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segunda-feira, novembro 06, 2017

O sonambulismo gnóstico-noir em "Sleepwalker"



Uma mulher traumatizada pela morte do seu marido convive com sérios distúrbios do sono: sonambulismo, insônia e pesadelos. Sob tratamento em uma clínica especializada, finalmente consegue um sono reparador. Porém, algo de assustador começa a acontecer: a cada despertar, é como se acordasse em uma realidade alternativa com um novo sobrenome e pessoas conhecidas que não se lembram dela. “Sleepwalker” (2017) é um curioso filme que transita entre a estética “noir” (ninguém é o que aparenta ser), uma estranha atmosfera retro atemporal e a narrativa gnóstica sobre uma protagonista que parece navegar por diversas realidades em busca de memórias perdidas e crescente paranoia. O sonambulismo é o elo que em “Sleepwalker” une o “noir” com o gnóstico: estar desperto em um sonho é um evento marcado por uma forte carga simbólica de alguém que tenta acordar e encontrar a verdade. Filme sugerido pelo nosso antenado leitor Felipe Resende.

Sleepwalker (2017) é um daqueles filmes que deve ser assistindo com muita atenção e, se possível, assisti-lo mais uma vez. Uma narrativa que pega como temas a insônia, sonhos, memórias, esquecimento e a paranoia, tudo recheado com simbolismo como a chuva e a tempestade, é promessa de viradas e a certeza de que nada é aquilo que aparenta ser.

Com simbolismos e estilo do velho filme noir e uma estranha atmosfera atemporal e retro, Sleepwalker é um filme que lembrará Ilha do Medo (pelas constantes viradas narrativas e a onipresença de clínicas psiquiátricas) e A Passagem (Stay, 2005) pela constante confusão entre sonho e realidade.

Com todos esses elementos, certamente Sleepwalker aborda os clássicos temas do filme gnóstico: o protagonista insone (o símbolo da não adequação do personagem à realidade em que vive e a resistência em dormir como necessidade de despertar para a verdade, como em Donie Darko, Matrix, Animais Noturnos, Cidade das Sombras etc.); a desesperada busca do resgate da memórias – o esquecimento como a própria condição humana; a paranoia (o medo de alguma maquinação arquitetada por alguém que não nos ama); e o esfacelamento de tudo que parece concreto – a confusão entre o sonho (ou o pesadelo) e a realidade.


O encontro do Noir com o Gnóstico


Sleepwalker é um exemplo de como os plots do filme noir e o gnóstico se confundem. Ambos os gêneros de filmes surgem no século XX sob o signo de crises: o noir, influenciado pelo expressionismo alemão (o gênero que expressou todos os temores e pesadelos que conduziriam ao nazismo e a guerra), representou toda a ruptura social da grande depressão econômica nos EUA, o crime e ilegalidade, a guerra e a paranoia do macarthismo.

E o filme gnóstico com a ansiedade do final de milênio marcada pela ruptura tecnológica (o virtual e o digital) a globalização e paranoia do terrorismo.

Por exemplo, não é para menos que clássicos gnósticos como Blade Runner (1982) confunde-se com a narrativa noir - suspense policial sob contrastes violentos de claro e escuro na qual a desconfiança e as aparências são onipresente em um mundo que parece se diluir na chuva.

Assim como no filme gnóstico está centrado no tema da desconstrução das ilusões, também o noir quer revolver essa fronteira entre as projeções do nosso psiquismo e a realidade empírica.

Mas Sleepwalker possui o liame que definitivamente une um filme noir com o gnóstico: o sonambulismo da protagonista – estar desperto no sonho é um evento marcado por uma forte carga simbólica de alguém que tenta acordar e encontrar a verdade.

O Filme


O filme abre com a protagonista caminhando por uma rua noturna e vazia com um longa camisola branca – clássica iconografia gótica. Ela está sonambula, com um olhar fixo e perdido, até ser parada por policiais para ser levada de volta para casa.

Ela é Sarah Foster (Anna O’Reilly), uma mulher profundamente traumatizada por ter testemunhado o suicídio do seu marido, um famoso escritor. Com sérios problemas com o sono e atormentada por pesadelos e sonambulismo, Sarah decide retornar aos seus estudos de pós-graduação na esperança de que a mudança de cenário vai curar a sua aflição noturna.

