quarta-feira, novembro 22, 2017

O niilismo gnóstico de Tarkovsky contra Ciência, Religião e Arte em "Stalker"


“Stalker” (1979), segundo filme de ficção científica do soviético Andrei Tarkovsky após “Solaris” (1972), está conectado tanto com o passado quanto futuro: com a misteriosa explosão em Tunguska, Sibéria, em 1908 e com o acidente nuclear de Chernobyl em 1986, cujo argumento do filme foi estranhamente profético. Um stalker (guia ilegal) conduz um cientista e um escritor para “A Zona” – região misteriosa desértica e em ruínas (lá teria caído um asteroide ou nave alienígena) cercada por forte aparato policial. Nessa zona proibida existiriam estranhos poderes capazes de realizar os desejos mais recônditos de quem sobrevivesse a suas armadilhas mortais. Para Tarkovsky, “A Zona” seria o microcosmo da própria vida: Ciência, Arte e Religião se confrontam em uma batalha niilista para ver quem herdará o que restou da sociedade moderna – mesmo depois do fim, a ilusão, a fé vulgarizada e oportunismo lutam entre si.

Em seu livro “Esculpting in Time”, o cineasta soviético Andrei Tarkovsky afirmou o seguinte sobre significado da “A Zona”, cenário principal do filme Stalker (1979), um lugar misterioso com poderes sobrenaturais que teria sido criado pela queda de um asteroide ou de uma nave alienígena: “Muita gente pergunta para mim o que simboliza A Zona, o que ela é... A Zona não simboliza nada, nada mais do que aquilo que fiz em meus filmes.  A Zona é uma zona, é a vida”.

Stalker foi o segundo trabalho de ficção científica do diretor, depois de Solaris de 1972. Vagamente baseado no romance “The Roadside Picnic”, o filme gira em torno de três desconhecidos que entram secretamente em uma espécie de zona proibida, cercada por uma cordão policial, e que vão em busca do “Quarto”, um enclave enigmático no centro da região que concederia aos seus visitantes os desejos mais recônditos.

Muito já foi escrito e discutido sobre o cultuado Stalker: propósitos, simbolismos, as supostas críticas veladas ao regime soviético etc. E Tarkovski sempre foi reticente, simplesmente dizendo que todas as análises eram possíveis. Mas a afirmação do diretor de que o filme e a própria concepção da “Zona” remetem-se à vida mesma, parece confirmar leituras de que a misteriosa região da narrativa de Stalker é na verdade um microcosmo da existência. Se isso for verdade, Tarkovski enveredou-se na mitologia gnóstica.


O legado de Tunguska e a profecia de Chernobyl


Principalmente porque Stalker é claramente inspirado no legado do até hoje inexplicável evento que ocorreu em Tunguska, Sibéria, em 1908: uma grande explosão devastou uma área de milhares de quilômetros quadrados, com uma explosão equivalente a mil bombas atômicas de Hiroshima e causando um terremoto de 5 graus da escala Richter. A ausência de cratera e a detecção de radiação na região próxima ao epicentro criou uma série de especulações – meteoro? Anti-matéria, explosão de uma grande nave extraterrestre? Fragmento de um cometa? Experiência alienígena?

No filme, “A Zona” é uma região que sofreu também uma explosão de origem misteriosa (fala-se em asteroide ou nave alienígena) e que depois de anos de incêndios, ficou uma região devastada, com ruínas industrias e urbanas cercadas de florestas com postes, máquinas e linhas férreas abandonadas. E também uma região que parece regida por leis físicas próprias, e com um misterioso “Quarto” dentro do qual os visitantes que ali se arriscam poderiam realizar seus desejos.

Ao mesmo tempo, Stalker foi profético: parece prenunciar o acidente nuclear de Chernobyl em 1986, no qual uma explosão em uma usina nuclear criou uma cidade fantasma, Pripyat, contaminada pela radiação.

Após muitos anos esse humilde blogueiro voltou a assistir ao filme. E percebeu uma ambiguidade fundamental que parece justificar a críptica frase de Tarkovski acima: se A Zona é um microcosmo da existência, de uma forma seminal Stalker reproduz a condição humana como prisioneira de uma grande simulação que entendemos como realidade. Assim como em Show de Truman e Matrix.


