domingo, dezembro 29, 2013

Retrospectiva e perspectivas das bombas semióticas para 2014


Tudo leva a crer que 2013 foi uma espécie de campo de testes para o aprimoramento da tecnologia bélica semiótica. O jogo mais importante está sendo disputado no contínuo midiático, por meio da detonação de bombas criadoras de ondas e estilhaços de signos que moldam na percepção pública um “clima de opinião”. Em cada redação de veículo de grande imprensa e em cada ilha de edição das grandes emissoras de TV foi testado e consolidado um incrível arsenal de recursos retóricos, linguísticos e semiológicos.  Tudo orientado por um script simples composto por três plots que é a base da programação das bombas semióticas. Está tudo pronto para elas serem detonadas, dessa vez de forma sistemática, em 2014 em um ambiente midiático supercondutor de ondas de choque com a realização de megaeventos como Copa do Mundo e eleições. 


        Mesmo com toda a atmosfera de festas de final de ano que supostamente inspira nas pessoas generosidade e reflexão, a grande mídia não perdeu tempo e sinalizou de forma bem clara o que nos espera para o próximo ano:


(a) Em uma matéria de fatos diversos no último bloco no telejornal SPTV da TV Globo no dia 27/12 sobre rituais e supertições populares para atrair sorte no ano novo, um pai de santo é consultado pela repórter sobre as perspectivas para 2014. Os búzios são jogados e ele adverte: “esse ano foi de antagonismos e conflitos e o próximos será a mesma coisa, mas haverá transformações. E uma nuvem negra se afastará da cidade de São Paulo...”;

(b) uma enquete foi feita com colunistas do jornal O Globo para saber o que eles esperam para 2014: Carlos Alberto Sardenberg, Míriam Leitão e Zuenir Ventura torcem por mais protestos – “protestos vigorosos”, salienta Sardenberg;

(c) Jornais e emissoras de TV passaram os últimos dias antes do Natal fazendo acrobacias matemáticas para provar que, apesar das vendas terem aumentado 2,7% em relação ao mesmo período do ano passado, foi o Natal mais fraco em 11 anos;

(d) Elio Gaspari em sua coluna publicada em pleno dia de Natal na Folha e O Globo lembra que o próximo ano será de eleições, mas também lembra que nesse ano aprendemos que existe “uma forma mais direta de expressão”, e exorta: “vem pra a rua você também!”.

O Script



Desde que Maria Judith Brito, na época presidente da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), afirmou em 2010 que diante de uma oposição politicamente fragilizada os meios de comunicação seriam o verdadeiro partido de oposição, a grande mídia criou rapidamente um script dentro qual qualquer evento ou notícia deveria ser encaixado. Um script simples, composto basicamente por três  plots:
(a) o país está à beira do colapso econômico pela inflação galopante e perda de credibilidade dos investidores externos porque não faz a “lição de casa”;

(b) Todos os escalões do Governo estão contaminados por uma corrupção endêmica cuja origem está no PT. Essa corrupção produz uma administração pública ineficiente e serviços públicos caros;

(c) Por esse motivo, a escalada de protestos nas ruas que é sinalizador do caos e baderna em um país à beira do descontrole e em estado pré-insurrecional.

E pelo que acompanhamos nesse ano a declaração da presidenta da ANJ não foi mera bravata ou elogio à liberdade de imprensa: em cada redação de veículo de grande imprensa e em cada ilha de edição das grandes emissoras de TV foi mobilizado um incrível arsenal de recursos retóricos, linguísticos e semiológicos, tão sofisticados que certamente só mais tarde pesquisas acadêmicas transformarão esses momentos pelos quais estamos passando em objetos de dissertações e teses e serão analisados de uma forma mais profunda em seu alcance e natureza.

Paul Lazarsfeld: o fator predisposição e 

memória seletiva nos receptores
Essa mobilização resultou em intervenções pontuais da grande mídia na opinião pública através do que denominamos como “bombas semióticas”: conjunto de artefatos que foram detonados na opinião pública ao longo do ano (mais precisamente após as grandes manifestações de rua em junho) – travestidos de informação através de mídias impressas, digitais ou audiovisuais, seu objetivo não é a persuasão ou convencimento, mas a criação ondas de choque ou disseminação estilhaços de signos na esfera pública. São bombas cujo alvo não é a razão, mas a emoção.

Transmitidos como informação (notícia, opinião, imagens etc.) escondem construções arbitrárias de significados sob a saturação retórica (figuras de linguagem) que escondem complexas operações semióticas (regressão sígnica, contiguidades, similaridades, composições, simbolismos de cores etc.).

