domingo, dezembro 04, 2016

O "momento decisivo" na foto símbolo da aprovação da PEC 55


Nos dias recentes uma foto por câmera de telefone celular viralizou na Internet e redes sociais: no salão da Câmara dos Deputados alegres convivas entre comes e bebes, aparentemente indiferentes ao que estava acontecendo para além da ampla vidraça: do outro lado do espelho d’água a violenta repressão aos manifestantes contrários à PEC 55, em meio à fumaça das bombas de gás. Sua autora, proprietária de uma empresa de comunicação acostumada ao meio corporativo e relações com autoridades, não tinha a menor intenção de fazer uma foto de denúncia. Mas, involuntariamente, atingiu aquilo que o fotógrafo Cartier-Bresson chamava de “momento decisivo” e o semiólogo Roland Barthes de “punctum” -  produtos visuais ou audiovisuais podem, dadas certas condições, ganhar vida própria, tornarem-se autônomos e se desvencilhar das pretensões informativas ou propagandísticas dos seus emissores. E no Cinema e na Pintura também há vários exemplos disso. 

Até agora a jornalista Gisele Arthur está tentando entender o efeito viral produzido nas redes sociais e Internet por uma fotografia que fez em um evento na Câmara dos Deputados no exato momento em que manifestantes contra a votação da PEC 55, do lado de fora do Congresso, eram violentamente reprimidos com bombas de gás lacrimogêneo.

De um lado, elegeram a foto como o símbolo da aprovação da PEC 55 e do retrocesso nas conquistas sociais dos últimos anos. E do outro, uma foto que “não é bem o que parece” -  na verdade as pessoas perceberam a “quebradeira no jardim” e ficaram assustadas. Ou seja, não era exatamente uma imagem  sobre “descaso”, como sugere o flagrante.

Gisele Arthur (proprietária de uma empresa de comunicação e larga experiência em relações governamentais e assessoria parlamentar na Câmara dos Deputados e serviços a ONGs e empresas privadas na área de imprensa) se diz “vítima da Internet” com a viralização da fotografia – recebeu inúmeras mensagens e ligações de pessoas elogiando a foto.

Gisele observou que fez a foto ao ir ao cafezinho da Câmara. Ela desceu uma escada que dá no Salão Nobre da Casa e se deparou com as pessoas no evento.

"Estavam entregando troféu, aí começou aquele negócio do gás lacrimogêneo. Eu tinha ido para tirar uma foto da manifestação. Aí, quando eu voltei, eu subi a escada e vi aquelas pessoas. Dei dois cliques com o celular. A foto nem é boa", afirmou.

Como dá para se perceber, a jornalista não é exatamente uma ativista “de esquerda” (atua em um meio “chapa branca” e corporativo) e nem pretendia fazer uma denuncia sobre a atual crise política e social brasileira.


A fotografia que atualmente circula o mundo sugerindo que Brasília é a Versailles brasileira, é mais uma prova de como produtos visuais e audiovisuais podem, dadas certas condições, ganharem vida própria, tornarem-se autônomas ao se desvencilharem das pretensões informativas ou propagandísticas dos seus emissores.

Um fenômeno parecido com o que ocorre com os filmes religiosos no cinema: os melhores filmes sobre temas espiritualistas e religiosos foram, paradoxalmente, feitos por diretores ateus. Nessas condições, parece que a isenção ou neutralidade do diretor criaram a objetividade necessária para libertar as narrativas visuais das armadilhas da propaganda e apologia.

A força simbólica e a viralização da fotografia de Gisele Arthur seria mais um exemplo desse paradoxo das imagens? Seria justamente a condição “chapa branca” da jornalista responsável por criar a objetividade necessária para capturar uma cena no “momento decisivo”? – como se referia o famoso fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson.

A foto e a profundidade de campo


O primeiro elemento que se destaca na composição da foto é a profundidade de campo. Em primeiro plano vemos homens de terno, mulheres de vestido, bandejas vazias, taças na mão, alguns seguram salgadinhos. Todos absortos pelo ambiente interno do salão. Alguns parecem ter a atenção deslocada para o exterior e, com seus celulares, fotografam ou filmam o conflito lá fora.

No segundo plano, os limites interpostos ao primeiro: o vidro, os seguranças atentos e de braços cruzados e o espelho d’água fazendo o papel de fosso como naqueles castos medievais.

E no terceiro plano, a polícia em ação, conflito, confronto e a fumaça das bombas.

A profundidade de campo é aquilo que tira o caráter unitário da imagem, exatamente por romper a bidimensionalidade da imagem e do próprio suporte. Paradoxalmente, cria o realismo a partir da ilusão tridimensional.


