domingo, setembro 25, 2016

A agenda secreta da reforma do ensino: o analfabetismo visual


Depois da divulgação da Medida Provisória que “flexibiliza” disciplinas do Ensino Médio como Artes e Educação Física o Ministério da Educação tentou explicar dizendo que não era bem assim, depois de forte reação de educadores e pedagogos. Mas está claro: não basta apenas o golpe político. É necessária uma operação psicológica para anestesiar as outras amargas “flexibilizações” que serão proximamente enfiadas goela abaixo da sociedade. Uma operação para manter um sistema de comunicação projetado pela ditadura militar e mantido até hoje – a concentração das informações para a opinião pública exclusivamente nas mídias audiovisuais, especialmente a TV. Para isso é necessária a manutenção do analfabetismo visual: a crença ingênua de que ver é um ato natural e fisiológico, impossibilitando a educação do olhar e a percepção das intencionalidades por trás das mensagens visuais. “Flexibilizar” as disciplinas Arte e Educação Física mostra  que o “núcleo duro” de Poder, persistente há décadas na política brasileira, não brinca em serviço. Sabe o que faz: o olhar e a autoconsciência corporal estão conectados através da “propriocepção”, a base da alfabetização visual.

Um grupo de alunos estava fazendo apresentação oral de um trabalho de pesquisa para a disciplina Estudos da Semiótica que ministrava na Universidade Anhembi Morumbi. O tema era a influência dos líderes de opinião na opinião pública a partir da referência teórica das pesquisas da Mass Communication Research de Paul Lazarsfeld.

A certa altura, foi mostrado um vídeo, desses inúmeros com a presidenta Dilma Rousseff que circulavam nas redes sociais que pretendiam comprovar que ela não passava de uma indigente mental: um pout pourri de frases desconexas, repetições, falas que não diziam coisa com coisa, gaguejos etc. Era nítido nesses vídeos que eram montagens, muitas delas criando um verdadeiro “efeito kuleshov” - experiência feita pelo teórico e cineasta russo Lev Kuleshov mostrando que a interpretação que o espectador faz de uma cena pode ser alterada através da montagem e justaposição arbitrária dos planos.

Intervi na apresentação, demonstrando como o vídeo era o resultado de um nítido trabalho de montagem. O vídeo em questão tinha passagens de emendas toscas, pinçadas de trechos de vídeos originais. Foi espantoso perceber a ingenuidade de alunos de segundo semestre de um curso de comunicação que, supostamente, deveriam ser os mais atentos a esses detalhes.

Essa foi uma pequeno amostra daquilo que podemos chamar de “analfabetismo visual” – a crença ingênua de que a visão é natural e que a compreensão das mensagens visuais é vinculado exclusivamente ao alfabetismo verbal. O analfabeto visual acredita estar “olhando”, quando apenas está vendo. Limita a sua leitura ao nível representativo e literal das imagens (a habilidade fisiológica da visão), sem compreender o nível abstrato (sintaxe, edição, montagem) da linguagem visual – o “olhar”, a habilidade sensitiva e afetiva construída socialmente.

Equivale ao analfabeto funcional: lê as palavras isoladamente, sem conseguir interpretar o que está lendo.


O projeto audiovisual da Ditadura Militar


Em um país no qual a ditadura militar implementou um projeto político de concentrar na televisão (especificamente no monopólio da Rede Globo) a exclusiva fonte de informações para os brasileiros, os doze anos de governos supostamente progressistas perderam a oportunidade histórica de alterar esse quadro.

A oportunidade de inserir no conteúdo de disciplinas como Artes ou especificamente dedicadas à Linguagem Audiovisual, desde o ensino fundamental, as noções de sintaxe, gramática e morfologia audiovisual. A partir da educação artística e fundamental do olhar, avançar para  sintaxe das histórias em quadrinhos, para a linguagem do story board até chegar ao roteiro e toda morfologia audiovisual de cinema e TV.

Somente em maio desse ano, no governo já agonizante de Dilma Rousseff, as artes visuais foram incorporadas ao currículo do ensino básico brasileiro. Para depois, o já empossado presidente desinterino Michel Temer ameaçar com uma Medida Provisória (MP) “flexibilizar” as disciplinas de  Artes e Educação Física no Ensino Médio – outro eufemismo é “opcionais”, o que na prática é o convite à erradicação.

Depois da divulgação da MP e a forte reação de professores e pedagogos, o Ministério da Educação emitiu nota dizendo que não é bem assim e que nenhuma disciplina seria eliminada.

Para bom entendedor, meias palavras bastam: esse verdadeiro núcleo duro do Poder na política brasileira desde as últimas décadas (a recorrente eminência parda do PDS-PFL-PMDB desde a ditadura militar, representada pelos seus vices – Sarney, Itamar Franco, Marco Maciel e Michel Temer) sabe muito bem o que pretende. O núcleo é composto por profissionais e não brincam em serviço.


