sábado, abril 19, 2014

A televisão excremental no filme "Edtv"

Ao lado de “Show de Truman”, o filme “Edtv” (1999) de Ron Howard, mais do que antecipar uma TV atual onde o conceito de reality show contamina de reportagens a programas de gastronomia e decoração, anteviu uma nova função social - a “TV excremental”. Uma televisão que há muito abandonou a pretensão de ser uma “janela aberta para o mundo” para assumir um papel fisio-psicológico: processar os excrementos psíquicos. Assim como o corpo que depois de ingerir, acumular, metabolizar e produzir tem que no final excretar para manter o ciclo vital, da mesma forma milhões de telespectadores necessitam excretar fluxos psíquicos (sacrifício, disciplina, vigilância e violência) para que o ciclo se renove no dia seguinte após um dia inteiro de alimentação e trabalho para acumulação de méritos e riqueza alheia.

Desprezado pela crítica e pelo público. Esse foi o destino do filme Edtv (1999) do premiado diretor Ron Howard (Oscar de melhor diretor em Uma Mente Brilhante, 2001) que se quer chegou a ser exibidos nos cinemas brasileiros. Muitos creditaram o fato desse filme ter caído no esquecimento à coincidência de ter sido lançado no mesmo ano de Show de Truman de Peter Weir: assim como em Edtv, também antecipava a questão dos reality show que, mais tarde, se tornaria um gênero televisivo mundial.

O sucesso de Show de Truman eclipsou Edtv, mas olhando hoje percebemos que embora tratem do mesmo objeto, a proposta de discussão é bem diferente: enquanto Weir contava a história de um protagonista cuja vida foi fabricada para ser entretenimento de milhões sem ele saber, Howard quer discutir não só a questão das celebridades instantâneas produzidas pelos reality show como também os destinos da TV em um novo milênio dominado pela cultura digital em tempo real.

Tanto o filme Edtv como Show de Truman parte de um mesmo diagnóstico sobre as transformações da TV: a televisão já deu para os espectadores os melhores documentários, programas de informação, os momentos mais divertidos e trágicos. Mas agora, a TV vai levar o telespectador “onde nunca esteve. Sem script, sem atores e sem montagem: a TV Verdade!”.   Em outras palavras, a TV em toda a sua história pretendeu representar a realidade para o telespectador, tornar-se uma “janela aberta para o mundo” como dizia Umberto Eco. Agora, a TV deve presentar a realidade. Principalmente diante da concorrência das mídias de convergência como Internet e dispositivos móveis: interativos e em tempo real.

Hoje a pretensão reality da TV vai contaminar todos os gêneros televisivos. Clássicos do reality show como Big Brother, Casa dos Artistas ou A Fazenda vão emprestar a pretensão realista a programas de gastronomia, decoração, entrevistas, reportagens etc. Todos com personagens que, de alguma forma, lutam para sobreviver: permanecer no programa, suplantar um rival ou simplesmente sobreviver à desordem das suas próprias vidas. Como apontam diversos pesquisadores atentos às transformações da função social da TV como Ciro Marcondes Filho, Arthur Kroker e Umberto Eco, a televisão deixou a velha pretensão de ser uma “janela aberta para o mundo” para funcionar sob a lógica excremental do autocancelamento, desacumulação e autoextermínio.

Uma TV que se abandona qualquer função de representação para atender a quatro fluxos da sociedade: o sacrifício, a disciplina, a vigilância e a reenergização através da violência, como veremos mais detalhadamente abaixo.

Embora em Edtv o diretor Ron Howard abra mão de discutir com seriedade o tema buscando soluções catárticas de entretenimento numa convencional história de amores impossíveis, o filme oferece um conjunto de sequências e insights que são ótimas para uma reflexão quinze anos depois. Principalmente porque agora nosso olhar está mais “educado” em relação ao gênero reality show para compreender que essa “realitificação” da televisão é a sua estratégia de inserção em um sistema global de telas que não mais informam, mas agenciam os fluxos da sociedade em tempo real.

O Filme


Acompanhamos o dia-a-dia de um cidadão comum chamado Ed (Matthew McConaughey) cuja vida é dividida entre trabalhar como balconista em uma locadora de vídeos e beber cerveja no bar local. Até que um dia vê a oportunidade de ganhar “dinheiro fácil” em um reality show idealizado por uma produtora (Elle DeGeneres) de uma emissora de TV em crise de audiência. Sem pensar muito bem nas consequências, Ed aceita ter sua vida seguida e perscrutada 24 horas por dia por câmeras e microfones. Sua vida muda radicalmente: a briga com seu irmão mais velho pela pretensão de ser a estrela principal do programa, o namoro com a ex de seu irmão, os segredos e escândalos sobre a sua família que começam a aflorar ao vivo – descobre que a sua mãe mentiu a vida inteira sobre o seu verdadeiro pai etc.