Roland Barthes (1915-1980) na sua obra derradeira A Câmara Clara (Nova Fronteira, 2000) diz-nos que a fotografia realiza todo o seu potencial de médium quando apresenta dois elementos estruturais.

Primeiro, quando desperta um interesse geral determinado por aspectos culturais, políticos ou ideológicos do receptor. Barthes denominava esse elemento como “studium”.

É o interesse geral no aspecto informativo da fotografia, o caráter unitário: despertam interesse sem no entanto atingir profundamente – são fotos aditivas ou acumulativas a um saber pré-existente no receptor. “A foto tem tudo para ser banal, sendo a unidade a primeira regra da retórica vulgar”, escrevia Barthes.

A foto e o “punctum”


Mas também a foto pode atingir profundamente o espectador através do “punctum”, ser transpassado pelo acaso, por um pormenor, um detalhe que muitas vezes a composição geral da cena registrada pela fotografia pode favorecer. Com isso, rompe com a composição unitária pela co-presença de elementos descontínuos.

Diferente do “choque” – uma foto pode ser chocante e não perturbar, pode gritar e não ferir. Como a maioria de fotos sobre guerras ou conflitos onde o conjunto formado (agentes repressivos, manifestantes, luta, correria, fumaça, gritos etc.) são previsíveis.

A profundidade de campo cria a condição para esses elementos descontínuos como Barthes exemplifica nessa foto da Nicarágua onde no primeiro plano vemos soldados patrulhando as ruas enquanto no segundo plano duas freiras passam.


Exemplos da força do “punctum” (aquilo que faz a própria imagem transcender a si mesma) não faltam na pintura e no cinema.

Por exemplo, na pintura o artista plástico Eric Fischl explorou bastante esse elemento em quadros como na sua obra-prima The Old Man’s Boat and Old Man’s Dog (1982) – no primeiro plano vemos na tela jovens nus refastelados no convés de uma embarcação em pleno alto mar. Estão bebendo, deitados, relaxados como se estivessem em um calmo dia de sol, enquanto no segundo e terceiro planos percebemos o mar agitado e o céu escuro prenunciando uma tormenta. Todos parecem estar completamente alheios ao perigo futuro.

A indiferença e apatia representadas pelos corpos nus é o punctum – há intensidade na aparente passividade.

Ou a profundidade de campo nos filmes Bastardos Inglórios (2009) de Quantin Tarantino ou no western clássico de John Ford O Homem Que Matou o Facínora (1962) com John Wayne. Em Tarantino, a sequência inicial onde de dentro de uma casa a câmera enquadra o nazista “caçador de judeus” na soleira da porta observando a menina judia correndo em um campo aberto – a descontinuidade entre a proteção do lar e o carrasco nazista se interpondo entre o interior e o exterior aberto e iluminado onde corre a pequena menina.

Ou a chegada de Tom (John Wayne) na casa de Ranson, parado na soleira da porta: lá fora, em terceiro plano o terreno desértico, inóspito e selvagem; e dentro, em primeiro plano, a civilização.

Filme "Bastardos Inglórios" - profundidade de campo

“Punctum” e “momento decisivo”


Em meio a tantas fotos encenadas e posadas (como as das grandes manifestações de rua em 2013-14 onde black blocs posavam com paus e pedras nas mãos para ansiosos fotógrafos em busca do clique que lhes garantissem a notoriedade) que atualmente dominam o Jornalismo, o involuntário “momento decisivo” de Gisele Arthur cria impacto.

Cada lado do espectro político-ideológico viu na fotografia o seu studium, a mera confirmação das suas próprias convicções: a esquerda viu na foto bombas explodindo na senzala enquanto na Casa Grande todos tomam champanhe. Para os mais conservadores, uma foto que mostra perigosos baderneiros armados com coquetéis molotov fazendo barricadas com banheiros químicos.

Porém, não importa a posição do espectador dentro do espectro político-ideológico: todos foram transpassados pelo punctum. Tal como no quadro de Eric Fischl, o contraste entre apatia e indiferença e um horizonte que revela o perigoso porvir nos tira do conforto da informação meramente aditiva.

Será que todos na foto, na verdade, estavam assustados e atentos ao que ocorria lá fora? Talvez um vídeo mostrasse isso. Mas as imagens em movimento são ilusórias. Não passam de sucessões de frames. Sempre a fotografia é mais verdadeira por revelar o “momento decisivo”, o espaço existente entre a sucessão dos frames. O punctum.

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