sábado, janeiro 30, 2016
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Deus existe, e ele está em algum lugar em
Bruxelas. Arrogante e grosseiro, passa os dias digitando em um computador
ultrapassado regras para tornar a vida de todos um inferno. Mas o que ninguém
sabe é que Ele tem uma filha que está decidida a ser mais bem sucedida do que
seu irmão, Jesus – libertar a humanidade do jugo de um Demiurgo através do
Novíssimo Testamento. Esse é o filme “O Novíssimo Testamento” (Le Tout Nouveau
Testament, 2015) do belga Jaco van Dormael, uma comédia de humor negro
blasfema, herética mas, principalmente, gnóstica: se soubéssemos o momento
exato da nossa morte, paradoxalmente viveríamos melhor a vida que nos resta, sem
o medo do caos e do aleatório que impedem o nosso livre-arbítrio. Para Van Domael, Deus não morreria, mas se tornaria inútil.
O que faria o leitor se soubesse o dia, a hora e o minuto exato da sua
morte? Continuaria levando a vida normalmente cumprindo seus deveres e
reponsabilidades à espera do fim? Ou mandaria tudo às favas e realizaria tudo
aquilo que seus deveres e responsabilidades não deixavam?
Mas quem enviou essa informação tão precisa e perturbadora? Uma pessoa
que teve acesso ao computador de Deus, roubou as informações e, por vingança, as enviou para todos os celulares do planeta via mensagem SMS.
E essa pessoa é nada mais do que a desconhecida filha pré-adolescente de
Deus (sempre lembramos apenasde Jesus)
que tem um plano para se libertar do jugo do seu Pai: voltar à Terra e escrever
O Novíssimo Testamento. Mas desta
vez, e diferente de Jesus, sem morrer antes e ter controle total sobre a sua
obra.
Esse é o novo filme do diretor belga Jaco Van Dormael (Sr. Ninguém, 2009) que a crítica
especializada vem definindo como uma “comédia blasfema”. O que para o Cinegnose
significa uma comédia gnóstica. Se no filme Sr.
Ninguém as referencias gnósticas eram altamente simbólicas onde o
protagonista lutava contra o aleatório que interferia no livre arbítrio, em O Novíssimo Testamento a visão gnóstica
sobre Deus e a Criação é bem mais explícita.
Deus existe é Ele mora recluso em algum lugar em Bruxelas. Rabugento,
abusivo, desbocado e vingativo vive diante a tela de um computador ultrapassado
controlando a vida da humanidade e sempre preocupado em evitar que os humanos
tenham ideias de “fugir de toda a merda”.
Os temas como Livre-arbítrio, Determinação e o Tempo desenvolvidos de forma
simbólica e filosófica em Sr. Ninguém, em O Novo Testamento são expostos de
forma direta e ironicamente divertida – se nascimento e morte são
maquiavelicamente determinados por Deus em um computador, quando o homem tiver
em suas mãos essas informações então poderá se libertar de toda dor e
sofrimento impostos pela sociedade e ter a vida em suas próprias mãos.
Então, Deus não morrerá: apenas se tornará uma ideia inútil.
O Filme
Sobre Jesus, filho de Deus, todos nós sabemos a história: veio para esse
planeta para falar de um novo Deus, capaz de compaixão, perdão e amor,
diferente do Deus de Moisés – onipotente, vingativo e castigador. Foi
assassinado pelos romanos no meio da sua missão e ficou para os apóstolos o
trabalho de interpretar a mensagem de Jesus.
Mas ninguém conhece a história da filha de Deus (chamada Ea - Pili Groyne) que vive
com seu Pai em um sombrio apartamento em Bruxelas com a sua mãe (simplesmente
chamada de “Deusa”) e as memórias do falecido irmão, transformado em pequeno
adereço decorativo sobre um móvel que, vez ou outra, ganha vida e estimula sua
irmã em seus planos de se libertar do Pai. Ea é uma clara alusão ao mito gnóstico de Sophia ("Sabedoria"): aquela que caiu sob o jugo do Demiurgo, mas que secretamente procura ajudar o homem ao lembrá-lo que dentro dele está a Luz que o conecta à Plenitude.
“Não tenha ideias loucas como o seu irmão”, ameaça Deus grunhindo para
Ea enquanto arrasta seus chinelos e um sujo roupão.
Deus (Benoit Poelvoorde) passa o dia intencionalmente criando regras em seu computador para
tornar a vida dos humanos mais miserável – a fatia de pão sempre cairá com o
lado da geleia para baixo, sempre a outra fila andará mais rápida do que a sua
ou um aborrecimento nunca vem sozinho. Deus brinca com maquetes de trens e
cidades provocando acidentes e se divertindo com tudo.
E Deus maquiavelicamente se delicia vendo as pessoas tropeçando em suas
regras e tornando tudo um inferno ainda maior.