Como pudemos perceber ao longo dos meses, o objetivo não é o convencimento político-partidário dos receptores. Nesse aspecto, as teses do pesquisador Paul Lazarsfeld (líder de estudos empíricos de recepção nos EUA na década de 1940) continuam bem atuais: há um fator predisposição muito forte nos receptores – eles só veem o que querem ver, ou compreendem apenas o que querem compreender. Em geral, os conteúdos midiáticos apenas reforçam predisposições já existentes por meio da seletividade da recepção e da memória. Por exemplo, as imagens dos “mensaleiros” sendo levados como prisioneiros pela Polícia Federal a Brasília não tiveram qualquer efeito pedagógico: as  imagens apenas reforçaram e acirraram tanto posições anti-petistas quanto petistas já consolidadas.

Então, para quem falam as “bombas semióticas”? Falam para a maioria indiferente (Lazarsfeld falava em nove em cada dez receptores) cuja relação com os conteúdos midiáticos é a de desfrute, gozo, de ver “o mundo em marcha” (Ramonet) através da dinâmica, ritmo e cores nos telejornais. Para eles, a relação com a mídia é de consonância, assimilando ondas de choque que periodicamente tornam-se “a” moda dominante, “o” tema do momento, “a” onda da que envolverá a todos nas próximas semanas.

Bombas semióticas não operam por convencimento ou argumentação, mas por percepção e sedução. Por isso esses artefatos bélicos seriam muito mais sofisticados do que slogans publicitários que trabalham por repetição e condicionamento. Bombas semióticas são intervenções pontuais que operam por choque para criar uma consonância e um “clima de opinião”.

 Para compreendermos o seu funcionamento é necessária uma engenharia reversa, pois até agora só conseguimos estudá-las após as suas detonações através dos seus registros impressos, digitais ou audiovisuais. Vamos fazer uma retrospectiva das principais descobertas conseguidas através da aplicação das ferramentas da Semiótica, a ciência dos signos, na desmontagem reversa dessas bombas liguísticas.


As primeiras bombas semióticas


Depois das semanas iniciais em que a mídia acompanhou as primeiras manifestações de rua com perplexidade taxando os manifestantes de criminosos e politicamente burros, descobriu-se que elas poderiam ser encaixadas no script do abismo político-econômico-institucional descrito acima. As manifestações passaram, então, a ser reportadas como sinais inequívocos da confirmação dos três plots do script.

No dia 29/06 analisamos dois exemplares de bombas semióticas: a capa autodenominada como “histórica” da revista Veja e outra do Portal Terra – veja “Bombas Semióticas Explodem na Mídia”. Descobrimos o primeiro mecanismo de funcionamento: a regressão do símbolo ao índice (dessimbolização) tanto da figura da bandeira nacional quanto dos manifestantes. Tanto a bandeira quanto a imagem dos manifestantes têm um forte símbolo de agregação, união e força. Mas o significado geral a ser transmitido pelas matérias deve ser de abandono e impotência diante do caos. A bandeira é mostrada jogada, esgarçada, abandonada na penumbra; enquanto os manifestantes são mostrados sempre isolados como que perdidos, observando a tudo impotentes. A força simbólica é esvaziada para ser reduzida a índice (sinal) de evidente descontrole e instabilidade.

Retoricamente verificamos que são peças carregadas, em composições que remetem ao cinema (plano inclinado como nos filmes de perseguição para expressar instabilidade e violência), figuras em contra-luz, tudo explicitamente posado, cênico, teatral. Curioso é que, mesmo tendo perdido a natureza espontânea de flagrante, ainda os leitores as tomam como fotojornalismo. Talvez porque o senso comum ainda toma as imagens como decalques da realidade, e não um exercício arbitrário de intencionalidade do repórter ou do fotógrafo.


A bomba semiótica do “infotenimento”


Essa foi uma bomba de difícil desmontagem por não ser uma simples manipulação ou encobrimento de fatos, mas por envolver um elemento “meta”: a simulação. Mais precisamente, programas que pretendem ensinar lições de moral e cidadania através de simulações. Mais precisamente através de “pegadinhas”, dessa vez “do bem” e na TV. Sob o pretexto de nobres propósitos programas como o “Fantástico” da Globo e “CQC” da Band criaram uma “bomba semiótica” sob a forma do “infotenimento” (informação + entretenimento), com situações do cotidiano simuladas para flagrar contraventores da ordem, da moral e dos princípios de cidadania para nos ensinar que o bem sempre compensa. Ambos os programas alinham-se ao plot (b) do script geral descrito acima: a pauta do moralismo e do combate à corrupção – veja o post “A bomba semiótica das pegadinhas do “Fantástico” e “CQC””.

