terça-feira, maio 06, 2014

Palestra de executivo revela a secreta religião americana


O que há por trás da performance de uma palestra de um executivo norte-americano? Broadway, Hollywood, teatro vaudeville e todo um mix cultural único de um país que conseguiu fundir “business”, “show” e “entertainment”. Assistir ao discurso desses protagonistas corporativos é testemunhar o ineditismo de um país que conseguiu fundir a fé tecnológica, o espírito pioneiro dos puritanos e o triunfo do liberalismo comercial. O pesquisador canadense Arthur Kroker chamava isso de “capitalismo pentecostal”: a calculada canastrice da palestra de um executivo inspirada no pantheon dos simulacros da cultura pop , a crença no pragmatismo tecnológico como moralmente bom e a fé em um destino manifesto de levar a religião americana para todo o mundo.


Toda vez que temos a oportunidade de assistir a uma palestra de um executivo, CEO, ou qualquer dirigente político ou corporativo norte-americano, é a chance de testemunharmos in natura uma amostra daquilo que o pesquisador canadense Arthur Kroker chamava de “capitalismo pentecostal”. Para ele, o que há de tão sedutor na cultura dos EUA é a maneira como ela funde a fé cega na tecnologia, o missionário senso de libertação originário do espírito dos pioneiros puritanos e o triunfo da liberdade comercial e do direito à propriedade privada.

Pois tive a oportunidade de assistir na Universidade Anhembi Morumbi à palestra de Eric-Jan Schmidt, responsável pela estratégia de comunicações e marketing corporativo e digital da Hitachi Data Systems, subsidiária da Hitachi Ltd e parte da Hitachi Sistemas de Informação e Telecomunicações.  O tema era Marketing Digital, Comunicação B2B, Big Data/Dark Data e o impacto dessas temáticas no profissional de Marketing e Comunicação.  


Altos dirigentes em ação, principalmente quando visitam outros países, prezam pelo esmero em demonstrar o melhor dos seus negócios. Porém, o mais interessante não é o que eles falam (o enunciado), mas a sua enunciação, a chamada comunicação não verbal. É marcante nesses profissionais de alto nível das corporações norte-americanas o domínio do espaço em uma ampla sala em anfiteatro, a exata marcação de cena, o timing e o ritmo do discurso (suas pausas, ironias e momentos de humor), respostas sintéticas, gestual meticulosamente estudado e um certo senso de “esportividade” (relaxamento mesclado com performance) e jogo.

Canastrice norte-americana versus latino-americana

Hollywood, Broadway e toda a
cultura pop por trás de
um meticuloso domínio
de cena

Fico pensando o quanto de teatro vaudeville, Broadway, indústria hollywoodiana e de entretenimento e cultura pop estão por trás nesse meticuloso domínio de cena.  Um século XX de cultura visual e de entretenimento está por trás da naturalidade de Eric-Jan Schmidt, uma cultura que acabou fundindo show, entertainment e business. Uma atuação overacting certamente, canastrona pela sua naturalidade estudada e ensaiada a partir de uma mitologia pop gerada por Hollywood e repercutida por todas as técnicas de oratória e de falar em público. Mas uma canastrice bem diferente da nossa, latino-americana.

Isso é o que difere um David Letterman de um Jô Soares. Enquanto em Letterman, ícone do gênero talk show televisivo, o timing e o senso do humor seco são ajudados pela natureza sintética da língua inglesa, no Programa do Jô o timing é mais lento, frases longas, convidados dando respostas arrastadas nas entrevistas e o apresentador tendo que levar o entrevistado nas costas.

Sem uma indústria teatral, cinematográfica e de entretenimento genuína, nossa canastrice se torna mais melodramática, trágica, exemplificada pelos tipos de galãs decadentes que a encarnam: desde corretores de imóveis, vendedores de carros usados, até palestrantes que circulam pelo meio corporativo com seus ternos mal cortados e gestual estereotipado, como fossem cópias mal feitas dos clichês hollywoodianos.

Ao contrário, Eric-Jan bebe na fonte original do pantheon do simulacro norte-americano – Elvis, James Dean, Madonna, Michael Jackson – porque os EUA não precisam de uma mitologia externa, como nós. Cultura única onde a transitividade entre ficção e realidade é brutal: onde atores de Hollywood se transformam em presidentes e governadores e um filme como Argo ganhou o Oscar por narrar uma estratégia da espionagem norte-americana na crise do Irã em que simulava ser uma produção cinematográfica.

A canastrice norte-americana é mais ambígua e, por isso, mais eficaz: é estudada e ao mesmo tempo meticulosamente “espontânea” pelo seu fair play e “esportividade”; gestual espontâneo e relaxado enquanto a fala é em timing rápido e voice roll (ritmo vocal que sugere a existência de uma batida rítmica imaginária criando um efeito hipnótico, abrindo o receptor à sugestão). Mas, principalmente, o domínio de cena, do espaço e do tempo cria a chamada “bomba do amor”: criação de atmosfera de intensa positividade, muito utilizado por líderes religiosos para criar estados de excitação e boa vontade.

