quinta-feira, março 09, 2017

O suicídio ao vivo de uma estrangeira em "Christine"


Em 15 de julho de 1974, ao vivo, no Canal 40 de Sarasota, Flórida, a jornalista investigativa Christine Chubbuck leu uma breve nota. Sacou um revólver, colocou atrás da orelha e puxou o gatilho. O filme "Christine" (2016) busca o porquê esse histórico suicídio diante das câmeras procurando fugir dos tradicionais clichês: depressão, solidão, frustração profissional diante das pressões do sensacionalismo televisivo, machismo e misoginia que dominavam as redações nos anos 1970 etc. “Christine” se desvia dessas armadilhas narrativas ao privilegiar uma abordagem mais existencial e gnóstica: há uma constante e insuperável sensação de deslocamento e alienação de uma personagem que não encontra lugar nesse mundo, muito além de ideologias, profissão e vida pessoal. Christine sempre foi uma Estrangeira mesmo nos ambientes mais familiares porque sempre pressentiu que estava em um jogo cujo propósito ela nunca entendeu. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

Naquele dia o telejornal começou com a tradicional “escalada”: três notícias nacionais e uma sobre um tiroteio em um restaurante local. Oito minutos depois, ela entrou no ar. Tirou os longos cabelos do rosto, deu a volta nos papéis que segurava nas mãos e mordeu nervosamente os lábios.

Então a apresentadora disse: “Seguindo a política do Canal 40 de brindar seus telespectadores sobre as últimas notícias de sangue e vísceras a cores, vocês estão prestes de ver, em primeira mão, uma tentativa de suicídio”. Mantendo sua voz firme, sacou uma arma de sua bolsa, colocou atrás da orelha e puxou o gatilho.

Os cabelos da apresentadora voaram com uma rajada de vento e o rosto ficou todo contorcido. Seu corpo caiu violentamente para a frente. A transmissão foi encerrada nesse ponto.

Isso aconteceu em 15 de julho de 1974. A apresentadora era a jornalista investigativa Christine Chubbuck do canal WXLT-TV Channel 40 de Sarasota, Flórida, no tradicional programa matutino Suncoast Digest.

Escrito por Craig Shilowich e dirigido  por Antônio Campos (filho do jornalista Lucas Mendes, apresentador do programa Manhattan Conection, Globo News), o filme independente Chistine (2016) tenta escavar os motivos dessa tragédia transmitida ao vivo. Não é uma tarefa fácil, sem cair nos tradicionais clichês sobre a forma como o cinema vê o Jornalismo e os jornalistas – corruptos, alcoólatras ou idealistas e engajados.

Christine Chubback em 1974

O que se sabe a partir de artigo de jornal da época (clique aqui) ou pelo documentário Kate Play Christine (2016) é que ela era aparentemente infeliz em sua vida amorosa (era virgem aos 29 anos e nenhum amigo íntimo), deprimida e profundamente frustrada com a carreira. Suas ideias sobre jornalismo investigativo, muito mais discursivas e intelectuais, eram sempre despedaçadas em favor do viés sensacionalista que a emissora queria adotar para elevar a audiência em um período onde a mídia era dominada pelo machismo e misoginia.

Christine: a perfeita Estrangeira


Christine poderia transformar a tragédia num drama banal sobre mais uma vítima moderna do transtorno bipolar. Ou então, num enfoque feminista, a vítima do machismo dominante nas redações jornalísticas. Ou ainda, num enfoque mais politizado, a revolta de uma profissional idealista contra o sensacionalismo e manipulação das notícias. Ou quem sabe, partir para um retrato narcisista,  de auto-agressão e excesso de auto-indulgência, como fez documentários como Control (2008) sobre outro suicida, o vocalista da banda pós-punk Joy Division, morto em 1980.

De forma inteligente, Christine foge de todas essas armadilhas. A performance memorável da atriz Rebecca Hall (que injustamente não teve indicação ao Oscar) sugere todas essas explicações. Mas apenas sugere, como se quisesse jogar com todos esses clichês e as nossas expectativas.

Mas o filme escolhe um caminho amargo, estranho: nenhum desses caminhos explicativos consegue dar conta da tragédia de Christine. Por isso a narrativa transforma a protagonista numa perfeita estrangeira – ela constantemente está deslocada, alienada e estranha em todos os ambientes onde deveria estar à vontade: em casa com sua mãe, na redação da emissora etc.



Christine até esboça críticas aos sensacionalismo do jornalismo, mas apenas de passagem. Ela parece apenas querer fugir dali. E a visita do proprietário de uma rede de TV para escolher novos profissionais trabalhar no núcleo da rede, em Baltimore, é a última esperança.

O filme Christine é um exemplo de como o viés gnóstico transpassa gêneros e temas no cinema. Para além do drama político, ideológico ou psicológico, Christine imprime um enfoque existencial ou mesmo metafísico: a protagonista parece viver em um não-lugar, um nowhere, em algum tipo de exílio. Nada esgota ou explica o seu drama pessoal. Por que?

O Filme


O filme começa com Christine tendo os primeiros atritos com o chefe de redação, Michael (Tracy Letts) do Canal 40 – a repórter de campo apresenta uma pauta sobre lei do zoneamento.  Mas seu chefe pensa apenas na audiências e em matérias de cunho mais “humano”: violência, acidentes, incêndios etc.