Os quadros “Vai Fazer O Quê?” do Fantástico da TV Globo e o “Olho Por Olho” do CQC da Band são bombas complexas por primeiro criar efeitos de realidade para a simulação parecer real (imagens granuladas, planos inclinados etc.) e, ao mesmo tempo fazer constante metalinguagem – mostrar ao espectador como a pegadinha é produzida.

Observamos na época que essa moralização por meio de pegadinhas poduziria uma cidadania esquizofrênica: Enquanto no “Fantástico” o prazer sádico é envergonhado porque jogado para trás de camadas de discursos de cidadania e virtude, no “CQC” sadismo, desejo de vingança e princípios de cidadania são colocados no mesmo plano. Pensando de forma freudiana, o “Fantástico” nos apresenta uma cidadania neurótica, enquanto o “CQC” constrói uma cidadania esquizofrênica.


O revelador acidente com bomba semiótica


A produção de bombas semióticas passou a ser tão emergencial para a grande mídia que parecer ter começado a contaminar o senso dos repórteres. A ansiedade em corresponder a uma pauta pré-estabelecida fez uma repórter da rádio CBN detonar precipitadamente uma bomba semiótica que estava sendo montada na cobertura de uma greve dos estudantes no Departamento de Letras da USP. Graças a uma “barrigada jornalística” (a repórter confundiu a mensagem “Alemão no Campus” de uma professora do Departamento com uma mensagem cifrada da malandragem ao enfrentar inimigos), a repórter expôs sem querer o mecanismo de funcionamento e a técnica de montagem de mais uma das bombas semióticas – veja o post “Tem alemão no campus? Repórter sofre acidente com bomba semiótica na USP”.

Nesse momento, as manifestações de rua já haviam entrado em declínio, mas a grande mídia tinha que fazer seus repórteres irem a campo para encontrar sinais ou evidências de que “manifestações genéricas” (não importa se contra o poder municipal, estadual, federal, contra uma entidade privada ou autarquia) pipocando por todos os lados seriam índices de um País que estava à beira do abismo
.
Nesse acidente com a repórter foram expostos em um só golpe os mecanismos semiológicos e retóricos de uma clássica bomba semiótica: professores corruptos da USP envolvidos em táticas de guerrilha ajudando bárbaros favelados infiltrados em uma instituição pública; e a mensagem “tem alemão no campus” como índice inequívoco do caos que se manifesta no cotidiano, até no local onde nossos filhos estudam...


Uma arma contra as bombas semióticas?


Um outro acidente com outro ansioso repórter que queria confirmar a pauta entregue pelos seus editores. Mas esse acidente que acabou nos fazendo descobrir uma possível arma contra às bombas semióticas: o simulacro.

Um aluno do curso de Ciências Contábeis da USP simulou diante de fotógrafos e jornalistas ser um candidato atrasado na prova do Enem. A foto dele dramaticamente tentando escalar as grades da Uninove, na Barra Funda, São Paulo, saiu em portais da Internet e primeira página do jornal Folha de São Paulo ao lado de uma sombria manchete: “Quase um terço dos candidatos não faz Enem”. Aqui, a bomba semiótica pretendida era, por atração metonímica, registrar qualquer episódio, imagem ou declaração como uma comprovação de que o Enem é uma catástrofe sempre à beira da fraude. Um serviço público ineficiente e essencialmente corrupto – dessa forma a bomba semiótica atenderia ao fator (b) do script orientador da programação das bombas semióticas – veja o post “Estudante implode bomba semiótica do Enem”.

Essa simulação do estudante da USP abriu uma nova perspectiva na guerrilha semiótica atual: combater a manipulação com a simulação. Como fizeram um grupo de manifestantes em Lisboa em outubro desse ano: para furar o bloqueio midiático, através de redes sociais fizeram uma simulação de uma manifestação supostamente a favor da política de austeridade imposto pela “Troika” (Banco Central Europeu, FMI e Comissão Europeia) a Portugal. Os jornalistas foram na onda e, depois, descobriram que se tratava de uma estratégia irônica de atrair a atenção dos portugueses para o verdadeiro manifesto: “Que se lixe a Troika!”.


