sábado, janeiro 06, 2018

"After Life": após a morte, cinema, memória e esquecimento nos esperam


O filme japonês “After Life” (Wandafuru Raifu, 1998), de Hirokazu Koreeda, é um ponto fora da curva das representações do pós-vida no cinema. O filme combina duas representações que sempre se opuseram: de um lado, a representação do céu como uma organização hierárquica com porteiros, anjos e tribunais; e do outro o céu solipsista, como projeção dos nossos sonhos, memórias e desejos. Um grupo de recém-falecidos chega a um velho prédio, no qual são recebidos por funcionários que explicam que morreram. Os funcionários são roteiristas e produtores de cinema. A missão: escolher uma memória a partir da vida de cada um. Para ser roteirizada e transformada em um filme que reconstitua a cena mais feliz que cada um levará para toda a Eternidade. Enquanto todo o restante da vida será esquecido. Uma fábula sobre o tempo, morte e memória. Mas também suscita uma reflexão sobre um tipo de memória criada a partir dos simulacros da imagem.

“Todos estão tentando chegar no bar/ O nome do bar é chamado Céu/ a banda do Céu toca minha música favorita/ O Céu é o lugar onde nada acontece/ Quando esse beijo terminar/ ele irá começar de novo/ E não será nada diferente/ Será exatamente o mesmo/ É difícil imaginar que nada mais / Possa ser tão excitante, possa ser tão divertido”. (“Heaven”, Talking Heads)  
  

Como nenhum cineasta jamais morreu e voltou do outro lado com imagens do além, as representações da vida pós-morte no cinema revelam muito mais as transformações da vida terrena do que de alguma existência extra-corpórea.

O tema da existência de vida pós-morte passou a interessar  o cinema na II Guerra Mundial pelo impacto cultural de milhares de soldados mortos nos campos de batalha. Filmes mostrando soldados chegando ao céu para serem recompensados pelo sacrifício e esforço, além dos temas derivados (fantasmas e o sobrenatural) criaram uma lista imensa de filmes nesse período: Beyond Christmas (1940), A Guy Named Joe (1943), A Matter of Life and Death (Stairway to Heaven 1946). Mesmo nos filmes onde a guerra não é o tema como Here Comes Mr. