domingo, novembro 10, 2013

O lado sombrio do mundo Disney no filme "Escape From Tomorrow"


Sensação no Festival de Sundance desse ano, o filme independente “Escape From Tomorrow” (2013), rodado sem autorização no parque da Disney World e Epcot Center, foi lançado mesmo com a ameaça de possíveis ações judiciais. Em um cruzamento do messianismo do grotesco de David Lynch com o surrealismo de Buñuel e filmado em preto e branco, vemos um protagonista que tenta viver o último dia de férias na Disneylândia como um dia memorável, mesmo depois de saber que perdeu o emprego e esconder a notícia da família. Mesmo estando dentro do mundo de sonhos criado pelo imaginário do parque, aos poucos ele cria um pesadelo paranoico: cabeças decapitadas, princesas da Disney que se transformam em prostitutas para empresários japoneses e uma gigantesca conspiração por trás da marca Disney sob o apoio tecnológico da corporação Siemens.

A estreia de “Escape from Tomorrow” no Festival de Sundance de cinema independente esse ano foi impactante. “É o melhor filme que talvez você jamais tenha a chance de ver”, diziam os críticos no festival. Isso porque o filme foi rodado sem autorização na Disney World e Epcot Center e que, certamente, a pata corporativa de Mickey iria cair pesada com ações judiciais e a produção jamais seria lançada. O filme agora ocupa uma posição análoga no cinema independente ao lançamento do filme “A Bruxa de Blair” realizado há mais de uma década.

Pois o filme foi lançado comercialmente nesse semestre e surpreendentemente verificou-se muito pouca reação da Walt Disney, o que criou uma espécie de decepção nos críticos que esperavam muito sangue e batalhas jurídicas, levando a supor que talvez a crítica do filme em relação ao “maravilhoso mundo de Disney” não tenha sido dura o suficiente. Claro, isso em um país como os EUA onde o termômetro do sucesso corresponde ao sensacionalismo da quantidade de processos contra um produto cultural, o que determinaria o sucesso de bilheteria pelo escândalo.


Em uma narrativa que parece um cruzamento do messias do grotesco David Lynch com o cinema surrealista de Buñuel, o filme cria uma iconografia sombria em um lugar reconhecido pelas diversões infantis e contos de fadas: tudo se transforma em um universo paranoico de cabeças decapitadas, princesas da Disney que se transformam em prostitutas para empresários japoneses e uma gigantesca conspiração por trás da marca Disney sob o apoio tecnológico da corporação Siemens. Para o leitor perceber a diversidade de leituras possíveis acompanhe a compilação de sinopses desses três críticos:

(a) “Um dia na vida de uma família em férias na Disneylândia. Apenas o dia começa quando Jim (Roy Abramsohn) recebe um telefonema de seu chefe dizendo que quando retornar das férias não encontrará mais trabalho. A partir daí as coisas só podem ir de água abaixo, mas tudo é filtrado através da aparência alegre do parque. Ao longo da narrativa temos uma epidemia da gripe do gato, lavagens cerebrais feitas por ciborgues e o flerte por adolescentes francesas, o que só serve para demonstrar que ‘coisas ruins acontecem em qualquer lugar, mesmo no local mais feliz da Terra’” (L. Rob Hubbard).

(b) “O perturbado homem de família, Jim White, tenta aproveitar seu último dia na Disney World, mas ele se distrai com um par de adolescentes francesas, desmaios e visões de acontecimentos sinistros em um idílico parque. Na medida em que a intensidade das visões de Jim cresce, assim também aumentam as tensões entre ele e sua família e logo parece que poderá perdê-los ao estranho poder da Disney World. Será que realmente sentirá falta deles, ou a Disney lhe oferecerá algo melhor?” (Bem Sunde).

(c) “Um homem de meia idade (que se parece muito com Tom Cruise) é demitido por telefone no meio das férias com sua família na Disney World, e começa a se despedaçar física e mentalmente com a sua família, enquanto secretamente começa a flertar com duas adolescentes francesas durante a valsa no lugar mais feliz da Terra” (Ryan Aarset).

Pesadelo no “lugar mais feliz da Terra”

“Escape From Tomorrow” é o pesadelo tragicômico do inconsciente, e a aparição da paranoia e tensão sexual no “lugar mais feliz da Terra”. Tudo começa com uma típica situação corporativa onde as relações profissionais flexíveis e descompromissadas criam situações como essa: ser demitido pelo telefone, e no meio das suas férias. E ainda o chefe termina com uma frase eufemística que é a chave de compreensão do filme: “Jim, me escute. Não deixe sua imaginação correr solta. É apenas um período de transição”. Típico consolo motivacional dos discursos corporativos que pretendem transformar situações de crise em oportunidade de crescimento pessoal.

Jim vai esconder da família essa notícia para não estragar o último dia de férias. Mas ele provavelmente nem poderá pagar a conta no final, seu filho tem problemas com ele e sua esposa não o vê mais como o companheiro para passar alegremente os dias. Aos poucos, a narrativa vai misturando as preocupações adultas (desejos proibidos por ninfetas, a sexualidade, a doença, o envelhecimento e morte entrelaçados) com referências a lendas urbanas sobre a Disney World (decapitações em montanhas-russas, sticks de peru que seriam na verdade feitos de carne de emu, empregadas do parque que seriam, na prática, prostitutas para estrangeiros ricos, salas secretas no subsolo do parque, robôs etc.) e problemas reais que surgem nesses parques (vômitos, filhos extraviados etc.).

