sábado, dezembro 13, 2014

Rio de Janeiro leva crianças para o Capitalismo Cognitivo

Prefeitos, governadores e presidentes vivem a pressão política  e mercadológica de tornar visíveis para a mídia e opinião pública suas obras e realizações. Mas às vezes essa corrida contra o tempo cria verdadeiros atos falhos onde a peça publicitária se trai e a verdade sobe à tona em meio a camadas de discursos e eufemismos. O exemplo mais recente é a da inacreditável publicidade veiculada no jornal “O Globo” do programa “Fábrica de Escolas do Amanhã” da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro: crianças em carteiras sobre uma esteira de linha de produção ao melhor estilo do vídeo clip “Another Brick in The Wall” do Pink Floyd. Qual concepção de educação pública é passada pelo ato falho visual? Para onde aquela esteira está levando as crianças da foto? Uma análise iconográfica e semiótica da peça publicitária pode revelar: a esteira leva para o futuro, para o Capitalismo Cognitivo.

Como diz aquele provérbio, uma imagem vale mil palavras. Publicidade veiculada no último domingo no jornal O Globo do programa “Fábrica de Escolas do Amanhã”, da Secretaria Municipal da Educação do Rio de Janeiro, mostra uma fotografia onde explicitamente faz uma aproximação de uma escola com uma linha de produção industrial.

Acima da foto em que vemos crianças nas carteiras escolares sobre uma esteira de linha de produção há um texto que diz: “Nossa linha de produção é simples. Construímos escolas, formamos cidadãos e criamos futuros”. A peça publicitária divulga o programa da prefeitura que constrói estruturas pré-moldadas para a construção e escolas, além de armazenar e distribuir material para as unidades da rede de ensino.




Imediatamente as redes sociais começaram a relacionar a fotografia com o clássico vídeo clip da música do Pink Floyd “Another Brick  in The Wall” onde vemos também estudantes em carteiras se movendo sobre uma esteira de linha de produção, para depois serem jogadas em um assustador moedor de carne humana.

O programa municipal Escola do Amanhã é bem intencionado, como todo projeto pedagógico ou de aprendizagem. Fala em “cidadãos autônomos”, “educação holística”, “personalização e individuação” e outros conceitos que encontramos em qualquer texto de educação com inspiração humanista.

Porém, ao mesmo tempo, o programa usa os típicos eufemismos da gestão corporativa: “excelência”, “gestão avançada”, “diagnóstico”, “planos de ação” etc. Em tempos de cobrança de austeridade da máquina pública, apenas palavras humanistas não legitimam políticas – são necessários conceitos corporativos para criar uma percepção de gestão eficiente - leia "Escolas do Amanhã", Secretaria Municipal da Educação, Rio de Janeiro .

Mas a imagem publicitária da Fábrica da Escola do Amanhã diz muito mais:  é um ato falho que revela os destinos da Educação dentro do chamado “Capitalismo Cognitivo” atual – a formação educacional voltada para trabalho cognitivo-cultural em serviços comerciais e financeiros caracterizados pelo uso da tecnologia digital, dentro de organizações flexíveis ou pós-fordistas - leia DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix, Capitalismo e Esquizofrenia.

À primeira vista, a imagem sugere algo como uma linha de montagem taylorista como aquela que engole Chaplin no filme Tempos Modernos: crianças padronizadas como estruturas pré-moldadas, tal qual a matéria-prima destinada à construção de escolas municipais.

Porém, utilizando ferramentas de análise iconográfica e semiótica, veremos que a imagem é um revelador ato falho daquilo que está nas entrelinhas bem intencionadas da Escola do Amanhã: formação padronizada e em série de futura mão de obra, não para as tradicionais linhas de montagem, mas como nova força de trabalho exigida pelo capitalismo cognitivo.

Iconografia: padronização versus flexibilidade

Vemos três crianças (duas meninas e um menino) sentados em carteiras. Estão sobre uma esteira rolante com as engrenagens à mostra. As crianças estão cabisbaixas. Tomando-as isoladas, seria um índice de concentração em uma atividades escolar - estão com lápis na mão e escrevem em cadernos. Porém, a padronização generalizada (uniformes, tênis, carteiras) sugere atitude de resignação.

