terça-feira, janeiro 28, 2014

A bomba semiótica do fusca em chamas

O bordão “Não tem arroz, não tem feijão, mas assim mesmo o Brasil é campeão” em 1962 e o atual “Não Vai Ter Copa” demonstram que as bombas semióticas são a principal arma de uma guerra psicológica. Se no passado a ação era feita através de cinedocumentários exibidos para as classes pobres por meio de projetores montados em chassis de caminhões abertos, agora é por meio de produção de eventos com alto rendimento midiático, causando impacto mesmo em manifestações com baixo número de "manifestantes". O caso mais recente foram as dramáticas imagens do fusca incendiando e uma família humilde sendo salva das chamas, em uma rara combinação do oportunismo, sincronicidades e significados ambíguos, elementos que são o pavio da detonação de uma típica bomba semiótica.

Em 1990 os telejornais de todo o planeta mostraram chocantes imagens do que ficaram conhecidas como “o ossário de Timisoara”, na Romênia: a descoberta de um ossário de quatro mil vítimas que, afirmavam os repórteres, eram vítimas da ditadura de Ceausescu. E outros milhares de corpos teriam sido dissolvidos em ácido. As imagens atrozes dos cadáveres alinhados sobre um lençol branco marcaram para sempre a derrubada do ditador na chamada Revolução Romena de 1989. Mais tarde descobriu-se que tudo tinha sido um cenário montado para cinegrafistas e fotógrafos: na verdade eram corpos de pobres desenterrados de um cemitério local e cedidos à TV.

É irônico que em uma sociedade tão cética como a nossa onde a máxima “eu só acredito vendo”, que esvaziou simbolicamente as mitologias e religiões ou até a própria existência de Deus, o olhar e as imagens sejam as principais fontes de enganos e manipulações.


Partindo desses dois pressupostos para reflexão, vamos começar por uma insólita experiência pela qual passei ao assistir ao Jornal Nacional. Estava eu em mais uma das incansáveis e perigosas missões de buscar bombas semióticas (são perigosas pelo risco de expor nossos sentidos a elas) nos telejornais. A pauta eram as manifestações contra a Copa que ocorreram em várias localidades do País. Como a matéria apresentava imagens já repetitivas, aproveitei e levantei-me para buscar algo para beliscar na cozinha. Na volta o susto: deparo-me com imagens de uma praça à noite em estado de guerra declarada. Incêndios por todos os lados, escombros servido de barricada e uma multidão enfrentando pesada artilharia de repressão de multidões. Depois de alguns segundos, claro, entendi que as imagens se referiam aos protestos na Ucrânia contra o governo.

É significativa essa recorrência na divisão dos blocos de notícias dos telejornais: contrariando a tradicional divisão entre blocos de notícias nacionais e internacionais, as manifestações no Brasil são inseridas no mesmo bloco onde são mostradas imagens dos conflitos na Síria e Ucrânia. Praticamente sem intervalo, apenas como uma locução introdutória rápida. Pesquisadores como Ignácio Ramonet e Robert Stam já chamaram a atenção das manipulações metonímicas ou por separação e fragmentação das notícias, seja na “escalada” ou na divisão por blocos nos telejornais: procuram ou neutralizar e minimizar certos acontecimentos ou dar um significado maior a um determinado fato - leia RAMONET, Ignácio. A Tirania da Comunicação. Vozes, 2007 e STAM, Robert. "O Telejornal e seu Espectador" In: Novos Estudos Cebrap.

A pauta e a sua organização em blocos esconde uma intencionalidade. E nesse caso, o desejo quase incontrolável dos editores dos telejornais que o Brasil possa produzir imagens como aquelas na Síria ou na Ucrânia.

Oportunismo e sincronismo do fusca em chamas


O ápice dessa aproximação metonímica entre Brasil, Síria e Ucrânia vem agora com uma nova e oportuna bomba semiótica que apareceu com um timing e felicidade impressionantes: um fusca 1975, com uma família e uma criança de cinco anos, tendo no volante um humilde serralheiro que depende do seu carro para sobreviver. Todos voltando de um culto em uma igreja evangélica. Inocentes perfeitos, gente que rala para sobreviver. O fusca incendiando e todos sendo retirados do interior do veículo às pressas no meio das chamas, produziu uma dramática cena noturna: caos, anomia, insegurança – teremos Copa, mas não conseguimos ir e vir na cidade em que vivemos!

Além disso, essa bomba semiótica é cercada por duas coincidências significativas bem interessantes: primeiro, o nome do motorista era Itamar. Uma alusão ao presidente Itamar Franco onde, dentro do seu governo aprovou a Lei do carro popular em 1993 que previa isenções de impostos, e o fusca foi escolhido como o símbolo dessa política.

A segunda, as origens do fusca estão fortemente ligadas à Segunda Guerra Mundial e ao projeto de Hitler de um carro que deveria ser capaz de levar três soldados e uma metralhadora, além da típica família alemã como símbolo da propaganda de uma economia forte. Portanto, o fusca possui um simbolismo simultaneamente militar (coincidentemente um carro colocado numa situação de conflito como nas manifestações contra a Copa) e popular (manifestações contra um governo supostamente incentivador de políticas de popularização e inclusão no consumo).

Além dessas coincidências significativas (sincronicidades?), temos principalmente o fator ambiguidade que ficou evidente desde o início: os manifestantes atearam fogo deliberadamente no veículo? O fusca avançou inadvertidamente sobre um colchão em chamas? Uma conexão entre o fusca e o histórico “atentado da bolinha de papel”?