A vida de Ed passa a ser não só observada, mas também sofre diversas formas de intervenções: merchandising, inserção de produtos, promoções de pontos de vendas e a divulgação de pesquisas de opinião sobre, por exemplo, quem Ed deve namorar. Ed terá que lidar com a fama e com o jogo metalinguístico em que ele se vê inserido em várias sequências: ver as câmeras e microfones e a si mesmo nas telas de TV na sala da sua casa ou na locadora de vídeo. Howard apenas joga essas intrigantes imagens para nós, sem entrar em qualquer discussão mais profunda, mantendo o tom de comédia romântica para a narrativa.

Isso fica evidente na edição em DVD onde vemos cenas que não entraram na edição final do filme (os chamados “outtakes”). Essas cenas que acabaram ficando de fora mostram como Howard pretendia dar outros significados e interpretações totalmente diferentes ao protagonista e uma visão mais perturbadora sobre o fenômeno das celebridades. Por exemplo, o final feliz da edição final teria uma continuidade perturbadora com um tiroteio que lembraria o assassinato de John Lennon em 1980, marco histórico que alterou totalmente a relação entre os fãs e as celebridades.

TV excremental


Essa pretensão reality da TV atual revela uma nova função que está para além da informação e do entretenimento: a do excremento. Tal como o corpo que depois de ingerir, acumular, metabolizar e produzir, ele deve ao final excretar para manter o ciclo vital. Milhões de telespectadores que após um dia inteiro de alimentação e trabalho para acumulação de méritos e riqueza alheia, necessitam ao final do dia excretar para que o ciclo se renove no dia seguinte.

Arthur Kroker nos fala de uma nova TV: a TV excremental (leia KROKER, Arthur. Spasm, St. Martin Press, 1993 e MARCONDES FILHO, Ciro. Superciber. Paulus, 2009) que atenderia aos quatro fluxos citados acima:

(a) Sacrifício: com os reality show a televisão se transforma em um espaço onde são descarregados ressentimentos por meio do sacrifício do socialmente mais fraco: perdedores (como no caso de Edtv), minorias sexuais e étnicas etc. Pessoas que são humilhadas ou se auto-humilham em troca da fama reforça a percepção resignada para o espectador: descobri alguém que possui uma vida pior do que a minha! Todo esse processo já estava em germe nas candid TV, infomerciais e vídeos caseiros de catástrofes domésticas nos anos 1970-80. Claro que o nazi-fascismo já explorava o ressentimento através do ódio racial através da propaganda política na década de 1930. Mas a diferença é que com a TV excremental, esse fluxo se insere no cotidiano quase como uma função fisiológica de excreção corporal;

(b) Disciplina: a vida de Ed começa a ser controlada pelas expectativas do público, pelas pesquisas de opinião (qual a melhor namorada para Ed?) e pela ilusão democrática da interatividade. A TV oferece um modelo ao mesmo disciplinar e terapêutico, como um processo de cura: médicos, fisioterapeutas, nutricionistas etc. quase diariamente nos informam sobre novas doenças, síndromes e contaminações, com seus respectivos tratamentos, remédio e curas. Assim como Ed é controlado pelas pesquisas de opinião, o telespectador é disciplinado por modelos terapêuticos.

(c) Vigilância: a metalinguagem das câmeras que acompanham Ed (Ed vê a si mesmo seguido pelos cinegrafistas assim como os telespectadores) funciona como mecanismo de normatização dos sistemas de vigilância integral da nossa rotina - das câmeras de segurança em espaços públicos aos sistemas de rastreamento por satélite ou dos nossos gastos em cartão de crédito pelo sistema financeiro e jurídico. Todos nosso mal estar psíquico desse ambiente social controlado cujos sintomas se revelam na paranoia das teorias conspiratórias, no medo do terrorismo, na xenofobia etc. é excretado como ressentimento: o prazer mórbido de “dar uma espiadinha” em pessoas confinadas, válvula de escape que transforma em show de TV a própria vida monitorada.

(d) Reenergização: através da violência (brigas, conflitos, tensões, acidentes, discussões) que explodem diante das câmeras, Ed reenergiza o cotidiano inerte e resignado dos telespectadores. Não é à toa que a maioria dos filmes do Corujão da TV Globo (sessão após o programa Fantástico) possuem temas como sexo, violência, crimes e perseguições:  a necessidade da reenergização do telespectador para enfrentar a semana útil que se inicia na segunda-feira.

Ficha Técnica


Título: Edtv
Direção: Ron Howard
Roteiro: Émile Gaudreault e Sylvie Bouchard
Elenco: Matthew McConaughey, Jenna Elfman, Woody Harrelson, Ellen DeGeneres, Rob Reiner, Martin Landau
Produção: Imagine Entertainment, Universal Pictures
Distribuição: Universal Pictures
Ano: 1999
País: EUA



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