Pink Floyd: Another Brick in The Wall
Cabeças baixas, padronização e esteira de produção criam o forte significado de serialidade. “Mais educação” é transposto para a imagem como um evento serial. Certamente, a analogia com o vídeo “Another Brick in The Wall” é imediata, pela serialidade da padronização dos estudantes como tijolos que formam o muro do sistema.

Enquanto o vídeo clip do Pink Floyd mostra carteiras antigas de madeira escura, roupas em tons cinzas, esteira de produção enferrujada, criando uma atmosfera do peso da tradição escolar, nessa peça de publicidade temos o inverso: ambiente claro onde predominam tonalidades em azul. A esteira está sobre um piso limpo, liso, vitrificado, assim como a esteira – metal como que escovado, conferindo um visual high tech. São signos de futuro, modernidade, o amanhã.

Não estamos diante de uma linha de montagem padrão taylorista, tal como no filme The Wall: não há a máscara da padronização e os cortes de cabelos são diferentes, contemporâneos, reforçando o significado de variedade étnica. O que vemos é uma linha de montagem pós-fordista, tal como as baias dos ambientes corporativos: permitem individuação dentro de um ritmo de trabalho imposto pela organização.

Combinando com as carteiras também em design moderno (sugerem materiais leves entre alumínio e plástico), a atmosfera geral passa leveza, flexibilidade e ambiente tecnológico.

Conclusão: a iconografia nos transmite significados contraditórios: de um lado o peso da padronização transmitida pelo conceito fabril de “mais educação”; e do outro o décor que transmite leveza e flexibilidade. Se é possível fazer uma psicanálise da imagem, diríamos que é um ato falho: o “chiste” da imagem refletiria a dualidade do discurso da Escola do Amanhã – noções humanistas como “autonomia”, “cidadania” e “holismo” convivendo ao lado de conceitos organizacionais duros como “gestão” e “excelência”.

Semiótica: a resignação das crianças

A figura de retórica utilizada (uma “paliconia”, isto é, o mesmo elemento repetido) reforça esse conceito geral de serialidade e produção fabril. O curioso é que as cabeças baixas dos estudantes (que poderia ser interpretada como concentração nos estudos) tem a leitura da resignação reforçada pela visão em plongée (de cima para baixo).

A "individuação" de Eduardo Paes
No vídeo clip do Pink Floyd vemos os estudantes vítimas da linha de montagem em contra-plongée (de baixo para cima) o que confere aos personagens um heroísmo trágico – luta e revolta dos estudantes contra o sistema. Ao contrário, na peça publicitária, o plongée reforça ainda mais o significado da resignação dos estudantes pela sua condição presente e futura.

E finalmente, numa saturação de signos, a esteira está em diagonal e em descenso – ela vai da posição superior esquerda para a área inferior direita. Cabeças baixas, visão em plongée e esteira em descenso saturam esse significado geral de resignação do indivíduo diante da produção serial.

E para onde a esteira rolante leva os alunos da foto? Certamente para o Capitalismo Cognitivo: os significados aparentemente contraditórios de produção serial versus leveza de cores e design transmitem o próprio futuro para o qual as crianças resignadas estão sendo “educadas” (ou treinadas?) – as organizações flexíveis dos setores de serviços e financeiros, trabalhos precarizados pela tecnologia digital e flexibilização das leis trabalhistas. 

No final a mensagem contraditória da peça publicitária revela o futuro esquizofrênico – atitude conformista convivendo com a ideologia da iniciativa individual da busca pelo mérito.

Algumas bombinhas prá terminar

 Mandatários públicos têm a compulsão em mostrar obras e realizações. Mais estradas, mais policiais, mais ruas iluminadas, mais saneamento básico e assim por diante. Publicitariamente, obras públicas são significadas pelo princípio do serial e da produtividade. O problema é quando as realizações dos gestores públicos entram na área humanística da educação e cultura: por mais cuidado e sensibilidade que tentam ter, acabam cedendo a atos falhos como a dessa peça publicitária da Fábrica da Escola do Amanhã – no final, a educação segurança e saneamento básico são medidos pela mesma régua quantitativa.

A imagem do prefeito Eduardo Paes deixando a marca da sua mão no concreto de uma estrutura pré-fabricada que construirá escolas, na inauguração de mais uma Fábrica é emblemática: a marca do realizador em meio à produção serial – talvez a única “individuação” que a Escola do Amanhã produzirá.

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