sexta-feira, março 31, 2017

Por que ninguém pode ficar sem TV digital? A "Família Dinossauros" sabia porque


Na época que a série “Família Dinossauros” (1991-1994) ia ao ar no início dos anos 1990 não existia a TV digital. Mas um episódio da série em 1993 explicava o porquê do atual esforço concentrado e inédito envolvendo Governo, emissoras, Federação de indústrias e ONGs para evitar que massas de telespectadores ficassem sem televisão com o desligamento do sinal analógico na Grande São Paulo. Praça responsável por 70% do faturamento das emissoras, apenas as possíveis consequências financeiras da perda de telespectadores não explicam esse esforço que até envolveu a entrega de Kits de TV digital gratuitos através do “assistencialista” e “populista” Bolsa Família. O humor ácido da “Família Dinossauros” dizia que jamais em uma crise econômica o Governo permitiria que cobradores tirassem a TV de pessoas endividadas: o sistema que as endivida precisa que a TV mantenha os endividados distraídos e confiantes. Conhecemos bem a função da TV em momentos de conflagração política (censura e manipulação das notícias) mas prestamos pouca atenção à sua função cotidiana e silenciosa: fazer as pessoas acreditarem que a força de vontade, o mérito e o trabalho são moralmente bons e que vale à pena acordar toda manhã confiantes e cheios de esperanças.

“Caravanas da TV Digital” organizadas às pressas para levar informações aos telespectadores sobre o desligamento do sinal analógico; uma oficina itinerante chamada “Sintonize-se” para orientar como instalar conversor e antena digital; seguidas reuniões em Brasília com o presidente da Anatel e as emissoras de TV; programas assistenciais do Governo como o Bolsa Família utilizados para a distribuição gratuita de kits de conversão para TV digital; um projeto chamado “Patrulha Digital” feito em parceria entre a Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV) e Fiesp (aquela federação de indústrias do gigantesco pato amarelo do Paulo Skaf) no qual alunos do SENAI orientaram a população e distribuíram kit digitais, entre outra série de iniciativas na Grande São Paulo para orientar as pessoas a ter a TV digital com o desligamento do sinal analógico.

A Grande São Paulo é a prova de fogo: “se vencermos aqui, implementaremos a TV digital no restante do País”, disse Paulo Tonet Camargo, presidente da Abert. Afinal, a região corresponde a 30% de audiência do PNT (Painel Nacional de Televisão) e é a praça de onde se origina 70% do faturamento.
A "Patrulha Digital" do SENAI: ninguém pode ficar sem TV Digital

Confesso que esse humilde blogueiro jamais viu tamanho esforço concentrado para “educar” as pessoas a lidar com uma novidade tecnológica em décadas de história das comunicações no Brasil – a introdução da TV em cores, o surgimento dos canais UHF, o videocassete, o controle-remoto, a chegada dos canais a cabo, os CD-ROM, a Internet etc.

Até os então criticados programas assistenciais dos governos lulo-petistas como o Bolsa Família (acusados de assistencialismo, populismo, de “estimular a preguiça”, de “somente dar o peixe e não ensinar a pescar” etc.) foram instrumentalizados para entrega gratuita de kits.

Nem em educação e saúde públicas foram vistas tantas iniciativas publico-privadas concentradas – a não ser, claro, em campanhas de vacinação contra pandemias imaginárias para favorecer grandes laboratório bio-farmacêuticos – sobre isso clique aqui.


É o dinheiro?


O leitor pode argumentar: “é o dinheiro, estúpido!”. As grandes emissoras de TV não querem perder grana e anunciantes pela queda de audiência com milhões de telespectadores pegos de surpresa pelo desligamento do sinal analógico.

Mas acredito que isso apenas explica parte da questão. Afinal, os índices de audiência já vêm há décadas sendo manipulados por metodologias e amostragens de pesquisas por grandes institutos, sempre favorecendo a TV Globo e mascarando sua queda de audiência. Como deverá acontecer agora, o impacto do desligamento do sinal analógico será diluído pelos erráticos números das pesquisas. Como de praxe, favorecendo o “share” da audiência global e com muito sigilo.

O atual complexo político-jurídico-midiático golpista vem demonstrando que está sendo muito diligente no campo da comunicação (bem diferente do que foram os governos petistas): a reforma do ensino médio (com a agenda secreta de reproduzir o analfabetismo visual para manter o atual sistema de comunicação – clique aqui), a contratação de youtubers para dourar a pílula dessa reforma educacional, a co-produção Polícia Federal e Netflix para produzir a série Lava Jato – Justiça para Todos como parte da engenharia de opinião pública para normatizar a diversionista onda de moralização nacional etc.


O atual esforço em “educar” as massas sobre a necessidade de converter sua velha TV ao sinal digital (nem que seja na base do terrorismo e da ameaça) é mais um capítulo nesse ousado arco do golpe que vai da politica (a deposição de uma presidenta democraticamente eleita) às medidas a fórceps de “flexibilização” dos direitos trabalhistas e previdenciários e a resignação das pessoas em ver cortada na própria carne o custo da crise econômica.

“Distraídas e confiantes”


Por que? Talvez aquele famoso seriado Família Dinossauros do início dos anos 1990 (com os bordões “Querida, cheguei!” e “Não é a mamãe”) possa nos ajudar a explicar o porquê de todo essa urgência em torno da necessidade em garantir uma recepção perfeita de TV para as massas.

Embora muito de nós lembremos dela como uma série infantil, seu humor era bem ácido e abordava temas polêmicos sociais e familiares como feminismo, consumo exagerado, assédio moral no trabalho, misoginia, puberdade, racismo, bullying etc.