Essa é a essência do capitalismo pentecostal de que fala Arthur Kroker: uma secreta conexão une CEOs de corporações a pastores pentecostais televisivos norte-americanos como Billy Graham e Jimmy Swaggart.

A religião americana


Eric-Jan veio nos falar de um novo mundo onde o marketing estimulará a produção de novos produtos e serviços a partir da forma inteligente de armazenar dados sobre tudo e todos através da chamada internet das coisas (sistema global de registros de bens em um sistema wireless e nanotecnologia): o desafio do armazenamento e análise estratégica de dados para encontrar pistas do comportamento e confiança do consumidor, geolocalização e padrões de tráfego que podem auxiliar no planejamento do negócio.

Um cenário que tornam as denúncias de Edward Snowden sobre espionagem eletrônica da NSA (Agência de Segurança Nacional dos EUA) parecerem fichinha. Mas então, porque essa atmosfera positiva e otimista em relação a um novo mundo neoplatônico onde todas as nossos comportamentos serão registrados em dados armazenados para análises estratégicas comerciais? Por que os artífices desse novo mundo não serão mais políticos ou governos, mas puros e genuínos pioneiros da iniciativa privada e profetas do livre comércio.

Eric-Jan abriu para nós o núcleo da religião americana, aquilo que faz pulsar o seu “destino manifesto”: a fé na livre iniciativa, no pragmatismo comercial como moralmente bom porque voltado à eficiência e eficácia do lucro. Isso é o que faz distinguir o capitalismo americano das origens espirituais do capitalismo europeu descrito por Max Weber no livro clássico A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Nos EUA o capitalismo não é mais protestante, ele é pentecostal.

Se na Europa a ética protestante impulsionou um capitalismo marcado por uma espécie de ascetismo mundano (Deus deve reconhecer a sua fé pelas obras e realizações que você acumulou na Terra – e o capital seria uma delas), na América a relação com o Divino foi buscada de forma mais direta e dinâmica por meio de um pacto com a tecnologia: a fé na possibilidade radical de transformar a sociedade e o indivíduo por meio da tecnologia como um meio para o desenvolvimento da liberdade e a realização dos nossos potenciais, o que nos aproximaria de Deus.

Um senso de individualismo pragmático onde a plena liberdade comercial realizará a liberdade de escolha e consumo individuais. Um senso de praticidade (tudo rápido, prático, princípio do menor esforço, tudo ao alcance de um clique em um mundo de dados disponíveis com o menor esforço e custo) que é moralmente bom em si mesmo, sem maiores questionamentos políticos como controle social – quem é o dono do hardware?

A religião americana: tecnoreligião puritana?
Uma vez o escritor Harold Bloom chamou de “religião americana” a combinação entre sulismo batista, pentencostalismo e mormismo que preconizava uma espécie de auto-divinização: uma conexão direta e pessoal com Deus. Essa combinação entre misticismo e religião será a base da fé na liberdade comercial, na liberdade individual de iniciativa e consumo e em toda uma literatura de autoajuda para o aprimoramento das potencialidades individuais (auto-divinização).

Se a ética protestante pensava no gênero humano, a ética pentecostal preconiza a emancipação individual, a liberação das suas potencialidades através daquilo que é moralmente bom: o eficaz e o pragmático.

A América Virtual


Daí o pacto americano com a tecnologia, principalmente com a virtualidade, a telemática e os computadores: a lei do menor esforço e da eficiência na livre iniciativa, no consumo, na liberdade de escolha como fossem em si mesmas moralmente boas porque puras – o novo puritanismo. Esse é o dínamo de uma cultura que se acreditada dotada de um destino manifesto de levar essa boa nova para todo o planeta.

Admirável Mundo Novo? Big Brother? Controle Social? Autoritarismo cibernético? Controle da privacidade? Essas são críticas muito europeias, incompreensíveis ao puritanismo pioneiro norte-americano. Para Arthur Kroker, essa fé inquebrantável tem a ver com um eu virtual bem diferente do eu da ética protestante de Weber: não apenas acumular realizações na Terra para que Deus as veja, mas performar uma imagem de si mesmo para os outros.

A América possui um forte senso de ego, porém de um ego frágil e puramente ficcional onde as energias da libido se conectam diretamente com o vortex eletrônico sem a mediação racional do Eu. Ego relacional, não mais freudiano, mas kleiniano: um ego feito a partir de gadgets tecnológicos que media seus relacionamentos.

Um ego semelhante àquele do protagonista David Aymes (Tom Cruise) no filme Vanila Sky: dentro de um sonho lúcido formado por todas as memórias icônicas de toda a cultura pop absorvida por ele em vida antes de ser colocado em estado criogênico. Imagens icônicas que, inconscientemente, performa diante dos outros e a partir dela tenta criar relacionamentos.


Por isso a América é tão sedutora. Ter a oportunidade de assistir a uma palestra de um dos artífices da sua cultura ultra-tecnológica é testemunhar ao vivo o resultado dessa brutal transitividade entre ficção e realidade, libido e virtualidade, show/entertainment e business que tornaram os EUA um país único. A religião da América é ela mesma.

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