quinta-feira, junho 05, 2014

Max Headroom antevia o fim do jornalista e as bombas semióticas

Voz sampleada, gaguejante e distorcida de um personagem dotado de senso de humor cínico e irônico. Era Max Headroom, personagem digital resultante de uma secreta experiência da gigantesca Rede 23 de TV para substituir o jornalista estrela da emissora numa conspiração para encobrir uma bomba subliminar que matava espectadores. “Max Headroom” (Max Headroom, 1985), criado por Peter Wagg e exibido pela emissora inglesa Channel 4, além de ser um ícone do imaginário ciberpunk da então nascente tecnologia digital, foi um filme profético: já estava lá a futura precarização do trabalho do jornalista até o seu desaparecimento através da tecnologia telemática (repórteres guiados por telemetria e dependentes de controladores) e as bombas semióticas criadas na atual guerrilha semiológica das mídias, simbolicamente representados no filme pelos mortais “blipverts”.

As representações dos jornalistas no cinema sempre ficaram em um movimento pendular entre de um lado heróis investigativos e idealistas vivendo no underground da sociedade e, do outro, ambiciosos e potencialmente corruptos. Filmes como A Montanha dos Sete Abutres (Ace in the Hole, 1951) e O Quarto Poder (Mad City, 1997) mostram jornalistas inescrupulosos, ambiciosos e manipuladores, enquanto Todos Os Homens do Presidente (All the President’s Men, 1976) mostram Bernstein e Woodward como a quintessência do jornalismo investigativo capaz de derrubar o presidente da maior potência do mundo.

Já o filme piloto de uma série chamado Max Headroom, criado por Peter Wagg para o Channel 4 inglês em 1985, rompe com essa dualidade das representações cinematográficas do jornalismo ao vislumbrar um futuro (na verdade, a atualidade) onde as tecnologias telemáticas modificam radicalmente o papel do jornalista: do profissional que buscava a notícia, que pesquisava os dados brutos e buscava conexões, ao mero veículo de uma suposta transparência da imagem tecnológica onde o repórter vira o protagonista da própria notícia. Tudo isso para encobrir a própria precarização da profissão.

Mas talvez Max Headroom seja mais visionário ainda: previu aquilo que denominamos nas últimas postagens de “bombas semióticas”. No caso do filme, não uma bomba jornalística, mas publicitária.

O filme


O filme começa quando Edson Carter, a estrela do jornalismo da gigantesca emissora de TV Rede 23, acompanha o atendimento dos policiais a uma chamada que resultou na morte de um morador em um apartamento em um imundo prédio. Empunhando uma câmera e ao vivo, inexplicavelmente vê sua transmissão ser cortada por ordens superiores da Rede TV.

Na verdade, a morte do morador tem a ver com o imprevisto efeito colateral de um invento subliminar chamado blipvert, o grande negócio publicitário da Rede 23: multiplicação de imagens em um tempo reduzido, evitando troca de canal e queda na audiência. Mas tem um efeito colateral: muitos espectadores (em particular aposentados, idosos e sedentários) literalmente explodem diante da TV.

Inventado por Bryce, um menino prodígio em neurociência e informática que trabalha nos laboratórios secretos da emissora, ele comanda um plano de matar Edson Carter depois que o repórter acabou descobrindo a verdade sobre os blipverts. Bryce arma um plano para capturá-lo, criar um clone virtual a partir do seu cérebro para substituí-lo na tela da TV, enquanto Carter será assassinado e o corpo desovado em algum banco de órgãos clandestino.

Desse plano de escanemento das sinapses cerebrais de Carter, surge seu clone tecnológico: Max Headroom, um personagem virtual que aparece na tela do computador bem humorado, com tiradas sempre cínicas e irônicas. Uma solução que se tornará um problema embaraçoso para os executivos da Rede 23, já que em seus bites estão guardadas as imagens de como telespectadores explodem ao serem submetidos aos blipverts.

Edson Carter: o último jornalista?


Max Headroom propõe uma visão inédita do jornalista, bem diferente da tradição cinematográfica: o jornalista pós-humano. A possibilidade de a tecnologia substituí-lo, na medida em que sua profissão se precariza e o papel do jornalista torna-se cada vez mais desnecessário. E paradoxalmente, graças à ideologia da transparência da informação que ele tanto defende.

No filme, o principal instrumento de Edson Carter é a câmera com um dispositivo que permite ser rastreado telematicamente da emissora pelo seu “controlador”. Graças a esse equipamento sofisticado, Carter não precisa mais entrar em contato diretamente com o lugar e as pessoas. O que era considerado o principal trunfo do repórter – a intuição, o “faro” e a percepção direta dos acontecimentos – desaparece pela visão das diferentes imagens na tela do controlador. Ele diz para onde Carter tem que ir, entrar num prédio, pegar um elevador, entrar à direita, descer, alertar sobre pessoas que se aproximam etc.