Machista, Deus também torna um inferno a vida da sua esposa (Yolande Moreau - uma doce e
simples dona de casa que faz bordados e coleciona cartões de beisebol) e da sua
filha. Mas Ea tem um plano para se vingar do Pai e de ser mais bem
sucedida do que seu irmão, Jesus. Ea invade a sala de controle, acessa os
arquivos no velho computador e envia para cada um no planeta sua data exata da
morte.
A princípio todos acham que é alguma brincadeira de algum hacker, mas
quando todos começam a ver as pessoas morrerem (e sempre de uma maneira
engraçada) logo percebem que é tudo verdade.
As pessoas então começam a mudar radicalmente suas vidas, decidindo
realizar seus projetos mais secretos nunca permitidos pelo deveres da vida: um
sabe que tem ainda 20 anos para viver e decide deixar de ser medroso e começa a
pular de prédios, aviões e precipícios. Sempre é salvo das maneiras mais
engraçadas e inusitadas, porque sabe que não morrerá.
Outro decide passar o resto dos dias fazendo um Titanic com palitos de
fósforos. Em todos há um efeito inesperado: deixaram de ter medo e deixaram de
ter interesse em Deus.
O Novíssimo Evangelho
Ea decide escolher aleatoriamente seis pessoas para ouvir seus
evangelhos, enquanto um sem-teto redige o Novíssimo Testamento: Catherine
Deneuve decide mandar o marido embora e colocar um gorila do zoológico na sua
cama, um menino de dez anos que decide viver o resto de seus dias como menina
etc. De cada um deles Ea vai extraindo frases que a princípio parecem
banalidades retiradas de algum guru de autoajuda.
Mas aos pucos Ea e seus novos discípulos acabam criando uma nova ordem
social, bem mais agradável e sem o medo dos castigos divinos.
Mas Deus está irritado e vem atrás de Ea nas ruas de Bruxelas para
descobrir que é incapaz de cuidar de si mesmo e ser vítima das próprias regras
arbitrárias que criou para infernizar a Criação.
O filme é uma pequena fábula otimista e gnóstica cuja narrativa
anárquica lembra um mix dos filmes de Terry Gilliam e Michel Gondry e com muito
humor negro ao estilo Monty Python.
A grande “blasfêmia”
A grande “blasfêmia” de O
Novíssimo Testamento é a moral gnóstica implícita: se o homem tiver o conhecimento,
então Deus se tornará uma ideia inútil – a Criação será vivida agora em termos
humanos e não mais pelo arbítrio de um Demiurgo.
Jaco van Dormael não deixa pedra sobre pedra – até o destino trágico do
filho Jesus poderia ter sido uma conspiração do próprio Pai para que suas
“ideias malucas” não inspirassem a humanidade a se livrar das milhares de
regras que diariamente Ele digita em seu computador.
O tema da morte e da fatalidade do Tempo, discutido filosoficamente no
sci fi Sr. Ninguém, aqui é tratado sem rodeios: tudo foi obra de um Demiurgo
enlouquecido que não quer aceitar sua obsolescência. Apesar disso, se
auto-idolatra (a linha de diálogo em que Deus desabafa em alívio dizendo “Eu
seja louvado!” é impagável) e passa os dias se gabando da sua Criação para sua
esposa submissa e sua filha cada vez mais inconformada.
A virtude do filme é não deixar a narrativa cair no puro solipsismo: se
cada um decidisse fazer o que bem entendesse, acabaria toda a sociabilidade e
cultura. Mas não é isso que ocorre. A questão principal para Van Dormael é o
livre-arbítrio: o poder de cada um decidir em que termos vai conduzir sua
própria vida sem medo e restrições impostas por um Demiurgo – seja de natureza
divina ou sócio-econômica como instituições e corporações.
Deus e Iphones
Também há um evidente comentário sobre as relações atuais entre o homem
e a tecnologia: no filme as pessoas se conectam ao Divino por meio dos seus
Iphones. Neles está a contagem regressiva para a morte.
Se o leitor assistir ao filme perceberá o olhar irônico de Van Dormael
para a tecnologia – Deus se tornou tão ultrapassado quanto o sistema
operacional DOS que roda no Seu computador. E os Iphones substituíram a
necessidade do Divino. No filme essa substituição é concebida de maneira
otimista como se a vida pudesse ser reiniciada como o sistema operacional do
celular ao baixar uma nova versão.
Aqui temos um secreto simbolismo alquímico: através da tecnologia (a
Alquimia) imitar o processo divino da Criação para, então, encontrar Deus
dentro de cada um de nós. Dessa maneira, a ideia de Deus se tornaria inútil no
Novíssimo Testamento.
Ficha
Técnica
Título: O
Novíssimo Testamento
Diretor: Jaco van Dormael
Roteiro: Thomas Gunzig, Jaco van Dormael
Elenco: Pili Groyne, Benoit Poelvoorde,
Catherine Deneuve, Yolande Moreau
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Composto por seis capítulos, o livro é estruturado em duas partes distintas: a primeira parte a “Psicanálise da Comunicação” e, a segunda, “Da Semiótica ao Pós-Moderno >>>>> Leia mais>>>