No episódio 42 da terceira temporada, “O Casamento de Roy” (1993), o chefe de família Dino e o seu amigo Roy perdem o emprego. Há uma grave crise econômica em Pangeia que o governo acaba jogando a culpa nos dinossauros quadrúpedes – a velha tática de criar um inimigo externo para unir uma nação desesperada – assista ao vídeo no final da postagem.


A certa altura há uma sequência de impagável cinismo: “tenho que arrumar um emprego logo, minhas conta estão virando um bolo enorme”, lamenta Roy. Dino tenta ser otimista, dizendo que nessa crise os cobradores estão “mais compreensivos ultimamente”. Puro engano: sua esposa, Fran, avisa: “Dino, tem um cobrador tomando o seu carro!”.

“Essa tal de recessão está mal... daqui a pouco vêm aqui tomar a minha televisão”, lamenta Dino abanando negativamente a cabeça. Mas o cobrador o tranquiliza: “Não esquenta, o Governo nunca deixaria isso acontecer... a televisão é uma ferramenta essencial para manter as massas empobrecidas distraídas e confiantes”.

E Roy chama Dino: “Esquece essa recessão, vem ver os programinhas novos”. E vemos na TV anúncios de novos programas de estreia que vendem mensagens de otimismo, fé, força de vontade e o poder do amor para ajudar a superar todas as dificuldades da vida. 

Em geral prestamos mais atenção à função ideológica da mídia em momentos de conflagração política: a censura, as manipulações das notícias, a promiscuidade entre os interesses empresariais dos proprietários dos meios de comunicação e partidos políticos, os desdobramentos políticos dos monopólios midiáticos etc. São momentos em que as mídias exercem a sua função de “alarme” para desestabilizar governos, criar ondas de choque na opinião pública e criar pautas que desviem a atenção da opinião pública para os verdadeiros problemas – a técnica de “agenda setting”.

Ideologia são as práticas cotidianas


Porém o episódio da Família Dinossauro aponta para uma função ideológica mais cotidiana e, por assim dizer subliminar: divertir e tornar os telespectadores confiantes.

“Ideologia são as práticas cotidianas”, é tese defendida por pesquisadores como Dieter Prokop, Michael Buselmeir e Jesus Requena. Para além da ação político-partidária mais explícita, há uma ação mais cotidiana, para manter as pessoas mais otimistas e confiantes no sentido de que vale a pena, depois do futebol ao vivo ou da telenovela da noite, acordar cedo no dia seguinte para ter esperança no trabalho e no mérito.


Prokop, por exemplo, fala em “agilidade formal” como um dos traços básicos da linguagem televisiva: o ritmo intenso, a sucessão de atrações na grade de programação e o formalismo dos conteúdos do sexo à violência, tornando-os superficiais e rápidos – o medo vira susto, a violência se reduz à estética slash movie e exploited, o sexo ao pornográfico e o amor ao casamento. Protegido de experiências que possam desestabilizar sua monótona rotina de trabalho e lazer, sente-se confiante para enfrentar sempre um “novo” dia – leia MARCONDES FILHO, Ciro (org.), Dieter Prokop, Coleção grandes cientistas sociais, Ática, 1988 e MARCONDES FILHO, Ciro, A Linguagem da Sedução, Perspectiva, 1988.

O que lembra o “discurso metonímico” discutido por Requena: lateral e superficial, sempre pulando de um conteúdo para outro num fluxo infinito de imagens. A aparente variedade de informações criaria uma ilusão de “enriquecimento cultural” e “progresso” – REQUENA, Jesus Gonzalez. El Discurso Televisivo, Anagrama, 1988.

Tanto a agilidade formal como o discurso metonímico reforçariam a ideologia da vontade individual (já que o discurso televisivo nunca se dirige para o “nós” mas para o “você”). O que fundamenta a ideologia do querer, da força de vontade e do mérito.

Coincidentemente, a próxima telenovela da Globo, estreando na vigência do sinal digital, é a novela escrita por Glória Perez “A Força do Querer”. Sua sinopse é a síntese do papel ideológico cotidiano da televisão: entreter e tornar as pessoas confiantes:
Se existe algo comum a todo ser humano é que todos temos um sonho, um desejo, um querer – que diz respeito a amor, dinheiro, sucesso, identidade, poder, realização profissional. Os quereres são múltiplos e se interligam, interagem entre si nesse grande painel da convivência humana, harmonizando-se ou chocando-se uns com os outros. Movidos pelo querer, somos o tempo todo desafiados a fazer escolhas. Escolhas que nos fazem bem ou que se voltam contra nós. São questões que nos unem em um mundo em ebulição, no qual as certezas e os valores estão em pleno questionamento – (Rede Notícia – clique aqui).
Daí começamos a compreender o porquê da urgência dos esforços concentrados em garantir a TV para todos, sob o álibi da “concessão pública” e de a informação ser um “direito inalienável do cidadão à informação”.

Enquanto as pessoas acreditarem no mérito e no trabalho, e de que preencher direito um currículo e portar-se bem em uma entrevista são as chaves que abrirão portas para o sucesso, a realidade torna-se simplificada – não existe o mundo mais amplo das políticas públicas ou econômicas. Há apenas o querer e a vontade férrea de amar e ter uma vida melhor.

Dessa maneira a realidade fica menos assustadora, garantindo o sono dos justos e um despertar cheio de esperanças.

Assim como nos fala a música que abre o filme La La Land “Another Day of Sun”: “por que amanhã será mais um dia de Sol!”, exortando o ouvinte a se reerguer toda vez que estiver de baixo astral.


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