O Filme


  A narrativa acompanha um “stalker” (Aleksandr Kaydanovski), personagem que pertence a um seleto grupo de guias ilegais que dedicam a vida a selecionar e acompanhar aqueles que querem se aventurar na Zona para chegar ao Quarto. Um stalker conhece todos os detalhes, perigos e armadilhas. A Zona parecer ser um gigantesco complexo vivo que reage de forma diferente a cada grupo que se aventura em seu interior.

Como um sacerdócio, o stalker tem uma vida simples numa casa velha ao lado de uma linha férrea que leva à entrada da Zona, fortemente cercada por policiais, com sua esposa e uma pequena filha deficiente física. Segue determinado a sua crença de que ele traz esperança para os seus perdidos clientes infelizes.

Mesmo após passar vários anos preso como castigo por entrar na zona proibida, decide mais uma vez acompanhar visitantes, desta vez  um personagem apenas referido como “professor” (Nikolay Grinko, um físico e cientista) – determinado a fazer uma “descoberta”, procura na Zona realizar esse desejo; e outro chamado de “escritor” (Anatoliy Solonitsyn, um escritor bem sucedido – cansado do assédio de jornalistas e mulheres, vai em busca de “inspiração”.

Nas primeiras sequências em fotografia sépia, vemos a crueza da vida de um stalker, os conflitos com sua esposa infeliz e  temerosa de que o marido ausente seja preso mais uma vez e a deixe só com a filha paralítica. E a entrada arriscada na Zona sob a perseguição e tiros dos policiais, para finalmente conseguirem entrar a bordo de um pequeno vagonete motorizado nos trilhos barulhentos e enferrujados.


Ao entrar na Zona, as imagens assumem uma vistosa fotografia colorida e o que vemos é um cenário pós-apocalipse: casas incendiadas, prédios industriais em ruínas, tanques militares abandonados e detritos da sociedade moderna.

O caminho através da Zona parece arbitrariamente determinado pelo stalker, caminhando em círculos, sempre jogando para frente um pedaço de pano amarrado a uma porca para testar o solo por onde passarão. Para o guia, o caminho reto e mais curto é sempre mais perigoso: a Zona tem suas próprias leis. Como um deus, o stalker sente o que o escritor e o cientista não conseguem. Naquela região nada pode ser visto, apenas sentido.

Stalker prossegue de forma episódica com avanços e paradas, periodicamente interrompidos por discussões filosóficas sobre arte, ciência, niilismo, a partir de argumentos controversos em que as suposições iniciais dos personagens são sempre desafiadas.

Tarkovski constrói a narrativa num ritmo lento e numa constante atmosfera de tensão diante dos possíveis movimentos fatais da Zona – a região seria um verdadeiro complexo vivo e sensível à entrada de estranhos.

Os diálogos e ações são construídos em uma impressionante galeria de close-ups como se os olhos fossem a verdadeira janela da alma – cada plano é formalmente composto de maneira expressiva criando o eixo emocional do filme: olhos tristes, expressões angustiadas e a candura estoica do stalker – ele tem fé na sua missão de possibilitar a felicidade para os outros. Ele mesmo diz-se incapaz de entrar no Quarto para realizar seus próprios desejos.


Ambiguidade essencial - alerta de spoilers à frente

O leitor deverá observar algumas ambiguidades (ou anomalias) que parecem colocar em dúvida toda a narrativa descrita acima. O stalker alerta aos seus “clientes” que a Zona é muito perigosa, imprevisível e fatal. Mas ao entrar com o grupo, a primeira ação do guia é se afastar dos escritor e do cientista para passar alguns minutos deitado na relva, isolado, deliciando-se com o silêncio, como estivesse integrado com a Zona.

Há tensão em cada cena. Todos à espera de armadilhas terríveis... mas nada acontece. A sequência mais emblemática é a do túnel que leva ao Quarto. O stalker alerta que aquela passagem é um “moedor de carne” com diversos casos fatais... mas também nada parece ameaçador. A única preocupação é a de se desviar dos detritos e goteiras.