Black Blocs, mulheres, beagles


A grande mídia recebeu os black blocs com um misto de acusação e fascínio. Da condenação de “baderneiros” (dentro do clichê narrativo de todo telejornal que começava: “a manifestação começou pacífica, mas baderneiros...”), aos elogios de Caetano Veloso no jornal O Globo sobre “os lindos olhos amendoados do anarquismo” referindo-se à foto de uma líder black bloc publicada em revistas semanais de notícias. Certamente, a grande mídia viu nos black blocs mais munição para as bombas semióticas: eles seriam promovidos índices vivos do estado pré-insurgência que dominaria o País – veja o post “A bomba semiótica da Black bloc goog-bad girl”.

Mas acrescenta-se o elemento feminino como uma estratégia retórica de não só trazer sex-appeal e simpatia (afinal, são jovens que parecem ser de classe média!) como também ressaltar o aspecto de fragilidade e vitimização diante da força bruta policial. Simplesmente a grande mídia adora mulheres vitimadas pela repressão, como a militante brasileira do Green Peace presa na Rússia ou as roqueiras da banda Pussy Riot presas também na Rússia por ridicularizar publicamente Vladimir Putin.

No caso da bomba semiótica dos cães beagles resgatados de um laboratório em São Roque (SP), a tática retórica associou manifestantes femininas a lindos cães típicos de classe média, conferindo um aspecto misto de indignação e identificação com os protagonistas – veja o post “A bomba semiótica do resgate dos cães de laboratório”.

E mais índices de insegurança, dessa vez criminógenos, com depoimentos de pessoas que não queriam se identificar, dando depoimentos em contra-luz ou de costas com a voz alterada por filtros. Imagens de ativistas encapuzados para reforçar ainda mais uma atmosfera assustadora de crime organizado.

Perspectivas para 2014


Desde que a grande mídia se auto-nomeou como partido de oposição, logo percebeu que nenhum batalhão de Jabores e Mervais poderia convencer os receptores através do simples discurso ou pelo simples bombardeio de notícias negativas ao Governo Federal. A reeleição de Lula em 2006 no meio da avalanche do escândalo do mensalão, dólares na cueca e imagens de uma pilha de dinheiro descoberto pela Polícia Federal para suposta compra de dossiês do adversário pelo PT e, depois, a eleição de Dilma foi um duro golpe.

Um Arnaldo Jabor serve, no máximo,
para arregimentar e manter alta
a moral da tropa
Comprovou as teses de Paul Lazarsfeld sobre as predisposições e memórias seletivas da recepção. Ou seja, um Arnaldo Jabor ou um Merval servem, no máximo, para arregimentar e manter alta a moral da tropa – isto é, reforçar convicções já existentes nos líderes de opinião da esfera pública que os seguem. De nenhuma forma conseguem convencer, converter ou fazer inculcação político-partidária.

Porém, a grande mídia continua ótima na sua função de criar um “clima de opinião”, no sentido dado pela teoria do agendamento como um efeito de acumulação, consonância e onipresença de uma pauta de temas, criando uma percepção de realidade para a opinião pública.

A grande mídia também percebeu que redes sociais e blogs podem facilmente desmontar argumentos e discursos de seus formadores de opinião de plantão nas colunas impressas e editoriais de telejornais. Porém, blogueiros e usuários das redes digitais ainda têm suas postagens pautadas pelo “clima de opinião” imposto pela grande mídia através das bombas semióticas. Em outras palavras, a grande mídia ainda possui a capacidade de criar um horizonte de eventos diante do qual são trabalhadas as expectativas, debates, choques e conflitos.

Tudo leva a crer que 2013 foi um campo de teste para o aprimoramento da tecnologia bélica semiótica. Hoje, os formadores de opinião como Merval, Sardenberg, Miriam Leitão, Jabor etc. tornaram-se meras cortinas de fumaça para atrair com seus discursos a ira ou os aplausos dos respectivos líderes de opinião na sociedade.

O jogo mais importante está sendo jogado no contínuo midiático, na detonação de bombas que criam ondas na percepção pública do “clima de opinião”. O script simples de três plots que é a base da programação das bombas semióticas não é para ser “argumentado”: isso é deixado para os formadores de opinião da grande mídia. O mais importante é a criação de impactos que moldem a percepção de que o cotidiano está cada vez mais tão inseguro e caótico que não saberemos o que nos espera no dia seguinte. E ainda mais em um esperado ambiente supracondutor de ondas de choque com a realização de megaeventos midiáticos no próximo ano como Copa do Mundo e eleições.

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