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domingo, abril 30, 2017

Curta da Semana: "Edifício Tatuapé Mahal" - a vida secreta dos bonecos de maquete


Estamos no universo dos bonecos daquelas maquetes que vemos em show room de lançamentos imobiliários. Um boneco argentino chamado Javier vem para São Paulo aproveitando o boom imobiliário no bairro do Tatuapé. Através dele conhecemos como esses pobres trabalhadores são explorados por agentes imobiliários e sujeitos a arbitrariedade de filhos de clientes que tratam as maquetes como fossem brinquedos. Mas também conhecemos os dramas existenciais da vida secreta dos bonecos de maquetes. Esse é o curta de animação brasileiro “Edifício Tatuapé Mahal” (2014) da dupla de diretoras Fernanda Salloum e Carolina Markowicz. Um interessante mix de humor negro com paródia ao típico melodrama latino-americano.

O leitor certamente já deve ter visto aquelas maquetes no show room de lançamentos imobiliários: miniaturas de projetos feitas por habilidosas mãos de artistas auxiliado por máquinas e programas de computadores que permitem cortar os matérias utilizados, representando em acrílico, cola e massas plásticas o cotidiano do feliz comprador.

Nessas maquetes de prédios e condomínios, vemos sempre pequenos bonecos que andam de bicicleta, caminham com esposa e filhos ou deitam preguiçosamente ao lado de uma piscina. E se eles tiverem uma vida secreta? Forem trabalhadores comuns submetidos a longas horas de trabalho? Têm vida pessoal com casa e esposa. E ainda sujeitos aos caprichos comerciais das construtoras ou até mesmos de filhos vândalos de compradores que roubam bonecos das maquetes em exposição enquanto os pais negociam com os corretores.

Esse é o curioso argumento do curta Edifício Tatuapé Mahal (2014) de Fernanda Salloum e Carolina Markowicz. Lembrando a trilogia de animação da Pixar Toy Story, só que numa versão adulta, o curta acompanha a estória de Javier Juarez Garcia, um boneco de maquete argentino que vem trabalhar em São Paulo, aproveitando o boom imobiliário dos bons tempos da expansão da nova classe média C no Brasil.

O Curta


No show room do lançamento do edifício Tatuapé Mahal, no bairro paulistano do Tatuapé,  Javier trabalha em longas jornadas de trabalho de sol a sol. Ele narra em of a sua infeliz jornada, reclamando dos agentes imobiliários que utilizam maquetes para dar a sensação de oásis em edifícios “de merda”. E quem sofre são os bonecos, por longas horas fazendo pose.

Como, por exemplo, o sofrimento de um companheiro de Javier forçado a andar de bicicleta 1.800 horas numa exígua área externa que no prédio real nem existirá.

Cansado de mais um dia de trabalho, Javier volta para sua casa em um outro prédio de maquete em uma espécie de universo paralelo invisível aos humanos. Lá terá um grande choque: encontrar sua esposa na cama com outro boneco de uma maquete do empreendimento mais luxuoso que o dele com pé-direito duplo e até varanda gourmet...

Desesperado decide largar tudo e vagar pelo mundo. Para encontrar na Polônia um mercado negro de cirurgiões especializado em transformações em bonecos de maquete, inclusive mudança de sexo. Um mercado que envolve milhões de dólares com bonecos que buscam a troca de personagem para variar os temas de maquetes e dobrar seus rendimentos.

Javier transforma-se em uma mulher sexy para maquetes de praias paradisíacas. Mas ele sabe que precisa retornar a São Paulo para liquidar o boneco que roubou sua esposa e limpar a sua honra. Afinal, como diz emblematicamente Javier, “foi para recuperar minha hombridade que me transformei em mulher!”.

O curta viajou por mais de 200 festivais pelo mundo, conquistando 20 prêmios. Sua produção levou 11 meses de trabalho duro de filmagem e mais seis meses de pós-produção usando uma combinação de animação 3D e stop-motion.

A ideia para o curta surgiu em uma viagem a Londres, quando a dupla de diretoras foi instantaneamente atraída para uma loja com uma enorme variedade de modelos, bonecos e maquetes. Marckowicz revela: “pensamos que seria interessante uma estória sobre um personagem em um modelo de escala que tivesse as mesmas questões emocionais de um ser humano, mas vivendo-as em seu próprio mundo”.


O prazer estético da maquete


Se na antiguidade as maquetes tiveram uma origem militar (egípcios utilizavam maquetes para reconhecimento do território e vikings espiões que produziam miniaturas dos territórios a serem invadidos), a partir do século XX ganharam espaço como modelos de felicidade à venda em pequena escala.

Como fosse um microcosmo dos dramas existenciais humanos, o curta tematiza o que haveria por trás desses “oásis de felicidade” – a exploração do trabalho pelas exigências do mercado imobiliário, questões de gênero (o protagonista que vira transexual e volta para o Brasil para defender sua “honra”), de cor, raça e preconceito – o amante da sua ex-esposa era um boneco “colorido”, enquanto ela era “branca”, assim como ele.

O tom da animação é um mix de humor negro com um típico melodrama latino-americano.

Mas há também o paralelo entre o mundo real e a das maquetes e modelos que reproduzem em escala menor o nosso mundo. O fascínio pela miniatura que de início nos oferece o prazer estético da redução, depuração e estilização.

Enquanto no mundo real, conhecer um objeto exige uma trabalhosa operação por partes (o objeto resiste, exigindo a sua divisão), na redução da escala, ao contrário, nos oferece o prazer de conhecermos o todo em um único golpe de vista. A experiência do conjunto precede agora a das partes.


Fascínio gnóstico


Esse fascínio expressaria a própria maneira como secretamente nós próprios avaliamos a experiência humana como prisioneiros em um mundo como também fosse uma maquete em escala reduzida feita por um deus ou demiurgo.

Esse imaginário é elaborado desde A República de Platão: a metáfora do ser humano como um fantoche que vive em uma caverna que confunde o jogo de sombras da parede como a própria realidade.

O fascínio atual por modelos, réplicas, fantoches, autômatos ou jogos de simulação de mundos reais em games de computador seria expressão dessa suspeita gnóstica que habita em nós: e se o nosso próprio mundo for igual àquele da maquete do Edifício Tatuapé Mahal?

Lá os bonecos estão sujeitos às arbitrariedades de agente imobiliários e filhos de clientes que depredam e roubam bonecos das maquetes – e o que é pior, sem saberem desfazendo famílias...

E aqui no nosso mundo real, somos sacados arbitrariamente pela morte e explorados pelo mesmo mercado que exploram aqueles infelizes bonecos de maquete.



Ficha Técnica

Título: Edifício Tatuapé Mahal (curta)
Diretor: Fernanda Salloum e Carolina Markowicz
Roteiro:  Fernanda Salloum e Carolina Markowicz
Elenco:  Daniel Hendler (narração)
Produção: Fulano Filmes
Fotografia: Mario Dalola
Montagem: Rami D’Aguiar
Ano: 2014
País: Brasil