Praticamente, Carter virou apenas um ícone, um personagem que nostalgicamente simula para os espectadores um jornalista que não existe mais: o investigativo. Ele perdeu o contato direto com a realidade.

A atração do programa de Carter é a suposta transparência das imagens ao vivo como elemento sensacionalista para segurar a audiência. Ciro Marcondes Filho em seu livro Jornalismo: A Saga dos Cães Perdidos fala que da crise das ideologias e ideais do Jornalismo só restou o “terreno esvaziado e aleatório da transparência”. Nessa nova ideologia tecnológica, a verdade é aquilo que se torna visível pelos dispositivos televisuais: se é visível, é bom; se é oculto, é mal.

Verdade, democracia, política, tudo passa a ser pensado pelo critério midiático de transparência. Nesse sentido, o papel de jornalista deixa de ser investigativo (abandona a teimosa busca metafísica pela Verdade) para ser reduzido à mera mediação técnica da notícia.

Max Headroom previu a atualidade: se a transparência é o único
valor que restou ao Jornalismo, isto é, se o papel do jornalista é o de meramente ser um canal transparente da notícia, então as máquinas poderão substituí-lo. Por isso o clone tecnológico Max Headroom é melhor, mais sagaz e atraente do que sua contraparte na realidade.

O filme Max Headroom ainda anteviu a precarização do jornalista. Na história, os jornalistas se dividem rigidamente em duas categorias: a maioria, que trabalha sentada diante de telas terminais de informação; e a minoria que trabalha em pé, as estrelas do jornalismo da Rede 23 que se transformaram em personagens ficcionais da própria informação. Eles são os únicos que estão em pé e vão à campo, porém como mero signo do repórter, espécie desaparecida já que, na verdade, seus olhos e mente são teleguiados pelos controladores sentados em seu consoles em estética high tech retro.

Blipverts: bombas semióticas?


O mundo de Max Headroom é distópico, com cidades decadentes, ruas dominadas por gangs punks e os cidadãos trancados em pequenos apartamentos em prédios deteriorados. A única abertura para o mundo é através da TV que fornece uma gama de serviços e informações que se confundem com entretenimento. Consultas médicas viram “show de sintomas”, por exemplo.

A Rede 23 detém a audiência, mas é constantemente ameaçada pelas redes rivais, inclusive TVs piratas como a Big Time à qual Max Headroom se aliará para desmascarar os blipverts.
Os blipverts são a grande carta da emissora para evitar que os telespectadores troquem de canal e ganhar a conta da Companhia Zik Zak, uma grande corporação global que só aceita fazer inserção publicitária na Rede 23 através da mortal tecnologia subliminar.

O interessante é que essa tecnologia, capaz de compactar centenas de imagens por segundo, surge num contexto geral de precarização, tanto dos telespectadores quanto dos jornalistas. De certa forma, Max Headroom foi profético ao mostrar como num contexto de precarização da profissão do jornalista, uma grande rede de TV cria uma bomba subliminar literalmente explosiva. Tanto espectadores como jornalistas se tornam cada vez mais dependentes das imagens tecnológicas: cidadão confinados em apartamentos e repórteres dirigidos telematicamente somente conhecem o mundo através da mediação das imagens. Assim como na atualidade a TV determina a percepção do que é a notícia e repórteres saem a campo apenas com a função de confirmar uma pauta pré-estabelecida por aqueles que trabalham sentados – editores, diretores etc.

O fenômeno atual das chamadas bombas semióticas lembram muitos os blipverts: condensam em uma simples imagem camadas semiológicas e retóricas que satura vídeos e fotografias de significado para moldar a percepção e arrancar uma aceitação intelectual.

O personagem virtual Max Headroom, com a sua voz sampleada, distorcida e gaguejante acabou sendo um sucesso e um ícone do ainda analógico universo ciberpunk doas anos 1980 – curiosidade: embora profético, no universo futurista do filme não há internet e nem telefones celulares. O filme acabou sendo reeditado nos EUA pela rede ABC que acabou fazendo a série em duas temporadas (1987-88).

Fora da série, Max Headroom tornou-se uma celebridade com aparições em videoclipes da MTV, fazendo um talk show onde entrevistava convidados reais e transformando-se no porta-voz da campanha da New Coke nos EUA.

Mas seu senso de humor cínico permaneceu intacto em tiradas como essa: “como você sabe que uma pessoa está mentindo? Seus lábios mexem...”.

Ficha Técnica


Título: Max Headroom
Direção: Annabel Jankel, Rocky Morton
Roteiro: Steve Roberts, David Brown
Elenco: Matt Frewer, Nickolas Grace, Amanda Pays, Paul Spurrier
Produção: Peter Wagg, Chrysalis
Distribuição: Channel 4/Warner Home Video
Ano: 1985
País: Reino Unido



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