Nas horas vagas Christine é voluntária em um hospital para crianças especiais onde encena um teatro com fantoches. E em casa, vivencia atritos com sua mãe divorciada e tranca-se no seu quarto onde coloca discos de John Denver na vitrola, enquanto ouve, clandestinamente, num rádio-escuta as frequências de transmissão da polícia buscando sempre novas pautas.

Nessa rotina de frustração e alienação tudo de repente muda com uma esperança: o chefe da rede está na cidade procurando jornalistas para iniciar um novo projeto em Baltimore. É a chance de apresentar seu trabalho em uma redação formada por jornalistas medíocres como o âncora George (Michael Hall), um ex-jogador de futebol americano; e Andréa (Kim Shaw), uma glamorosa repórter esportiva. Além de Steve, um meteorologista nerd e desengonçado (Tim Simons).

Christine tenta fazer de tudo para mudar seu estilo de reportagem, tentando conciliar o enfoque investigativo com o “humano”, esperado pela rede da emissora.


Tudo parece piorar com o stress e uma dor abdominal, um enorme cisto em seu ovário. Se fizer a cirurgia, jamais poderá engravidar – o que seria mais uma frustração aos seus 29 anos.

Guinada existencial


Frustração profissional, depressão, narcisismo e machismo são temas apenas sugeridos para explicar a tragédia de Christine. A guinada para o enfoque mais existencial começa quando a atração afetiva que sente pelo âncora George transforma-se em um convite para jantar. Lá saberá que George foi um ex-atleta drogado e que um grupo de apoio de Análise Transacional o salvou. George leva Christine a uma reunião do grupo, para também ajuda-la.

Nesse momento entramos em um familiar terreno do existencialismo gnóstico: assim como no filme Show de Truman, onde se tenta terapeutizar o protagonista para que abandone a paranoia e fantasias de fuga da cidade fake de Sea Heaven, também tentarão “ajudar” Christine a “curar” sua “depressão” – na verdade, a típica melancolia gnóstica: sentir-se como um Estrangeiro em um lugar inautêntico e aparentemente familiar.

Pelo ponto de vista da filosofia gnóstica de Mani (profeta persa do século III) o mundo é essencialmente dualista e mau. Mas não no sentido moral, mas intrínseco: há uma luta entre o Bem e o Mal, sempre reversível no qual um conduz ao outro como as duas faces de uma mesma moeda. Nunca haverá conciliação, mas simultaneamente dualidade e reversão.

A última esperança de Christine era Baltimore, a cabeça da rede, mais cosmopolita e próxima de Nova York. Lá, acreditava, poderia levar seus conceitos de jornalismo investigativo, longe do sensacionalismo de uma emissora local da Flórida.


Mas tudo vem abaixo quando descobre que George e a glamorosa Andréa foram os escolhidos pelo chefe da rede.

O Bem e o Mal


Qual a saída? Ser “lobotomizada” por um grupo de apoio transacional e seguir a trilha de George ou cair fora desse mundo?

Todo o simbolismo de Christine é o Mal intrínseco gnóstico: o cisto que crescia dentro da protagonista, o lar com uma mãe que mais parecia uma hippie alienada que a tratava como fosse ainda uma criança, o cancro sensacionalista que, na época, se expandia pelas redes de TV.

Essa reversibilidade entre Bem e Mal (o homem é um Estrangeiro porque o Bem e o Mal, Deus e o Diabo, jogam um jogo do qual o homem está alheio) ironicamente Christine performou diante das câmeras – se vocês querem o sensacionalismo (o Mal que cresce em algo aparentemente positivo que são as comunicações) então eu os darei...


A máxima ironia: uma pessoa boa performou o próprio Mal diante das câmeras.

Talvez, esse seja o suicídio mais autêntico para as câmeras. Não tanto por ter sido realista – afinal foi dirigido para as câmeras, resultado naquilo que diversos pesquisadores chamam de “pseudo-evento” (Umberto Eco – clique aqui) ou “não-acontecimento (Baudrillard – clique aqui). Mas por ter sido irônico e jogar com a reversibilidade entre o Bem e o Mal.

Ao contrário de outro suicídio famoso para as câmeras, do secretário da Pensilvânia Budd Dwyer em 1987, com um tiro na boca em uma coletiva para a TV – condenado por corrupção, o político se auto-imolou diante das câmeras para provar inocência com o próprio sacrifício.

A diferença? O ato de Christine foi tão subversivo em 1974 que as imagens foram imediatamente sequestradas pela rede de TV e, até hoje, trancadas a sete chaves. Ao contrário do vídeo de Budd Dwyer, disponível na Internet como mais um show sensacionalista. Justamente um dos motivos pelos quais Christine teve que morrer.


Ficha Técnica

Título: Christine
Diretor: Antônio Campos
Roteiro:  Craig Shilowich
Elenco:  Rebecca Hall, Michael C. Hall, Tracy Letts, Kim Shaw, Timothy Simons
Produção: BorderLine Films, Great Point Media
Distribuição: Great Point Media
Ano: 2016
País: EUA, Reino Unido

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