O fusca em chamas não permite leituras ideológicas


Algumas leituras ideológicas encararam o incidente como “manifestantes fascistas de direita que atacaram um trabalhador humilde”, como uma clara demonstração da “destruição niilista dos vândalos black blocs”. Mas o movimento “Não Vai Ter Copa” é refratário a qualquer interpretação ideológica porque ele se autojustifica: seu objetivo não é a demonstração ideológica (destruição do capitalismo) ou reivindicatória, mas de simples propaganda de terror – impactar o contínuo midiático com imagens simbólicas de descontrole, caos e medo para demonstrar que um governo que não consegue controlar as ruas não é um governo legítimo.

Daí a incrível felicidade e oportunismo do fusca incendiando para as telas de TV: vítima? Culpado? Evento montado como o ossário de Timisoara para impactar a opinião pública? O que importa é que essa poderosa combinação semiótica de sincronismo com ambiguidade anaboliza uma manifestação que contava com poucos participantes nas ruas, mas que foi capaz de produzir um ótimo rendimento midiático, forçando inclusive a FIFA fazer um pronunciamento através de nota onde condena os protestos e assegura a confiança no governo em manter a segurança durante o torneio.

Em si, o pronunciamento da FIFA já é outro elemento de ambiguidade: se no plano denotativo é um discurso que reafirma a confiança na organização da Copa, no plano pragmático é o sinal da força do golpe midiático, o que torna legítima a pauta construída pela mídia – lembra a clássica afirmação dos dirigentes de um time em crise: “o técnico está prestigiado!”.

Não importam mais as condenações e interpretações. O objetivo já foi cumprido: uma mobilização com poucos participantes, mas que é capaz de produzir dezenas de acontecimentos que se transformam em imagens simbólicas (virar carros da polícia, veículo incendiando, depredação de bancos e lojas, manifestante carregando adereços anarquistas em pose desafiadora sobre um carro de TV ou da polícia etc.) para a delícia de fotógrafos e cinegrafistas.

1962-64: bombas semióticas contra João Goulart


Cinejoranais produzidos pelo IPES (1962-64):
a gestão do medo.
“Não tem arroz, não tem feijão, mas assim mesmo o Brasil é campeão”. O Brasil era campeão da Copa no Chile em 1962, enquanto inexplicavelmente sumia arroz e feijão das prateleiras do comércio. Simultaneamente a mídia, por meio da TV e rádio, repercutia esse bordão como parte de uma sistemática propaganda de terror para desestabilizar o governo João Goulart que conduziria ao golpe militar de 1964, como apontam pesquisadores como Rene Armand Dreifuss e Denise Assis (leia DREIFUSS, Rene A. 1964: a conquista do Estado, Petrópolis: Vozes, 1981 e ASSIS, Denise. Propaganda e Cinema a Serviço do Golpe, R. de Janeiro: Mauad, FAPERJ, 2001).

Mas, sobretudo, entre 1962-64 a principal mídia utilizada como estratégia de impactar a opinião pública foi o cinema. Embora o rádio já fosse uma poderosa força graças ao transistor, pois precisava apenas de pilhas para funcionar, o Ipês (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) investiu  pesado no cinejornalismo, liderado pelo fotógrafo francês Jean Manzon, pioneiro do cinedocumentário brasileiro. Vislumbravam que as imagens eram o mais poderoso instrumento já que, em si, a linguagem cinematográfica é ideológica por meio da seleção, corte e edição.

A princípio as peças fílmicas (cinejornais e documentários onde ao mesmo tempo enaltecia os valores da iniciativa privada, meritocracia e liberdade econômica e também o caos e instabilidade política e social resultantes de um governo supostamente fraco que não conseguia conter as ações de radicais – os comunistas infiltrados) eram apresentadas por todo o País em seções regulares e especiais. O IPES conseguiu na época arregimentar um eficiente sistema em cadeia apoiado pelo SESI.

Jean Manzon: pioneiro do cinedocumentário
à serviço da guerra psicológica que
derrubaria João Goulart
Para atingir os mais pobres que não dispunham de dinheiro para comprar um ingresso de cinema, o IPES criou uma engenhosa estratégia: sob o pretexto de projeto cultural, montava projetores em caminhões abertos e ônibus com chassis especiais para levar sua guerra psicológica a bairros periféricos. Segundo Dreifuss, toda a infra-estrutura técnica necessária era suprida por empresas como a Mesbla e a CAIO, na época a maior montadora de carrocerias de ônibus e caminhões.

Para quem falou o fusca em chamas


As bombas semióticas não visam doutrinação ou inculcação ideológica. Pesquisas empíricas em comunicação de diversas linhas (Mass Communication Research, Agenda Setting etc.) já comprovaram que os conteúdos midiáticos apenas reforçam predisposições já existentes por meio da seletividade da recepção e memória do receptor. As imagens do fusca em chamas repercutidas pela mídia apenas reforçam as posições pré-existentes da direita à esquerda do espectro político.


Portanto, seu principal objetivo é cognitivo: criar uma atmosfera de insegurança e uma percepção de que os poderes públicos não conseguem manter a ordem nas ruas. Isso se chama gestão do medo, tática para atingir a grande massa de receptores que podem ser indiferentes aos conteúdos discursivos das mídias, mas são extremamente sensíveis às imagens que formam o contínuo midiático atmosférico e cuja reação imediata numa situação de perigo latente é a autopreservação.

E sabemos que, historicamente, essa situação é propícia para o surgimento de aventureiros políticos e oportunistas de ocasião.

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