segunda-feira, maio 26, 2014

Semiótica do amor revela o desencontro marcado

Dia dos Namorados se aproxima como mais uma data dentro da agenda comercial que envolve Páscoa, Dia das Mães, Black Friday etc. Os críticos mais ingênuos acusam de materialismo a imposição comercial da necessidade em demonstrar amor, afeto ou carinho com presentes caros. Mas a crítica perde de vista algo de mais profundo e perverso: se para a sociedade de consumo o amor é uma mercadoria, ela deve ser inserida na lógica básica mercantil: a escassez do produto conduz a sua valorização no mercado. Por isso, na atualidade estamos presenciando uma intensa estratégia semiótica de produção de, por assim dizer, desencontros marcados: frustrações afetivas, insatisfações sexuais e carências amorosas. Tudo para criar a percepção de que o amor é um bem precioso porque está em falta, agregando cada vez mais valor a jantares românticos, caixas de bom bons e joias. Dessa forma, o amor é mais um bem que se insere na lógica mais geral de criação de escassez para a criação de commodities como a água, meio ambiente, segurança e felicidade.

Dia dos namorados se aproxima, dessa vez ofuscada pela abertura da Copa do Mundo de futebol no Brasil. Celebrado como o dia dos casais apaixonados, surgiu até movimento publicitário de uma marca de cerveja para que o evento seja antecipado um dia antes e os namorados possam acompanhar a abertura da Copa.

Realmente, toda a publicidade e a sociedade de consumo sempre necessitaram do fluxo incessante de amor, paixão, afeto e desejos como matéria prima para a promoção de campanhas de produtos e serviços. Mas ao longo dos tempos o Dia dos Namorados na mídia não se contentou apenas em usar o amor como isca subliminar para vender carros, perfumes, chocolates, roupas e cosméticos. Mais do que isso, hoje o amor é oferecido como mercadoria: como algo que você busca, encontra, experimenta e conquista.



Hoje o amor é oferecido como
 mercadoria: como algo que
você busca, encontra,
 experimenta e conquista.

Se o amor virou mercadoria à venda no mercado, então deve ser submetido a uma lei mercantil básica como qualquer outro produto: em última instância a economia capitalista exige a escassez como condição subjetiva básica para a demanda por utilidade – quando mais escasso um bem, mais valorizado ele será pelo mercado.  A sociedade de consumo parece ter colocado na prática as formulações de Freud a Lacan de que o desejo é uma falta a ser metaforizada – a falta como a causa do desejo decorrente da interdição edipiana.

A novidade é que a sociedade de consumo não só metaforizou essa falta através de produtos que prometem satisfações dos desejos por meio de fantasias, mas simula a falta por meio de uma sistemática produção da escassez na percepção dos consumidores. No caso do Dia dos Namorados, o sistemático reforço da percepção de que o amor é um bem escasso no mercado afetivo. Quanto mais sentimos que a realização amorosa é um bem precioso e difícil de ser encontrada, mais caro ela se torna no mercado.

A percepção da escassez do amor é o valor agregado para cada joia, caixa de bom bons, jantar romântico em um restaurante ou perfume, que nos faz achar justificável pagar um alto valor para uma data tão especial. Afinal, vivemos em épocas de uma suposta penúria afetiva: dados estatísticos que apontam mais mulheres do que homens no mundo, elevado número de separações e divórcios e toda uma gama de informações repercutidas na mídia que criam uma atmosfera de baixo astral afetivo. Um jantar romântico e caro não mais um presente, mas um investimento...

Luto e frustração amorosa


Se em todos os Dias dos Namorados a publicidade e o marketing prometem conquistas, sedução e a celebração dos momentos afetivos, de que maneira a escassez amorosa pode ser produzida em uma atmosfera que parece transbordar de tanta positividade?

Talvez a primeira pista esteja no filme BrilhoEterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004) onde em pleno Dia dos Namorados um casal tentar deletar das suas memórias através da neurociência o fracasso de sua vida amorosa como forma de seguir em frente na vida, sem traumas. O amor romântico e estável como pano de fundo em cada peça publicitária entre em conflito com o amor permissivo que surge da atmosfera dominante das emoções-choque do dia-a-dia da sociedade de consumo. Uma certa dose de insensibilidade ou frieza é necessária para nos protegermos de experiências dolorosas.

Como Freud certa vez afirmou, a experiência talvez mais dolorosa na existência seja a separação daqueles a quem se ama, seja pela morte ou pela separação amorosa – ambas cercadas por rituais análogos de lutificação – veja o texto “Luto e Melancolia” nas Obras Completas de Sigmund Freud. Hoje, esses rituais vitorianos são pesados demais para o nosso psiquismo leve do consumo. Por isso, quanto mais escassa a percepção da realização amorosa, mais esvaziamos nossas expectativas ao substituir o desejável pelo possível. Uma escassez conveniente: de um lado nos protege de compromissos sérios que poderiam nos machucar emocionalmente e, do outro, ajuda a agregar mais valor aos restaurantes, motéis, buquês de flores e chocolates.

A construção semiótica da escassez


Revolução sexual dos anos 60: o sexo
como uma revolução das vendas
Essa história da construção semiótica da escassez do amor se inicia na época da chamada “revolução sexual” dos anos 1960-70. Toda a revolução de vendas produzida pela pílula anticoncepcional e a erotização generalizada de bens e serviços conduzida pela sociedade de consumo baseou-se numa premissa: o sexo e o prazer são escassos por causa da repressão sexual de uma sociedade “careta”. O rock, a indústria pornográfica e toda a cultura pop foram mobilizados para a satisfação sexual. O sexo foi valorizado por ser escasso e os produtos que ajudavam os jovens a se libertarem (roupa, moda e comportamento) se tornaram, por uma relação de oferta e demanda, caros e lucrativos.

