domingo, abril 20, 2014

Reality show aponta para nova função social da televisão: a "TV excremental"

No momento em que mídias de convergência como Internet e dispositivos móveis ameaçam as mídias tradicionais, a TV abraça o conceito de “shows de realidade” onde especialistas nas mais diversas áreas atendem ao pedido de socorro de pais ou casais que não conseguem dar conta de filhos chiliquentos, cães maníacos, apartamentos entulhados de bugigangas ou de guarda-roupas que passaram da moda. Para sobreviver a irrupção das mídias digitais interativas e em tempo real, a TV aponta para uma mudança de função: de mídia informativa ou de entretenimento, para agenciadora das necessidades psíquicas de sacrifício, disciplina, vigilância e reenergização dos telespectadores através da violência, funções a que o pesquisador canadense Arthur Kroker conceitua como "TV excremental". O reality “Socorro! Meu filho come mal” da GNT é um caso exemplar.

Em um fenômeno de sincronismo, no momento em que terminava a postagem anterior sobre o filme Edtv (clique aqui para ler) e a discussão sobre a função social do reality show, eis que dou de cara na TV com o reality da GNT Socorro! Meu filho come mal comandado pela nutricionista Gabriela Kapim.

Há uma verdadeira febre na TV a cabo atual de programas reality com especialistas nas mais diversas áreas, de adestradores de cachorros a educadores infantis, passando personal trainers, personal stylists ou personal organizers. Super Nanny, Santa Ajuda, Pronto Socorro da Moda etc., variações do gênero reality show sempre com especialistas que recebem pedidos de socorro de telespectadores que não conseguem dar conta de filhos mal educados, cães maníacos, apartamentos entulhados de bugigangas ou de guarda-roupas que passaram da moda.


Socorro! Meu filho come mal não foge à regra de histórias de pequenas catástrofes domésticas que precisam de um especialista que conserte tudo: crianças chiliquentas e birrentas desafiam os pais e resistem a comidas saudáveis em nome do apego a doces, massas e fast food. Após fazer o diagnóstico, a nutricionista Gabriela Kapim traça um plano sempre com três metas a cumprir (fácil, média e difícil). Em um misto de psicologia e nutrição, Kapim tenta compreender a dinâmica pais-filho para tentar reverter as situações.

Discutíamos na postagem anterior que depois dos reality show clássicos como Big Brother ou Na Real da MTV, o conceito de “show de realidade” passou a ser introduzido em uma variedade de programas e gêneros mais díspares – gastronomia, reportagens, moda, educação infantil, veterinária etc. Essa tendência coincide com o crescimento das mídias de convergência como a Internet e dispositivos móveis que ameaçam as mídias tradicionais como a televisão.

Se a interatividade e o tempo real são as principais características dessas novas mídias, para fazer frente a esse novo quadro e sobreviver a TV deixará de informar ou de tentar ser uma “janela aberta para o mundo”. Com o crescimento da Internet, a TV não sucumbirá, mas permanecerá como uma espécie de “praça central” feita pela mistura de programas pobres e medíocres feitos para uma massa de desinteressados pelos temas mais densos da sociedade como a política, cultura e economia.

A função “excremental” da TV


O pesquisador canadense Arthur Kroker previa na década de 1990 que a televisão assumiria uma função “excremental”: o público não veria mais a TV como uma mídia informativa ou de entretenimento, mas como uma agenciadora dos dejetos psíquicos decorrentes de quatro mecanismos ideológicos cotidianos que faz a sociedade se reproduzir – sacrifício, disciplina, vigilância e reenergização através da violência.

Assim como os corpos, a sociedade além de produzir e acumular deve excretar o seu mal estar, paranoia, perversões, neuroses e sadomasoquismo. No passado esses fluxos psíquicos eram agenciados por toda uma subcultura representada pela prostituição, pornografia (hardcore, snuff movies etc.) slash e exploitation movies, programas sensacionalistas e a chamada imprensa marrom. Internet e a chamada deep web assumiram esse papel, porém de uma forma privada. Ainda é necessário uma “praça pública” onde vítimas sejam imoladas, humilhadas e exibidas. Onde as mazelas da sociedade sejam exibidas como atrações e catarse.