Todos os alertas e histórias contadas pelo stalker por todo o caminho através da Zona parecem não bater com a realidade: as sequências seguem-se em ritmo lento, calmo, pontuada com linhas de diálogo sobre arte, filosofia e ciência.

Nada parece ser real, mas apenas metafórico. A começar, por aquele grupo: cada um deles representa as três grandes instituições humanas: o professor, a Ciência; o escrito, a Arte; e o stalker, a Religião – fora dali, o stalker é uma pessoa comum, pobre, levando uma vida miserável (“uma prisão”, como fala logo no início). Mas dentro da Zona, ele é um deus. Ele tem fé e vive da fé que professa: ser o guia daqueles que buscam a felicidade. O stalker representa o impulso religioso vulgar.


O niilismo gnóstico


Mas Tarkovski parece conferir a esse “deus” (e de resto, toda a Religião) a natureza de um Demiurgo – o stalker cria uma ilusão de ameaças das armadilhas mortais no caminho da felicidade. Se a Ciência e a Arte não seguirem seus conselhos, morrerão pelo caminho.

Todo o trajeto pela Zona (um microcosmo da própria jornada humana como um peregrino conduzida pela fé) resulta na subversão final da Ciência e da Arte através do niilismo, que é para onde convergem todas as discussões travadas ao longo da viagem pela Zona.

O professor revela trazer uma bomba para mandar o Quarto pelos ares e o escritor o ajuda no seu plano já que o desfecho final planejado é a confirmação íntima que a vida não tem qualquer sentido, a não ser “as leis regidas pelo ferro fundido” como afirma antes de iniciar a jornada:
Não há telepatias, nem fantasmas, nem discos voadores... nada disso existe, a não ser a lei do ferro fundido. Não conte com discos voadores: seria muito empolgante. Não existe Triângulo das Bermudas. Existe apenas o triângulo A’, B’ e C’...
É a essência do niilismo de Tarkovsky que, ao final do filme, revela-se gnóstico: Ciência e Arte têm um plano secreto de subversão contra o domínio da Religião, criadora de mundos ilusórios ameaçadores que supostamente se colocariam no caminho das nossas felicidades.


Porém, o solução da Arte é ganhar dinheiro sobre a desesperança das massas, enquanto a Ciência quer mandar tudo pelos ares por meio da guerra e da perigosa manipulação das forças da matéria – o que se materializou no acidente nuclear de Chernobyl de 1986 cujo filme Stalker estranhamente profetiza com os cenários urbanos abandonados da Zona.

A cena final na qual vemos a filha do stalker sentada à mesa, observando os copos e fazendo-os moverem apenas com o olhar sugerindo o poder paranormal telecinético, é a própria aspiração gnóstica do tertium quid, aspirar pelo terceiro elemento: nem a ilusão perpetrada pelo stalker, o professor e o escritor (Religião, Ciência e Arte) e nem a realidade – um mundo pós-apocalíptico dominado por um Estado policial que cerca a Zona para impedir a realização da felicidade individual (crítica velada de Tarkovsky ao regime soviético?).

A pequena filha do stalker encontra as forças de transformação dentro de si própria (a metáfora dos poderes paranormais), mesmo fisicamente entrevada pela paralisia - o simbolismo de mundo dominado pelo totalitarismo, Ciência, Religião e a Arte mercantilizada que paralisa as novas gerações.

Para Tarkovsky o niilismo não significa acreditar no nada – que, afinal, é a profissão da Religião, Ciência e Arte. Se o Gnosticismo vê o mundo como radicalmente mal, é na negação absoluta feita pelo filme Stalker que está a possibilidade do inteiramente outro.

E o inteiramente outro está na estranheza da pequena menina que encontra forças dentro de si mesma para mover o mundo.


Ficha Técnica 

Título: Stalker
Diretor: Andrei Tarkovsky
Roteiro: Andrei Tarkowsky livremente baseado em romance de Arkadiy e Boris Strugatskiy
Elenco:  Aleksander Kaydanovskiy, Anatoliy Solonitsyn, Nikolay Grinko, Alisa Freyndlikh
Produção: Mosfilm
Distribuição: Continental Home Video (DVD)
Ano: 1979
País: URSS

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