O que é instigante nessa estreia do diretor Randy Moore é a sua sensibilidade gnóstica pela narrativa em abismo: vemos o protagonista criar um pesadelo paranoico dentro do mundo de sonhos criado pelo imaginário do parque. Sequências ousadas, a estranha fotografia em preto e branco (que às vezes produz bizarras profundidades de campo), cortes rápidos, efeitos de animatronics, alusões às releituras dos contos de fadas de Walt Disney tudo em meio a misteriosas luzes piscando... pesadelo dentro de sonhos. Impossível dizer que o personagem mistura ficção e realidade, pois ele já está no imaginário corporativo da Disney que já fez essa fusão há muito tempo.

Origens míticas de “Escape From Tomorrow”


“Escape From Tomorrow” vai se inspirar em três fontes míticas: primeiro, a origem sombria dos parques de diversões nos chamados freak shows dos séculos XVIII-XIX; segundo, as origens psiquicamente cruéis e sexualmente ambíguas dos antigos contos de fadas; e terceiro, o mundo da fantasia e da imaginação como fuga da realidade.

Se observarmos em toda história do cinema, encontraremos a recorrência da associação simbólica do mundo dos parques de diversões e circos (assim como seus subprodutos como palhaços, bonecos ventríloquos e mágicos) com o terror, mortes, monstros, manipulações das mentes, sequestros e assassinatos – de filmes como “O Gabinete do Dr. Caligari” a Chucky, “O Boneco Assassino” ou “Jurassic Park”. Por que espaços destinados à diversão e fantasia são simbolizados pelo cinema de uma forma tão negativa?

Nas suas origens, sempre a atração principal de circos e parques de diversões foram os chamados freak shows: atrações onde eram expostas anomalias e aberrações humanas e zoológicas como a mulher gorda e barbada, xipófagos, gigantes, animais com duas cabeças, fetos humanos e animais mutantes, hermafroditas e toda uma variedade da fauna de coisas bizarras. Essa capacidade ambígua de ao mesmo tempo atrair e repelir tornou os freak shows na atração central desses espaços. Com o avanço das ciências e da medicina que passaram a dar uma explicação racional para essas anomalias, o appeal sobrenatural da atração entrou em declínio. Mas o imaginário permaneceu no cinema a cada cena de perigo em montanha russa ou imagens de palhaços freaks e assassinos.

Outra questão são as origens dos contos de fada explorados pelo mundo Disney. No século XIX os Irmãos Grimm foram responsáveis por reunir muitas lendas e histórias que circulavam oralmente pela Europa e publicaram-nas filtrando muito dos elementos sombrios que as marcavam como a crueldade com crianças, sexualidade e mortes. Nos séculos XVIII-XIX não existia o conceito de “infância” tal como partilhamos hoje através da mídia associado à pureza e inocência. Visto como um adulto em miniatura, a criança era exposta a todas as mazelas do mundo adulto, e isso era visto como algo natural. A livre exploração do trabalho infantil nos teares da indústria têxtil na Inglaterra, por exemplo, era apenas a faceta de uma exploração mais cruel de toda a força de trabalho, tão bem descrita por Karl Marx na obra “O Capital”.

Contos como “A Bela Adormecida”, “Chapeuzinho Vermelho” ou “João e Maria” nas suas origens expõem explicitamente assassinatos, canibalismo, estupros e tensão sexual como retrato de um cotidiano que não era escondido das crianças. Mais do que isso, as crianças participavam dessas cenas, como bem explora filme “Escape From Tomorrow”.

Mesmo nas versões recicladas e assépticas dos contos de fadas feitas pela Disney, é perceptível a latência desse lado sombrio nas narrativas, mesmo com todos os finais felizes.

E por último, a sátira que o filme faz com o slogan da Disney “Walt Disney World Magical Beginnings”. Sem querer fazer um gigantesco spoiler, o máximo que podemos comentar é que o filme explora a possibilidade de o mundo dos sonhos industrializados, de fato, nos dar a possibilidade de uma segunda chance, de ser concedida a nós a oportunidade de sermos uma outra pessoa mais feliz e realizada. Quer dizer, se de fato as fantasias da indústria do entretenimento podem transformar as nossas vidas ou são, apenas, uma fantasia escapista que apenas nos afunda ainda mais na realidade frustrante.

Por isso ficamos com a visão do filósofo francês Jean Baudrillard sobre a Disneylândia:
“O imaginário da Disneylândia não é nem verdadeiro nem falso, é uma máquina de dissuasão encenada para regenerar no plano oposto a ficção do real. Daí a debilidade deste imaginário, a sua degenerescência infantil. O mundo quer-se infantil para fazer crer que os adultos estão noutra parte, no mundo ‘real’, e para esconder que a verdadeira infantilidade está em toda parte, e é a dos próprios adultos que vêm aqui fingir que são crianças para iludir a sua infantilidade real” (BAUDRILLARD, Jean. “Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio d’Água, 1991, p. 21.
                O filme pode ser adquirido pelo site da Amazon e também disponível em torrent na rede, assim como legendas em português. Sem data prevista para distribuição no Brasil.

Ficha Técnica:

  • Título: Escape From Tomorrow
  • Diretor: Randy Moore
  • Roteiro: Randy Moore
  • Elenco: Roy Abramsohn, Elena Schuber, Katelyn Rodriguez, Jack Dalton.
  • Produção: Mankurt Media
  • Distribuição: Spotlight Pictures
  • Ano: 2013
  • País: EUA

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