Como mais um programa “show de realidade”, Socorro! Meu filho come mal transforma em atração os próprios danos produzidos pela indústria do entretenimento nas crianças. É sabido que existe um setor especializado na ciência do consumo responsável por turbinar um mercado cujos ganhos equivalem à soma das economias de 115 países pobres: o consumo infantil. Sua mais recente tática subliminar é o reforço da chamada “cultura da reclamação” por meio do incentivo de comportamentos como birras e chiliques diante dos pais – sobre esse tema clique aqui.

Detritos psíquicos dos reality show


Nesse reality show da GNT assistimos como show os resultados da aplicação dessa ciência subliminar: crianças dando chiliques diante de pratos saudáveis e coloridos. Resistem e exigem o trash food que a própria TV ofereceu para elas nos intervalos publicitários e nos merchandisings dos programas infantis e desenhos animados.

A criança é, então, colocada como um pequeno animal que precisa ser adestrado por meio de contra-táticas comportamentais. O “show de realidade” atende ao primeiro fluxo psíquico: o sacrifício. A criança é imolada como a única responsável, escondendo-se o fato de que a própria TV criou o seu pequeno monstro que agora oferece como diversão para os telespectadores.

Culpabilizada, a criança vai ser submetida ao agenciamento do segundo fluxo: a disciplina. Assim como a ciência do consumo usou de diversas artimanhas comportamentais e subliminares para induzir a criança à viciosidade e compulsão, Gabriela Kapim vai igualmente aplicar contra-métodos como, por exemplo, levar a criança-problema para um ensaio do Monobloco no Rio de Janeiro. Lá ela deve aprender que, para tocar bem os instrumentos de percussão, deve comer bastante feijão e se alimentar melhor.

A família é então submetida a um programa com metas e prazos parecido com os métodos corporativos motivacionais para tirar o máximo de produtividade e eficiência de seus “colaboradores”.

Como em qualquer reality show, está implícito o agenciamento do fluxo da vigilância: criança e família são submetidos ao monitoramento e controle do especialista. É transformado em show aquilo que vivenciamos no dia-a-dia pelo monitoramento e rastreamento das nossas ações, escolhas, pensamentos e declarações em redes sociais, trabalho e lazer por meio de analistas, empresas, comércio e indústria publicitária.

Socorro! Meu filho come mal acaba confirmando essa espécie de autocancelamento da televisão: essa mídia desiste da pretensão que um dia teve de ser uma janela aberta para o mundo para se tornar autista ou auto-referencial. Afinal, o reality show transforma em atração as próprias mazelas pelas quais ela é responsável. Ironicamente, a TV aberta cria a doença para mais tarde a TV a cabo oferecer o tratamento.

Pais anacrônicos


Mas olhando em perspectiva, o show de realidade da alimentação infantil do GNT confirma uma tendência discutida pela sociologia desde as teses da Escola de Frankfurt: a família torna-se progressivamente uma instituição anacrônica diante da necessidade do capitalismo tardio ressocializar os indivíduos não mais como cidadãos, mas desta vez como consumidores dependentes do mercado – sobre esse tema clique aqui.

A indústria do entretenimento e publicitária diariamente reforça a percepção de que os pais são frágeis, anacrônicos e, por isso, incompetentes para dar conta de problemas familiares, conjugais e educacionas. Nesse momento, os shows de realidades têm em sua mira pais ou casais incapazes de gerir suas próprias vidas cotidianas, transformando suas supostas fragilidades em shows que agenciam os fluxos do sacrifício, vigilância, disciplina e violência.


Por isso, o mais irônico no Socorro! Meus filhos comem mal é que o pedido de socorro dos pais para uma especialista somente reforça a imagem da fragilidade dos pais diante dos filhos. Pois é essa exatamente a origem da cultura da reclamação infantil: quantos mais os pais parecem frágeis, mais a criança se sente motivada a insistir em pedir aquilo que a própria mídia oferece.

Ficha Técnica


Título: Socorro! Meu filho come mal (série TV)
Direção: Lucas Margutti
Roteiro: Ana Abreu
Elenco: Gabriela Kapim
Produção: TvZero
Distribuição: GNT
Ano: 2013
País: Brasil



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