terça-feira, maio 21, 2013

A lógica publicitária do "Papai Noel" no filme "Gente Louca"


Em crise criativa, um publicitário bem sucedido descobre que passou grande parte da vida mentindo para ganhar dinheiro. Começa então a fazer o que ele chamará de “Publicidade honesta”: “Linhas Aéreas United: nossos aviões caem menos que o da concorrência” ou “Cigarros Amalfi: Câncer? Talvez. Sabor? Com Certeza!” são algumas das pérolas que são vistas por todos na Agência da Madson Avenue como criações de alguém que enlouqueceu. Logo o protagonista se vê internado em um manicômio, onde fará uma nova agência de publicidade, dessa vez com os pacientes do hospital. “Gente Louca” (Crazy People, 1990) com o comediante britânico Dudley Moore é uma comédia romântica sem pretensões, mas que desenvolve um supreendente pano de fundo crítico. O filme é uma ótima oportunidade para ilustrar a irônica natureza da lógica da crença publicitária sugerida pelo pensador francês Jean Baudrillard: a “Lógica do Papai Noel”.

Um filme despretensioso, uma comédia romântica daquelas que passavam nas sessões da tarde da TV brasileira quando espectadores ociosos (e talvez desempregados) ficam preguiçosamente na frente da televisão digerindo o almoço. “Muito Loucos” (Crazy People, 1990) certamente passaria despercebido pelo blog e nem faria parte do nosso foco de interesse se ele não contivesse um brilhante insight: e se um publicitário resolvesse da noite para o dia contar apenas a verdade dos produtos que anuncia e da própria Publicidade?

Mais do que isso, e se ele começasse a mostrar ao consumidor a verdadeira motivação que o faz querer comprar determinados produtos, motivação que nada tem a ver com necessidades reais ou racionalidades? Que o consumidor adquire muita coisa pela sua própria inutilidade?

Pois essa é o argumento provocativo no interior de um filme que é obviamente estruturado pelas convenções do gênero e se perde nos clichês da comédia romântica com desencontros amorosos que têm uma reconciliação final.


Loucos de um hospício cria uma agência de
"Publicidade honesta"
Além disso, “Muito Loucos” oferece uma surpreendente oportunidade de ilustrar um dos conceitos menos compreendidos do pensador francês Jean Baudrillard em sua obra semiológica de 1968 “O Sistema dos Objetos”: a noção de “lógica do Papai Noel” como crítica da eficácia do discurso publicitário.

Mas antes vamos aos insights oferecidos pelo filme. Estrelado pelo comediante britânico falecido em 2002, Dudley Moore, ele é Emory Lesson, um executivo de publicidade da Madison Avenue bem sucedido que chega a uma situação de estresse e esgotamento criativo. Em meio a essa crise que se associa a uma crise conjugal, Emory cai em si de que passou grande parte da vida mentindo para viver. “Quanto pode dizer sobre a Chrysler e ainda ser honesto... e eu nem gosto de Chryslers”, diz Emory no meio da sua epifania, diante do seu desesperado sócio Stephen (Paul Reiser) que não consegue entender nada.

O prazo para entregas das campanhas publicitárias está acabando e Emory obcecado com o seu novo conceito de “Publicidade honesta”. E ele começa a criar uma série de slogans impagáveis que dão o que pensar: “Aveia Quaker. Esse cereal é gostoso? Quem sabe. Mas pelo menos a caixa é bonitinha”; “Jaguar, macio e vistoso. Para homens que querem fazem sexo com mulheres que mal conhecem”; “United Airlines. Há muitos acidentes aéreos e muita gente morre. Mas garantimos que mais gente chega com vida ao destino nos nossos voos. United: a maioria chega lá com vida”.

Com os custos pagos pela Agência, Stephen interna Emory em um hospital psiquiátrico. Mas sem ninguém saber, as artes finais de Emory são levadas por engano para a gráfica e distribuídas. Inesperadamente tornam-se um sucesso: os consumidores simplesmente passam a amar o novo conceito de “Publicidade honesta” e simplesmente adoram as campanhas “realistas” – “você é gordo e desleixado, faça alguma coisa!” ou “Metamucil é prá você ir ao banheiro. Se não você terá câncer e morrerá”.

Emory é considerado o novo gênio da Publicidade, mas resiste em sair do hospital psiquiátrico. Decide montar lá mesmo sua própria agência transformando os pacientes em publicitários: loucos como são, para eles será muito fácil contar a verdade sobre os produtos. Bem diferente dos publicitários da Madson Avenue que tentam de tudo para conseguirem ser honestos como Emory. Depois de quebrarem a cabeça em brainstormings intermináveis percebem que não conseguirão falar a verdade. Por isso farão de tudo para trazer Emory de volta.

