sábado, outubro 19, 2013

Tem alemão no Campus? Repórter sofre acidente com bomba semiótica na USP


A ansiedade em corresponder a uma pauta pré-estabelecida fez uma repórter da rádio CBN detonar precipitadamente uma bomba semiótica que estava sendo montada na cobertura de uma greve dos estudantes no Departamento de Letras da USP. Graças a uma “barrigada jornalística” (a repórter confundiu a mensagem “Alemão no Campus” de uma professora do Departamento com uma mensagem cifrada da malandragem ao enfrentar inimigos), a repórter expôs sem querer o mecanismo de funcionamento e a técnica de montagem de mais uma das bombas semióticas usadas na guerrilha semiológica midiática atual onde se pretende criar uma atmosfera de caos e pré-insurgência que supostamente estaria dominando o País. Além disso, foi criado um surpreendente evento sincrônico: um acidente com uma bomba linguística em um espaço justamente dedicado ao estudo, ensino e pesquisa da linguagem.

Uma repórter da rádio CBN foi vítima de um acidente durante a montagem de uma bomba semiótica na gravação de uma matéria, na USP, sobre a greve dos estudantes na manhã do dia 11 de outubro. Ansiosa por corresponder à pauta já pré-estabelecida pelos seus editores-chefes (criminalizar e desmoralizar as ações e discursos dos grevistas para transformá-los em exemplares do caos e desordem que estaria dominando o País), a repórter acabou dando uma “barrigada” (no jargão do Jornalismo, uma matéria falsa ou errada publicada com o estardalhaço de uma grande novidade). O arquivo foi prontamente retirado do ar pela emissora, reeditado e agora disponível sem a “barrigada” que detonou precipitadamente a bomba semiótica. Esse é a íntegra do áudio da matéria:
“Na Faculdade de Letras, grevistas montaram piquetes com cadeiras empilhadas para impedir o acesso às salas de aula. No interior do prédio, onde a gente conseguiu entrar, havia também um recado de uma das professoras, que dizia “Alemão no Campus”, uma referência ao termo dado nas favelas ao falar dos inimigos. Ela dizia também que os alunos deviam ficar atentos aos e-mails, para saber das próximas atividades.(...)”
Não é necessário muito esforço dedutivo para interpretar que “Alemão no Campus” dentro do departamento de Letras da FFLCH refere-se aos cursos extra-curriculares de língua alemã oferecidos a públicos internos e externos, assim como outros cursos oferecidos à comunidade acadêmica - “Italiano no Campus” ou “Francês no Campus”. E que os e-mails aos quais a professora se referia nada tinham a ver com informações de táticas de combate contra os “inimigos” ou “alemães”, mas sobre próximas datas do curso.

Mas a ansiosa repórter a CBN nessa simples barrigada colocou a nu todos os mecanismos de construção de uma bomba semiótica (manipulação midiática onde se utilizam as mais sofisticadas ferramentas semiológicas e retóricas) que nos últimos tempos a grande mídia vem detonando, travestida em informação, com o objetivo político de construir junto à opinião pública a percepção de que a Nação estaria em um momento de pré-insurgência civil, caos e baderna.

A pauta: edição e mentira
Na verdade, a guerrilha semiótica empreendida pela grande mídia tem como objetivo principal manter a opinião pública em permanente estado de tensão desde irrupção das grandes manifestações de rua de junho. Como se as manifestações não apenas tivessem continuado, mas tivessem se transformado em manifestações genéricas (não importa se contra o poder municipal, estadual, federal, contra uma entidade privada ou autarquia), apenas “manifestações”, índices de um país que estaria à beira do abismo.

A ansiedade da repórter em corresponder à pauta determinada pelos seus superiores acabou revelando como se articulam o nível retórico e semiológico na montagem das bombas semióticas em geral.

Nível retórico


           Em jornalismo, a pauta é o que rege o trabalho do repórter orientando-o na edição: quais fontes devem ser buscadas, perguntas a serem feitas, “hipóteses” que devem ser necessariamente comprovadas etc. No momento atual de pesada atmosfera política onde a própria mídia admite explicitamente ser a única oposição política consistente ao atual governo, as pautas se revestem de importância fundamental para os repórteres conseguirem colher signos (frases, declarações, eventos etc) que possam ser reduzidos a índices que comprovem as “hipóteses” elaboradas nas reuniões de pauta.

