sábado, setembro 27, 2014

O carro e a experiência fora do corpo

Um carro pode proporcionar uma experiência mística fora do corpo? Com a análise semiótica em 360 graus do caso do filme publicitário do Novo Honda Civic 2015, que apresenta o consumo como um ato muito mais de transformação espiritual do que de aquisição, o curso "A Linguagem das Mercadorias" da pós em Comunicação e Semiótica da Universidade Anhembi Morumbi fez seu último encontro dissecando a mais nova ferramenta semiótica: a “Adgnose”. Diferente das formas anteriores de busca de identificação do consumidor por meio de fantasias-modais (através de pesquisas por perfis sócio-econômicos e de estilos de vida), hoje o Marketing e a Publicidade obtêm o descolamento máximo do consumo em relação à materialidade do produto com a exploração dos arquétipos: símbolos e imagens do inconsciente coletivo. Surge uma irônica operação semiótica publicitária: ao invés de “comprar-consumir-ter”, agora temos “comprar-consumir-espiritualizar-se”.

Nessa última segunda feira (22 de setembro) esse humilde blogueiro ministrou o último encontro do curso “A Linguagem das Mercadorias” da pós-graduação em Comunicação e Semiótica da Universidade Anhembi Morumbi (informações sobre o curso clique aqui). Nos seis encontros do curso, acompanhamos como a linguagem que promove as mercadorias no capitalismo através da Publicidade foi progressivamente tornando-se cada vez mais abstrata: estudamos uma série de ferramentas semióticas que operaram um verdadeiro descolamento dos signos em relação à materialidade dos produtos.

Vimos que essa operação de “descolamento” é necessária por duas exigências econômicas bem concretas:


(a) Acompanhando o raciocínio dos teóricos da chamada Crítica da Estética da Mercadoria (Peter Haug, Michael Schneider), percebemos que todas as estratégias do Capital em maximizar lucros se chocam no limite físico do valor de uso das mercadorias: sua materialidade e finitude pode limitar o consumo no tempo e espaço (satisfação, saciedade, durabilidade etc.), diminuindo a velocidade da substituição dos produtos no mercado. Por isso, historicamente o grande papel da Publicidade foi convencer o consumidor a comprar o produto não pela sua utilidade, mas pela inutilidade. Isto é, associar o produto simbolicamente a um tipo de signo que torna-se cada vez mais abstrato.


                O consumido sempre será sempre o signo, e não mais o produto. Isso garante uma insatisfação constante, por trás da estética da realização plena oferecida pelas imagens publicitárias;

(b) A cartelização da economia após o crash financeiro de 1929 levou a uma progressiva indiferenciação tecnológica dos produtos: eles tendem a ficar cada vez mais parecidos tanto na sua matéria-prima, fabricação, apresentação e durabilidade. Novamente entra em ação a importância de transformar o produto em signo, porque só nesse nível (o linguístico) os produtos irão se diferenciar: cor, design, embalagem etc.

Os arquétipos e a Adgnose publicitária


       Nos cinco encontros anteriores descrevemos essa trajetória de abstração da mercadoria que passou por sucessivas fases: signo-fetiche, signo-afeto, signo-fantasia e signo-dádiva – sobre esses conceitos clique aqui. No último encontro do curso, tomamos contato com o signo mais abstrato e, por assim dizer, “metafísico” na atualidade onde a imagem da mercadoria foi finalmente descolada da sua materialidade: o signo-arquétipo.

Conceituamos essa nova estratégia de “Adgnose” (advertising + gnosis – “iluminação espiritual”), uma estratégia irônica da Publicidade onde ela parece ter assimilado todas as críticas feitas a ela ao longo da história (consumismo, superficialidade, frivolidade, materialismo etc.) e procura agora demonstrar que mudou, se espiritualizou e não vê mais o consumo como mero ato de aquisição, mas agora de enriquecimento espiritual.
A moderna publicidade quer transformar
o consumo em ato espiritual

E esse “enriquecimento espiritual” viria com a identificação do consumidor com um arquétipo reconhecido na signalidade do produto (imagem, apresentação, narrativa do filme publicitário – a “storytelling” etc.).

Imagens do inconsciente coletivo


O conceito de arquétipo surgiu em 1919 com o suíço discípulo de Freud Carl Gustav Jung. Para ele, arquétipos seriam formas e imagens arcaicas do inconsciente coletivo. A existência dos arquétipos pode ser deduzida a partir do comportamento, arte, mitos, religiões e sonhos, formas de atualização em cada época e cultura dessas formas psíquicas primordiais. Arquétipos como o do Herói, a Morte, o Fora da Lei etc. são o núcleo psíquico de símbolos e imagens que dão o verdadeiro significado para contos de fada, lendas, mitos e narrativas religiosas em diversos países e culturas.
Carl G. Jung (1875-1961) 

Mas principalmente, os arquétipos podem ser símbolos de transformação pessoal pela maneira com que cada pessoa lida com esses arquétipos coletivos, isto é, como esses símbolos coletivos podem ser o desencadeador das necessidades de realização, pertença, independência ou estabilidade.

Arquétipos: transformação ou motivação?