A Publicidade é uma fábula?


"United: a maioria dos passageiros chega vivo"
Ao empreender uma análise semiológica das nossas relações com os objetos e com a própria publicidade deles, Baudrillard queria ir além das tradicionais visões sobre o condicionamento comportamento que o discurso publicitário criaria com os seus enunciados e a apresentação dos produtos. Ele via na Publicidade muito mais uma lógica da fábula e da adesão, semelhante o que as crianças fazem com seus mitos sem se interrogar sobre a existência deles.

Assim como o Papai Noel, onde crianças e adultos não creem nele e nem na sua relação de causa e efeito com os presentes. 
“A crença no Papai Noel é uma fábula racionalizante que permite preservar na segunda infância a miraculosa relação de gratificação pelos pais (mais precisamente pela mãe) que caracteriza a relação da primeira infância. (...) se fundamenta no interesse recíproco que as duas partes têm em preservar a relação. O Papai Noel em tudo isso não tem importância e a criança só acredita nele porque no fundo não tem importância.” (BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos,São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 176).
Para Baudrillard a operação publicitária seria da mesma ordem: nem slogans, textos publicitários ou informações são decisivos para a compra. As pessoas não acreditam em Publicidade mais do que acreditam em Papai Noel. Então para que serve a Publicidade? Para racionalizar o desejo da compra.

Aqui Baudrillard aproxima-se da noção freudiana da racionalização como um álibi perfeito. O ser humano não é um ser propriamente racional, mas racionalizante: a maior parte do tempo agindo por impulso ou compulsão, sem ser “racional” no sentido de pensar antes de agir. Por isso o indivíduo necessita de um álibi para justificar diante dos outros e de si mesmo a razão dos seus atos. Tal como o criminoso que sabe que cometeu o crime, ele necessita de um álibi. Ele não crê nele, mas é bastante útil.

Slogans e toda a retórica publicitária nada mais seriam do que Papais Noeis oferecidos para o consumidor criar uma “desculpa” a si mesmo e aos outros do porquê da aquisição. Um motivo nobre, aqui, uma promoção ali ou uma “relação custo benefício” acolá.

Publicidade: o Papai Noel dos adultos


Pois o filme “Gente Louca” nos apresenta como seria a Publicidade sem esse Papai Noel da racionalização. Se na verdade você pretende viajar para as Bahamas atrás de aventuras sexuais, Emory não oferecerá racionalizações do tipo imagens cartões postais ou discursos multiculturalistas: “Goze nas Bahamas!”, diz o impagável slogan. A
"Jaguar: para homens que querem fazer sexo
com mulhres que mal conhecem"
Publicidade honesta, sem Papai Noel, racionalizações, álibis ou justificativas.

Se você é viciado em cigarros, chega de álibis como “questão de bom senso” ou “baixos teores”: "Cigarros Amalfi: Câncer? Talvez. Sabor? Com Certeza”, diz outro slogan impagável do filme.

Para o filme, o conceito de Publicidade honesta não é a de cumprir aquilo que o produto promete, mas expor a inutilidade ou os desejos impulsivos do consumidor sem discursos indiretos ou pretextos.

“Gente Louca” desnuda a forma de adesão dos consumidores ao discurso publicitário: ela não está no campo do condicionamento-reflexo ou da persuasão por meio da retórica. Para Baudrillard, a linguagem publicitária está no campo da crença e da regressão.
“O indivíduo é sensível à temática latente de proteção e de gratificação, ao cuidado que se tem de solicitá-lo e persuadi-lo, ao signo, ilegível à consciência, de em alguma parte existir alguma instância (no caso, social, mas que remete diretamente à imagem da mãe) que aceita informá-lo sobre seus próprios desejos, preveni-los e racionalizá-los aos seus próprios olhos” (BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos,São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 176).
O que Baudrillard e o filme “Gente Louca” pretendem mostrar é que o consumidor mantém o mito da persuasão e convencimento publicitário para esconder uma relação regressiva de proteção e gratificação com uma instituição social. Assim como a criança mantém o mito do Papai Noel (embora saiba que ele não exista) para racionalizar a relação de gratificação com os pais, da mesma forma o adulto mantém o mito da Publicidade (embora saiba que tudo que ela diz é mentira) para racionalizar a gratificação dos seus impulsos, compulsões e vícios regressivos.

Ficha Técnica

  • Título: Gente Louca (Crazy People)
  • Diretor: Tony Bill, Barry Young
  • Roteiro: Mitch Markowitz
  • Elenco: Dudley Moore, Daryl Hannah, Paul Raiser, David Paymer
  • Produção: Paramount Pictures, Intuitive TV
  • Distribuição: Paramount Home Video
  • Ano: 1990
  • País: EUA


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