quarta-feira, março 05, 2014

Futebol e a decadência do entretenimento dominical

Às vésperas de uma Copa do Mundo no Brasil, fica evidente que existem dois tipos de inimigos do futebol: os mortais e os morais. Ambos professam uma nova religião em ascensão graças a ética da penúria favorecida pelo quadro de recessão internacional. Uma religião que vê a realidade como uma existência dura e triste e que o pecado do futebol é proporcionar a alienação e fuga dessa verdade. Mas não percebem que na atualidade o futebol, tanto no estádio como na TV, transformou-se no espelho da decadência do entretenimento dominical – o futebol não afugenta a realidade, mas, ao contrário, a reproduz de forma repetida e amontoada. O futebol atual deixou de ser uma festa de participação popular, um teatro grego ou alguma espécie de catarse coletiva para ser conectado ao quadro de austeridade global. O futebol deixou de ser um espaço lúdico de fuga da realidade para ser algo inseparável do dia-a-dia.

Às vésperas da realização da Copa do Mundo no Brasil, podemos perceber que existem basicamente dois inimigos do futebol: os mortais e os morais.

Os inimigos mortais dizem que o futebol é uma fuga. Para eles nada deve escapar da realidade. O único tipo de vida reconhecível seria o fardo da vida adulta, o chumbo da razão. Quem lograr fugir será morto pela inconsistência e infantilização.


Todavia, os inimigos mortais não estão só: têm como parentes os inimigos morais. Eles se diferenciam dos mortais pela maneira mais articulada (político-ideológica) de fundamentar os argumentos. Consideram que todo mal do futebol não está apenas em considerá-lo como fuga. Mais do que isso, o futebol incentivaria a fuga da realidade, o que seria mais grave. O torcedor seria um alienado ou, pior ainda, um fugitivo das necessidades reais que a realidade reclamaria – políticas, econômicas etc. Cidadãos evasivos, fugitivos da moral que não viriam o escândalo de como a educação e saúde estariam sendo esquecidos em nome de uma política pão e circo em ano eleitoral.

Hostilidade pela vida


A austeriadade econômica imposta pela elite cria
a ética da penúria que o futebol
midiatizado reproduz
Tanto os inimigos mortais como os morais parecem ter uma hostilidade pela vida. Explicando melhor: eles parecem ter montado uma próspera e rentável religião que explora a percepção de que a realidade é um bem escasso. Religião que nesse momento é favorecida pela crise financeira internacional onde a elite mundial pretende espalhar pelo mundo políticas de austeridade econômica – desemprego, desaquecimento do consumo interno, suspensão de benefícios e direitos – sobre isso leia HOUSSEIN-ZADEH, Ismael, “A Guerra dos Plutocratas é para Impor a Austeridade Global”.

Enfim, essa ética da penúria chega num momento especial para impulsionar essa nova religião que explora a Realidade.

Como certa vez o filósofo Deleuze afirmou, vivemos em um mundo onde os poderes têm interesse em comunicar, com um ar entristecido, que vivemos em um mundo desagradável. Tiranos, sacerdotes e sequestradores de almas têm necessidade de persuadir-nos de que a vida é dura e pesada para diminuir nossas forças e nos tornar escravos. Mais do que nos reprimir, os poderes têm a necessidade de nos angustiar através da gestão dos nossos terrores íntimos (leia DELEUZE, G. e PARNET, Claire. Diálogos, Escuta, 1998).

Mas será mesmo que o futebol é esse ópio do povo como pretendem os inimigos morais? Será que o futebol tal como ele se organiza na atualidade em torno dos princípios de gestão empresarial é mesmo esse alucinógeno que injetaria sonhos de irrealidade e ferocidade como acusam os inimigos mortais?

Gilles Deleuze: mais do que reprimir
os poderes têm a necessidade
de nos angustiar
Como pode testemunhar qualquer torcedor, na verdade o futebol não afugenta a realidade, mas, ao contrário, a reproduz de forma repetida e amontoada. O futebol atual deixou de ser uma festa de participação popular, um teatro grego ou alguma espécie de catarse coletiva para ser forçosamente conectado a essa ética da penúria global. O futebol deixou de ser um espaço lúdico de fuga da realidade para ser algo inseparável do dia-a-dia da cotidianidade.

No sentido estrito, o torcedor não foge no futebol mais do que poderia dizer de alguém que foge da esposa chata se afundando no trabalho, ou quem foge da rotina do trabalho através de uma orgia sexual num motel ou quem foge de um passado comprometedor por meio das conquistas do dinheiro e do poder. Nesses três casos não podemos falar de fugas por que os destinos (trabalho, sexo e poder) não são menos reais do que a procedência (vida conjugal, o emprego e a memória). Tanto a origem quanto o local de fuga estão encerrados no cerco da Realidade.

Tanto no futebol como nesses casos de “fuga”, se trata de valorizar um tipo de vida onde a realidade se restringe a pequenas oportunidades de alegria, pequenas doses de vivacidade e prazer numa realidade dura de penúria.

Uma olhada na decadência do entretenimento dominical confirma essa transformação do futebol em um simulacro tosco do cotidiano, um lugar de desencantamento e de constante promessa de alegria não realizada. Assim como no dia-a-dia.

O espelho da decadência dominical


O domingo de futebol deve ser analisado através de dois pontos de vista: o da recepção (o espectador) e do conteúdo da transmissão ou do esporte em si.

