quinta-feira, janeiro 30, 2014

Crianças chiliquentas e pais frágeis no documentário "Crianças Consumidoras"

A cada ano desenvolve-se uma nova ciência do consumo que turbina um mercado cujos ganhos se equivalem a soma das economias de 115 países pobres: é a ciência do consumo infantil, uma verdadeira “blitzkrieg” contra as crianças através da mobilização de especialistas que vão de antropólogos e sociólogos a neurologistas e cientistas comportamentais. É o tema do documentário “Crianças Consumidoras – A Comercialização da Infância” (2008) que alerta: profundas mudanças no psiquismo infantil estão sendo feitas nesse momento com o desaparecimento da infância por meio do novo perfil etnográfico dos “tweens” (a fusão da infância na adolescência) e o reforço subliminar da “cultura da reclamação” (chiliques, birras etc.) para que crianças insistentes influenciem cada vez mais a decisão de consumo dos pais. E por trás de tudo isso, a manipulação da percepção infantil para que vejam seus pais como seres inseguros, indecisos e frágeis.

Uma indústria de 15 bilhões de dólares que trabalha dia e noite para minar a autoridade dos pais se exime de qualquer consequência social do consumismo infantil alegando que a única responsabilidade sobre o que as crianças comem e compram é a dos próprios pais. “Seria como se de repente o dono de uma grande frota de caminhões anunciasse que de agora em diante fosse trafegar por uma estrada cheia de crianças a 250 km/hora e dissesse: ‘pais, cuidado! É tarefa de vocês cuidarem para que seus filhos não se machuquem!’”, responde Enola Aird, fundadora e diretora do Motherhood Project.

Essa é uma das contundentes declarações de ativistas, pesquisadores e profissionais no documentário Crianças Consumidoras – A Comercialização da Infância (Consuming Kids – The Commercialization of Childhood, 2008), um olhar profundo na forma como as crianças são manipuladas e exploradas em cada detalhe dos seus cotidianos, para não só se tornarem futuras consumidoras mas, inclusive, influenciar nas próprias escolhas de consumo dos pais.

Desde o chamado baby boom após a Segunda Guerra Mundial, o Marketing e a Publicidade logo perceberam que essa nova faixa etária deveria ser capturada a todo custo: “O embrião do consumidor começa a se desenvolver no primeiro ano de existência. Crianças começam sua jornada de consumo na infância. E certamente merecem consideração como consumidores nesse período”, declarou profeticamente o pioneiro do marketing infantil James U. McNeal.

Dirigido por Adriana Barbaro e Jeremy Earp, o documentário apresenta números que demonstram que o consumo infantil é hoje a principal meta das empresas: crianças consumindo 40 bilhões de dólares todo ano e, o que faz brilhar os olhos dos marqueteiros, 700 bilhões de dólares por ano de compras dos adultos por influência direta das crianças – tipo de carro, computador, celular ou viagens, por exemplo. Isso equivale a soma da economia de 115 países pobres no mundo.

Pais miseráveis e a “cultura da reclamação”


O documentário mostra com detalhes como psicólogos, antropólogos, sociólogos e cientistas cognitivos e comportamentais estão colocando as crianças no foco de um poderoso microscópio para moldar a preferências pelas marcas das crianças: discussões em grupo acompanhadas por especialistas por trás de vidros espelhados, marketing invisível onde até festas infantis são pretextos para estudos etnográficos, filmagem do comportamento das crianças diante de gôndolas de supermercados (olhar, como elas pegam os produtos e devolvem, quantas vezes reclamam e insistem com os pais etc.), play grounds e salas de aula. São capazes até de registrar imagens das crianças no banheiro, vaso sanitário e chuveiro para saber como interagem com shampoo, sabonetes e produtos de higiene.

Para o documentário, essa é a nova ciência do consumo baseada no estudo neurocomportamental da infância. Seu mais recente avanço é o neuromarketing onde crianças são colocadas em dispositivos MRI com elétrodos em volta da cabeça para criar um mapeamento cerebral das regiões mais estimuladas diante de estímulos visuais publicitários – com que frequência a criança pisca ou vira os olhos, por exemplo. Dessa maneira os anúncios são corrigidos para torná-los mais hipnóticos, reduzindo a frequência de movimento dos olhos.

O que impressiona é o nível de agressividade dessa verdadeira blitzkrieg: o marketing e a publicidade se esforçam em transformar a percepção infantil dos pais como uns “infelizes miseráveis” através do reforço da “cultura da reclamação”. Psicólogos se mobilizaram para estudar o fenômeno da reclamação (chiliques, manhas, birras etc.). Eles tentam saber que tipo de reclamação infantil funciona melhor com os pais. Por exemplo, as crianças dizem “Posso? Posso?...” em média até nove vezes. O “poder da reclamação” é maximizado por diversas táticas neurocomportamentais para que a criança ultrapasse essa média e continue pedindo e pedindo...

A “cultura da reclamação” seria maximizada com a percepção da criança de que os pais são frágeis, inseguros, indecisos e imaturos. Em uma passagem, o documentário faz uma tragicômica analogia com o personagem Homer da série de animação Os Simpsons: infernizado pelos pedidos insistentes dos filhos Bart e Lisa, o desesperado Homer cede aos pedidos como única alternativa para poder dormir.