O último grito de emancipação de um bem supostamente escasso foi o de Madonna cantando Like a Virgin em uma cama giratória no meio do palco em shows com modelitos sado-masoquistas, desenhados pelo estilista Jean Paul Gaultier em 1990. A partir desse ponto, a geração MTV vivia a sexualidade de forma plena e os namoros livres sem mais a velha repressão familiar.

Como bem disponível e de fácil alcance, a mercantilização do amor e do sexo corria sérios riscos: depreciar-se e deixar de ser a isca subliminar das compras. Para tornar o amor escasso e, portanto, desejável uma nova estratégia foi mobilizada em um ambiente agora permissivo: os desencontros marcados. Em tempos de sexo permissivo, a realização amorosa deve ser perigosamente frustrante e ameaçadora à estabilidade psíquica dos amantes.

A ameaça viral da AIDS foi o início da construção do imaginário do amor como algo potencialmente perigoso e mortal. Mas a consolidação da estratégia dos desencontros marcados foi consolidada com o desenvolvimento de três técnicas simultâneas:

1 – Compensação oral


Fast food, chocolates e doces como prazeres substitutos para amores frustrados ou perdidos. Revival de um amor romântico idílico, puro e inocente, que pode somente ser resgatado por meio da comida. A campanha “First Love” da rede de fast food McDonalds, no anos 1980, foi seminal e ao longo dos anos reeditada por vários filmes publicitários em diferentes países: o primeiro amor da infância que se perdeu, mas que você pode tê-lo para sempre de volta através do sabor da bata frita passada do sorvete sundae.

Se no passado o chocolate era um presente que celebrava uma relação estabilizada, hoje é a compensação de um amor frustrado como podemos ver na imagem ao lado de um outdoor da Hershey’s. A associação simbólica do chocolate ou do doce com o amor (“o amor é uma experiência doce”). Mas o imaginário da caixa de bom bons em forma de coração ainda é um símbolo arquetípico forte, mas agora com uma ambiguidade latente: ao mesmo tempo símbolo da celebração do amor romântico e compensação oral do fantasma de uma futura frustração amorosa .

2 – O Duplo Vínculo


A mídia divulga mensagens contraditórias para homens e mulheres. Enquanto nas revistas femininas as mulheres querem fusão, companheirismo e erotização do relacionamento conjugal, ao contrário, nas revistas masculinas o homem que liberdade individual e segurança maternal. Enquanto o homem foge fobicamente das emoções em revistas cuja pauta mostra fotos de mulheres reduzidas a excitação por um fragmento (bundas, peitos etc.) ou notícias e entrevistas metrossexuais sobre moda e estilo, nas revistas femininas a leitora recebe uma enxurrada de ordens e instruções de autoridades e especialistas sobre o que os homens supostamente pensam delas e como as mulheres podem gerir seus sentimentos no trabalho, família e sexo. 

Diferente das revistas masculinas onde a mulher é representada de forma fragmentada como fetiche, ao contrário nas revistas femininas o homem é representado sem fragmentação, como se oferecesse integralmente, corpo e alma, abraçando e olhando fixamente para os olhos da mulher amada.

Semioticamente, as revistas femininas trabalham com efeitos de sentido (prescrições e regras prescritas) e as masculinas com mecanismos de ambiguação (moral ambígua entre a conquista e sedução e o amor romântico).

Colocando em outros termos, é como se as revistas femininas (Nova, Marie Claire, Noivas e Noivos etc.) e as masculinas (Playboy, VIP, Status etc.) colocassem na mesma cama Dom Juan e Cinderela.

Não há relação sexual, mas um desarranjo essencial! Portanto, não é de espantar os resultados de pesquisas sobre a vida sexual de brasileiros dando conta de um número alto feminino alto de falta de desejo (35%) e sem orgasmo (30%) – veja “Vida sexual do brasileiro”. Ou a pesquisa feita pela Durex Global Sex Survey em 36 países com 29 mil pessoas dando conta que 51% dos homens e 56% das mulheres se declaram infelizes com a vida sexual – veja “Metade dos brasileiros está insatisfeita com a vida sexual, diz pesquisa.”.

3 – Dessimbolização


Os presentes do Dia dos Namorados possuem uma forte origem simbólica como forma de dádiva, como vínculo de almas ou forma de transmissão do prestígio ou do mana – emanação de força espiritual ou vital que une grupos ou pessoas, arquétipo universal presente em diversas religiões ou culturas como, por exemplo, awen (mitologia galesa), numen (romana) ou ka (egípcia).

Essas origens simbólicas são eliminadas dos presentes nas sociedades de consumo já que, como vimos, ela explora as relações afetivas de forma contraditória buscando a escassez do produto para sua valorização no mercado. Por exemplo, anéis ou joias celebrariam a eternidade da união, o vínculo simbólico criado por uma energia espiritual. Dessimbolizado, a publicidade e o marketing tornam os presentes com índices de sedução, conquista, status e prestígio.

Indo mais além, os presentes começam a se inserir na própria linguagem midiática ou propagandística da criação de impacto: telegramas animados, helicópteros alugados para serem jogados quilos de pétalas de rosas sobre a amada, outdoors customizados com mensagens de amor etc.

De símbolos da celebração da estabilidade e comunhão, passam a se inserir na lógica do efeito especial, da excitação, do efêmero e do impacto propagandístico.

Dessa forma, o amor se insere em uma lógica mais geral de produções incessantes de escassez e penúria para que, convertidos bens preciosos, tornem-se commodities em um processo universal de mercantilização: a criação planejada da escassez para a privatização e comercialização da água, meio ambiente, ar, segurança, felicidade e assim por diante.

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