Na Adgnose esses símbolos de transformação acabam sendo traduzidos na Publicidade como “motivações” fonte de energia para serem aglutinadas e aprisionadas em narrativas e imagens que ponham em movimento um novo imaginário: o consumo muito menos como um ato de acúmulo e ostentação e mais uma oportunidade de buscar uma espécie de atalho para a iluminação espiritual: comprar-consumir-espiritualizar-se.

Quando o consumidor se reconhece no arquétipo, realiza-se um sonho há muito tempo almejado pelos diversos dispositivos que a Publicidade desenvolveu (subliminares, psíquicos, cognitivos etc.): a identificação total do consumidor com o produto, a mercadoria transformada no espelho do próprio consumidor.

Marketing: Fantasia modal superada pela
busca do arquétipo
           No passado o Marketing e a Publicidade buscavam essa identificação por meio de pontos médios sócio-econômicos (fantasias modais ou fantasias-clichês), disposições ou perfis encontrados em média em um determinado público-alvo. Por exemplo, a construção da dona-de-casa nos comerciais de sabão em pó como mulheres em torno dos 30 anos, morenas, cabelos lisos e de porte mediano. Isso criava o risco de pessoas que se situassem em pontos fora dessa curva não se identificassem com a fantasia modal, criando rejeição que poderia ser disseminada viralmente.

A partir dos arquétipos básicos descritos por Jung (Persona, Sombra, Animus, Self, Mãe e Sábio), através da ferramenta da Adgnose o Marketing e Publicidade procuram fixar os perfis psicográficos de consumidores em 12 arquétipos, traduzidos como princípios motivadores: Inocente, Explorador, Sábio, Herói, Fora-da-Lei, Mágico, Normal, Amante, Palhaço, Protetor, Criador, Poderoso.

A Linguagem das Mercadorias 360 graus


Como último encontro do curso, resolvemos construir uma abordagem em 360 graus dos diversos níveis de abstração da linguagem das mercadorias. Embora esses diversos níveis tenham uma distância cronológica na história da Publicidade, eles atualmente funcionam de forma simultânea em cada peça publicitária, seja visual ou audiovisual.

Como estudo de caso pegamos o comercial do Novo Honda Civic 2015. Ele chamou a atenção de todos da classe pela sua abordagem inicial evidentemente “espiritual”, quando a voz em off descreve uma experiência de “sair do corpo e ser levado pelo vento”, e depois ver a si mesmo no novo Honda Civic através dos olhos de uma coruja, de um velho e de um menino. Veja o comercial que analisamos:



Usando a tricotomia da semiótica peirciana:

(a) no nível da Primeiridade verificamos a construção do signo-afeto: câmera na mão tremendo, carro em velocidade, constantes enquadramentos em diagonal: a voz em of é serena e “espiritual”, enquanto as imagens são tensas, rápidas e em desequilíbrio. Temos a dominante de forma visual em diagonal, derivada do triângulo. Como vimos em aula anterior sobre as formas geométricas como arquétipos e simbolismos psíquicos (sobre a chamada “Geometria Sagrada” clique aqui), o triângulo refere-se a uma dominante de apelo ao Ego.

(b) essa aparente contradição (discurso em of “espiritualizado” e o signo-afeto apelando ao Ego) é resolvida no nível da Segundidade, com a construção do signo-fantasia: no final do filme, vemos uma mulher atraente olhando de forma provocativa, enquanto o protagonista volta para seu corpo, olha seu próprio reflexo no vidro do Honda Civic, numa clássica construção do automóvel como símbolo fálico – potencia e força masculina, apelo ao Ego.

(c) Terceiridade: nesse nível temos o principal apelo dessa peça publicitária: não estamos consumindo apenas um Honda Civic, mas o arquétipo do “Mágico”: o apelo a experiências extra-sensoriais e coincidências, momentos mágicos e experiências de transformação, experiências de fluxo etc.

Se na tradicional psicografia das pesquisas de marketing o estilo de vida e valores do público-alvo são representados por signos de identificação, na Adgnose temos um estágio mais avançado onde o público vê-se representado em um arquétipo, e não mais numa fantasia-modal. Isso quer dizer que o produto “desaparece” ou é deslocado para o segundo plano por prometer ao consumidor uma espécie de enriquecimento espiritual: a gnose.

As motivações tradicionais da compra de um veículo (apelo ao Ego, simbolismo fálico de poder e sedução) acabam sendo “racionalizados” por um consumo espiritualmente correto, new age e com valores supostamente “elevados”. Em outras palavras, o arquétipo do Mágico acaba assumindo um duplo papel: primeiro, como fator motivacional e de identificação do consumido (reforçado pela metáfora final dos olhos do protagonista se fundirem com os faróis acesos do Honda Civic).

E segundo, como álibi ou pretexto para esconder as motivações mais primárias e inconscientes: o signo-fetiche – o carro como extensão fálica masculina.

Numa visão 360 graus do curso, chegamos a uma síntese da dinâmica semióticas das mercadorias:


Primeiridade

Sinalização

Segundidade

Informação

Terceiridade

Comunicação

Afeto

Emoção
Arquétipo
Extra-signo
Desejo, fantasia
Adgnose


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