       A função do nível retórico da bomba semiótica e saturar semiologicamente esses índices para que se tornem “motivados” – na conceituação da linguística, um signo motivado é aquele que guarda uma relação de pregnância com o objeto representado, isto é, uma relação natural e inconfundível, tal como a fumaça em relação ao fogo ou a fotografia em relação ao objeto fotografado.

                A retórica vai saturar ou forçar essa motivação, dando o caráter ideológico ou propagandístico ao discurso. Para a ansiosa repórter, o aviso “Alemão no Campus” só poderia ter uma relação com a linguagem da malandragem do morro, favelas e periferias urbanas. Em uma linguagem radiofônica, o signo ideal para a criação de uma imagem mental perfeita nos ouvintes da rádio CBN: a bandidagem descendo o morro e invadindo o asfalto da classe média.
Feios, sujos e malvados na USP?

                O termo “favela”, usado na locução, cria um signo genérico e sem mais qualquer significado sociológico ou geográfico (morro, periferia urbana etc.): é a “favela” onde estão os inimigos internos imaginários dos ouvintes da CBN, de onde surgem as hordas bárbaras que querem destruir a ordem dos cidadãos de bem – no caso, os estudantes da USP.

      Mas essa estratégia retórica guarda ainda outro personagem: o professor. Como símbolo de sacerdócio, pureza e elevação no imaginário social, como aquele que lida com uma atividade intelectual e “superiora”, ele pode ser facilmente convertido em escândalo ao mostrá-lo envolvido em práticas corruptas ou “baixas”: quem proferiu a suposta mensagem de aviso sobre os inimigos no campus, segundo a ansiosa repórter, teria sido uma professora do Departamento de Letras.

  Com isso, a imagem mental do ouvinte da CBN está completa: professores corruptos da USP envolvidos em táticas de guerrilha ajudando bárbaros favelados infiltrados em uma instituição pública. Uau! Perfeito! A construção de uma “paisagem sonora” ideal, ainda reforçada pelo tom de voz agudo e ansioso da repórter – confira o áudio abaixo. Seu tom de voz exasperado teria sido proposital para criar uma atmosfera de tensão ou apenas índice da ansiedade incontida da repórter em corresponder aos seus superiores da CBN e que fez a bomba semiótica disparar antes do tempo?

Nível semiológico


                Aqui está o núcleo da bomba, a delicada operação semiológica de transformação do símbolo em índice, de converter aquilo que é arbitrário ou significado por convenção em signo motivado. “Alemão no Campus” é uma mensagem interna da comunidade acadêmica, composta por signos cujos significados são estabelecidos por convenção, isto é, são determinados por uma espécie de acordo linguístico, entre emissores e receptores de um espaço bem específico.

                Determinada que estava pela pauta que conduzia (a necessidade de encontrar em um movimento reivindicatório interno da USP índices que confirmassem a hipótese da criminalização e do clima de pré-insurgência civil que supostamente se encontra o País), a ansiosa repórter da CBN empreendeu uma arriscada operação semiológica: transformar uma mensagem cifrada e específica em um sinal evidente de uma criminosa organização por trás do caos e desordem.

                Vimos em postagens anteriores (veja links abaixo) que essa operação semiológica é o núcleo de todas as bombas semióticas: por exemplo, converter a bandeira nacional (símbolo de união nacional) em índice de violência e caos ao destacá-la queimada, rasgada ou pisoteada.

                A arriscada operação semiológica da repórter resultou em um salto fatal: faltou a verossimilhança, efeito de realidade fundamental para que tudo funcionasse.

                Porém, há um incrível evento sincromístico nesse episódio: uma bomba semiótica explode acidentalmente nas mãos de uma repórter em pleno Departamento de Letras, isto é, uma operação linguística terrorista falha no próprio local onde a linguagem é o objeto científico de estudo, ensino e pesquisa. No mínimo, o evento pode se transformar em ótimo estudo de caso para iniciantes no mundo semiológico e semiótico de Ferdinand Saussure e Charles Peirce.


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