Para muitos torcedores a tarde de domingo se destina, com uma frequência que a esposa bem conhece, ao futebol, seja assistindo no estádio ou diante da TV. Senta-se no sofá e ali fica salpicando sua imobilidade com alguns saltos segundo o compasso dos acontecimentos mostrados na transmissão do jogo. Pelos interiores da casa trabalha a esposa entre a vassoura, o gosto de abrir e fechar armários e a sua impotência em manter as crianças caladas. De vez em quando se ouve, entre a gritaria, escapando do dormitório ou do corredor, algum suspiro.
Futebol no domingo: prepara a tomada de
consciência da segunda-feira

O que pode passar pela alma do torcedor nesse momento? Uma cavalgada pela irrealidade? Uma catarse?

As alegrias que eventualmente a equipe oferece encobrem plenamente a mediocridade cotidiana. Exceto os seguidores das grandes equipes, o resto aspira menos vencer do que não ser vencido ou rebaixado para divisões menores do esporte. A tendência de concentração financeira (auxiliado pela grande mídia com os pagamentos de transmissão concentrados em poucos clubes) amplia essa alegria do sobrevivente em um campeonato de pontos corridos onde o prazer da vitória é o mesmo do alívio de não ter entrado na zona de rebaixamento. A possibilidade de derrota que toda partida esportiva trás em si é transformada em ética do sobrevivente onde o desejável é substituído pelo possível. Moral resignada da expressão “assim é o futebol”, paráfrase do “assim é a vida”.

Quando se levanta do sofá pelo fim da tensão nervosa, tristemente mareado pela cerveja, licores ou bebidas mais fortes e roído pela hipercloridria é um homem convencionalmente preparado para a tomada de consciência de que o dia seguinte é segunda-feira e que o domingo acabou.

Estádios vazios, retrancas...


Por outro lado, do ponto de vista da qualidade esportiva do entretenimento oferecido, é um espelho da decadência dominical. Partidas televisionadas com pequenos grupos rodeados de vazio nas arquibancadas, primeiros planos de torcedores que saúdam seus parentes ou erguem cartazes com mensagens em grotescas simulações de bem-estar. Microfones que são abertos para transformar os débeis gritos das arquibancadas em vozes possantes para que preencham o constrangedor vazio do silêncio. Jogadores tropeçando em gramados esburacados ou patinando no barro e poças d’água.

O depressivo cenário sobrevivencialista
do futebol
Do ponto de vista tático, retrancas, meios de campo congestionados de jogadores ou zagueiros e goleiros que despacham a bola para frente em desesperadas ligações diretas para o ataque na esperança de que alguém receba a bola na frente confirmam a ética da penúria sobrevivencialista. Os pobres resultados como 0 X 0, 1 X 1 ou 1 X 0 expressam esse depressivo cenário.

Quando eventualmente surgem jogadores ou times que fogem do espírito sobrevivencialista com dribles ou táticas arrojadas são logo tratados como “exóticos”, “laranjas mecânicas”, “carroséis” ou qualquer termo excêntrico, assim como na vida real tratamos todos aqueles que se desviam da normalidade. Isso quando não aparecem jogadoras que encarnam a ética da penúria cotidiana e agridem física e moralmente esses jogadores como “irresponsáveis”.

Futebol como metáfora


Quando o já falecido Cláudio Coutinho, técnico da seleção brasileira em 1978, falou em “ponto futuro”, “overllaping” e “polivalência” para descrever esquemas táticos foi ridicularizado pela crônica esportiva. Na verdade ele foi o profeta, um dos primeiros sacerdotes da transformação do futebol em extensão da realidade que ocorreria no futuro. Na década de 1990, o técnico Vanderlei Luxemburgo com seus ternos e expressões como “qualidade do passe”, “excelência tática” e psicólogos trazidos para “motivar” times transformou o futebol numa metáfora da rotina corporativa com seus delirantes “controles de qualidade”.
Técnico Cláudio Countinho em
1978: o ridicularizado profeta do
dos tempos atuais do futebol

Dos jogadores que montavam altares ou acendiam velas nos vestiários no passado aos atuais que falam em linguagem de gerundismo dos telemarketings e professam a teologia da prosperidade das igrejas midiáticas neopentencostais, é a distância percorrida por um esporte que pertencia ao campo do imaginário para, na atualidade, fazer parte da realidade e da justificação da Ordem cotidiana. Embora o torcedor mantenha a esperança de que um dia um milagre aconteça e ocorra algum tipo de ruptura, distorção ou contradição que rompa a Ordem. Isso ainda o faz ficar diante da TV ou se deslocar com dificuldades aos estádios.

Futebol e a atrofia do imaginário


Portanto, diferente do que os inimigos morais e mortais do futebol professam, há muito tempo o futebol deixou de ser alienante e um narcótico da política. A decadência do imaginário desse esporte não é simplesmente pelo fato de ter sido simplesmente “mercantilizado” ou ter virado “um negócio”. Se pensarmos dessa forma entraremos no campo da crítica moral.

Há algo de mais profundo e filosófico: a atrofia do próprio imaginário e a deterioração da realidade nas nossas vidas. Para que exista real é necessário que exista uma réplica no imaginário: para que o trabalho se torne real é necessária a fantasia do ócio, para que exista a produção industrial (real) deve opor-se a ela o jogo e a arte, para que exista a realidade religiosa é necessária a possibilidade da ausência de Deus.

Com a atrofia do imaginário como uma dimensão que se opunha ao cotidiano, tudo se transformou em realidade. Não há mais intercâmbio simbólico: trabalho e lazer, razão e loucura, sociedade e espetáculo, domingo e segunda-feira se fundem num continuum onde lazer, prazer e loucura nada mais são do que reforços motivacionais para azeitar a eficácia e eficiência no dia-a-dia de trabalho.


Se os críticos mortais e morais do futebol apresentam o esporte como uma fantasia irreal, é para nos fazer crer que o real é tudo aquilo que está ao seu redor, salvando assim o princípio de realidade que cada vez mais nos deprime e nos afunda na ética da penúria global que está em ascensão. 

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