Cada vez mais preocupada com os episódios de sonambulismo, decide visitar uma clínica de estudos e tratamento do sono, onde conhece o Dr. Scott White – um médico que rapidamente passa a se interessar pelo seu caso e as curvas incomuns nos gráficos de atividade cerebral.


Enquanto procura um sono reparador na clínica, cercada de elétrodos e equipamentos de monitoramento,  Sarah começa a perceber que toda a vez que ela acorda a realidade parece ter mudado: sua colega de apartamento é uma pessoa diferente, seu sobrenome muda (de “Foster” para “Wells”), as roupas no seu armário já nãos ervem mais para ela, uma médica psiquiátrica com a qual se consultou não se lembra dela e na clínica não há registros do seu caso.

Em seus pesadelos Sarah está à procura de uma mulher específica que, repetidamente, diz para ela ir embora. Depois, há um homem misterioso que a persegue, ameaçando-a.

A única pessoa em quem pode confiar é no Dr. White – com quem, claro, se apaixonará. Porém, esse recurso narrativo clichê é uma mera pista falsa. Ninguém no filme é quem aparenta ser, incluindo a própria protagonista, e o suicídio que testemunhou logo nas primeiras sequência pode ser uma coisa completamente diferente...


A narrativa é deliberadamente confusa, com uma estranha atmosfera entre o gótico e o retrô – as roupas de Sarah são explicitamente ultrapassadas, os móveis em um estilo de época indefinida entre os anos 60 e 70 e chuva e tempestade que cai em vários momentos do filme. Estranha condição climática numa Los Angeles e colinas de Hollywood que chove pouquíssimas vezes no ano.

Anomalias góticas e retro


Tudo para criar uma atmosfera onírica: afinal, estamos na realidade? Ou tudo se passa no interior dos pesadelos de Sarah? Ou, pior, Sarah está em algum limbo entre a vida e a morte, como no filme A Passagem?  

Com essas anomalias góticas, retro e meteorológicas, associadas a um inegável estilo do cinema noir com suspeitas, traições e assassinatos, certamente o espectador não estará pisando no sólido piso da realidade.

A grande virtude de Sleepwalker é como a narrativa transita fácil entre a mística gnóstica e o campo demasiado humano do suspense noir.

E o fenômeno do sonambulismo da protagonista é o elo que consegue unir tudo. No filme gnóstico, o esforço do protagonista manter-se acordado durante a noite é o próprio esforço da busca da verdade e do conhecimento. Mas não um conhecimento racional e lógico, porque na teologia mística é na noite em que está tudo aquilo que dissolve o conhecimento, a racionalidade e a lógica – de resto, tudo aquilo que nos mantém na ilusão diurna.


Mesmo que tentemos nos manter acordado, o sono é inevitável como função fisiológica. Entre o sonho produzida pela nossa tela mental que apenas perpetua as ilusões diurnas por meio de toda uma carga de simbolismos e a sonho lúcido (estágio mais avançado de desconstrução da tela mental), está o sonambulismo e as chamadas “doenças” do sono. Na verdade, tentativas de se manter desperto para alguma verdade interior.

Como navegar entre as diversas realidades


Sonâmbula, Sarah terá que transitar entre as diversas realidades alternativas que se oferecem a ela a cada vez que acorda. Isto é, transitar e evitar ser ludibriada pelas ilusões de cada realidade.

Associado ao simbolismo da chuva e tempestade (fertilização mental e espiritual e, no filme noir, o mundo de certezas e aparências que se dilui), as diversas realidades alternativas de Sarah remontam à milenar cosmologia gnóstica: após a morte, o desafio é navegar entre os diversos mundos sem ser enganado ou seduzido pelas ilusões – cuja queda nos faria sermos mais uma vez aprisionados pela armadilha da reencarnação, reencenando o drama da prisão nesse mundo.    

O drama de Sarah em Sleepwalker é transitar, entender e resolver a verdadeira teia de simbolismos, pistas falsas e a crescente paranoia entre as diversas realidades alternativas. Um movimento em espiral que, como em toda narrativa gnóstica, é a busca do autoconhecimento do protagonista cujas consequências repercutirão em todos ao seu redor.


Ficha Técnica 

Título: Sleepwalker
Diretor: Elliott Lester
Roteiro: Jack Olsen
Elenco:  Richard Armitage, Jake Broder, Ahna O’Reilly, Matthew Del Negro, Rachel Melvin
Produção: Night and Day Pictures
Distribuição: MarVista Entertainment
Ano: 2017
País: EUA

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