Operação Psicológica


Enfiar goela abaixo da opinião pública um programa como o “Ponte Para o Futuro”, com as medidas neoliberais que estalarão como chicote no lombo daqueles que vivem da força de trabalho, implica numa delicada “psy-op” (“Operação Psicológica” no jargão da Inteligência e Espionagem) que envolve principalmente a grande mídia – especificamente, a grande mídia televisual.

Essa operação psicológica é nada mais do que a manutenção do analfabetismo visual. Situação que apenas confirma a sombria conclusão do célebre documentário Muito Além do Cidadão Kane: o Brasil mudou, o País se democratizou, mas os meios de comunicação não – mantém não só a mesma configuração do período ditatorial como dão continuidade ao projeto de concentrar nas mídias audiovisuais a única fonte informação para os brasileiros – sobre o documentário clique aqui.

 Em tal concentração, monopólio e exclusivismo da linguagem visual na opinião pública, o analfabetismo visual é a pré-condição necessária para que esse sistema de comunicação mantenha-se intacto – assim como um “núcleo duro” de poder que seja capaz de convencer os brasileiros sobre qualquer coisa: “golpes constitucionais”, “flexibilização” de direitos adquiridos, “teto de gastos” etc.

Analfabetismo visual e verbal


O analfabetismo visual é ainda mais insidioso do que o verbal, porque é silencioso: enquanto o analfabetismo verbal imediatamente prejudica a socialização, o visual é imperceptível. O analfabeto acha que está olhando (por considerar tudo natural e representativo), porém apenas vê. Acredita que a imagem é um decalque do real e é incapaz de perceber que suas impressões e juízos são decorrentes dos efeitos psicológicos (comportamentais, Gestalt, cognitivos) da sintaxe da linguagem visual.

Ana Mae Barbosa: a importância da leitura das imagens na educação

Para Ana Mae Barbosa, especialista em arte-educação, a presença das Artes desde o ensino básico beneficiaria tanto professores como alunos: Primeiro, a leitura da imagem. Preparar o indivíduo para decodificar imagens, encontrar o sentido escondido por trás delas. Além de acostumar o indivíduo a contextualizar as imagens, onde estão inseridas. Para ela, seria a porta aberta para a interdisciplinaridade, o diálogo com outras disciplinas. A História, por exemplo – sobre isso clique aqui.

Esse “núcleo duro” do Poder, perpetuador do projeto político da ditadura militar, sabe muito bem que a sua continuidade depende da hegemonia de um sistema de informação exclusivamente audiovisual. Por isso, o golpe não pode ser apenas político. Tem que continuar na esfera educacional para garantir a perpetuação do analfabetismo visual.

Analfabetismo visual e o ovo da serpente


O analfabetismo visual sempre foi o combustível que potencializou manipulações históricas em momentos políticos decisivos:

(a) A mundialmente famosa edição tendenciosa do último debate entre Collor e Lula em 1989 no Jornal Nacional, perdida de vista por leigos incapazes de perceber a edição e seleção de planos;

(b) A flagrante montagem das imagens da pilha de dinheiro (tomadas de baixo para cima pelas câmeras) apreendido pela Polícia Federal para uma suposta compra de um dossiê pelo PT, cujo impacto levou a eleição para o segundo turno em 2006;

(c) E agora, na reta final das eleições municipais, a edição do vídeo de 27 minutos com o depoimento de Eike Batista à Operação Lava Jato – foi selecionada apenas a sequência que envolve o nome do ex-ministro Guido Mantega, ignorando sequências decisivas nas quais Eike Batista entrega uma lista com beneficiados de todos os partidos, para depois ser devolvida pelos procuradores. Repercutido e martelado à exaustão, o analfabeto visual ignora a intencionalidade e contextualização do vídeo.


E como grand finale, provando que essa psy-op é séria e profissional, ameaçam “flexibilizar” também a disciplina Educação Física.  Isto é, intervir na autoconsciência corporal e cinestésica – a chamada “propriocepção”, decisiva também na inteligência visual.

Sem falar que há uma agenda ainda mais sinistra, porque internacional e imposta pelos bancos mundiais de financiamento: a agenda do controle populacional. Banir a Educação Física em um momento no qual a obesidade entre jovens de classes sociais inferiores cresce (o analfabetismo visual ainda se soma ao analfabetismo alimentar) é uma evidente política deliberada para estimular doenças e mortes decorrentes da má alimentação.

  Mais uma vez, comprova-se que os doze anos de governos supostamente progressistas nada mais fizeram do que chocar o ovo da própria serpente que iria devorá-los: enquanto estimulavam a inserção da classe C na sociedade de consumo como símbolo da conquista da cidadania, TVs e mais TVs de plasma e LED com grandes telas de 32 ou 42 polegadas entravam nos lares de novos consumidores extasiados.

Através delas, analfabeto visuais acompanharam a grande novela da caça aos corruptos, bem editada e montada para olhos ingênuos. 

O que lembra o sombrio aforismo de Walter Benjamin no momento da ascensão do nazismo: “as massas assistem ao espetáculo da sua própria destruição”.


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