Essa nova ciência do consumo na verdade estende à infância uma tática que se confunde com a própria história da Publicidade e sociedade de consumo: desde 1920 a Publicidade empreendeu um massivo esforço de desencorajamento das atitudes autônomas das famílias, mas, principalmente, dos próprios pais. Para ressocializar os indivíduos como consumidores dependentes do mercado, todos os saberes, tradições e autoconfiança familiar foram estereotipados como “ultrapassados” e “pouco confiáveis” e fontes de erros em um mundo moderno onde tudo supostamente muda muito rápido.

Sem autoconfiança, perdidos diante do bombardeio de informações propositalmente contraditórias de um complexo corporativo-publicitário de 15 bilhões de dólares, os pais fragilizados tornam-se prezas fáceis das chantagens emocionais da “cultura da reclamação”. Como vimos em postagem anterior, as próprias animações infantis ou infanto-juvenis mostram os pais como ausentes fisicamente ou como figuras pouco confiáveis e facilmente corruptíveis. Quanto mais as crianças veem os pais como figuras miseráveis, mais insistente tornam-se os pedidos infantis de consumo – sobre isso clique aqui e aqui.

O fim da infância com os "tweens"


Dentro dessa nova ciência do consumo, o marketing acabou descobrindo o que eles chamam de “crianças tornando-se adultos jovens”. Com diversos depoimentos de profissionais e pesquisadores da área, o documentário detalha como o marketing vem explorando uma natural ambição do jovem em querer ser mais velho e mais maduro.

O marketing tira vantagem dessa tendência natural vendendo coisas para grupos cada vez mais jovens. Como? Revistas para jovens de 17 anos não são lidas por leitores dessa faixa etária: são lidas por crianças de 10 ou 12 anos que querem saber como é ter 17 anos. Crianças de 6 anos promovem festas de pedicure e manicure para adquirirem cosméticos. Seus modelos não são mais médicos, astronautas ou professores, mas agora são atraídos por ídolos adolescentes.

E nada mais revelaria a paixão da indústria por esse encurtamento etário do que a invenção do termo “tween” – contração das palavras kids e teen, “crianças” e “adolescentes”. Até pouco tempo atrás para o marketing os limites estavam entre 8 e 12 anos. Agora, tweens estão entre 6 e 12 anos e poderá chegar proximamente a 4 e 12 anos – ou seja, infância e adolescência submetidoas ao mesmo apelo publicitário.

E esse apelo estaria trazendo profundas transformações psíquicas na infância: hoje vemos bonecas com temas e roupas de forte apelo sexual que são direcionadas para meninas de 6 anos. É comum hoje em dia vermos meninas de quatro anos com mini-saias “virilha”, por exemplo. Como detalha o documentário, o problema é que enquanto uma parte da criança aceita cognitivamente usar mini-saias e maquiagens aos sete anos de idade, a outra parte do psiquismo não está madura o suficiente para lidar com as consequências emocionais de sair em público como uma Britney Spears em miniatura. E com os meninos, ideias de violência, poder e dominação já em pouca idade, passam a mensagem que quaisquer diferenças devem ser resolvidas com violência.

 Por isso, numa das declarações mais contundentes do documentário, o Dr. Michael Prody, psiquiatra infantil, disparou: “Esses marqueteiros são muito semelhantes aos pedófilos. São especialistas em crianças. Se você vai ser um pedófilo ou um marqueteiro de crianças, você tem que saber sobre as crianças e o que elas vão querer”.

A cilada dos vídeos educativos


A última fronteira para essa nova ciência do consumo seria a primeira infância, quando ainda o bebê não consegue entender a sintaxe da manipulação publicitária e mercadológica. Nesse ponto, o documentário entra no universo dos vídeos, animações e softwares supostamente educacionais e pedagógicos. Se o mais importante nos dois primeiros anos de desenvolvimento cerebral para a criança é a relação direta com outras crianças e a interação com o espaço físico, para quê a mediação de uma tela?

O espaço e as interações estariam sendo sabotados: telas atrás de mini-vans, computadores, celulares, telas de TV com Nickelodeon e DVDs portáteis para bebês. Sem chance de procurarem se acalmar sozinhas ou inventarem brincadeiras por conta própria, viciam-se em telas. E, como aponta o documentário, é exatamente isso que quer a indústria do marketing: crianças de tenra idade sendo treinadas a compreender as imagens bidimensionais de uma tela.

Em termos diretos: ver TV só treina o cérebro a ver mais TV – e tornar a criança menos crítica e vulnerável às manipulações neurocomportamentais do marketing e publicidade.


Ficha Técnica

Título: Crianças Conumidoras – a comercialização da infância
Diretor: Adriana Barbaro e Jeremy Earp
Roteiro: Adriana Barbaro e Jeremy Earp
Entrevistados: Enola Aird, Daniel Acuff, Michael Brody, Josh Golin entre outros
Podução: Media Education Foundation
Distribuição: Media Education Foundation
Ano: 2008
País: EUA



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