre-se, então, a visitantes extraterrestres que teriam compartilhado conosco a ciência e até o DNA.

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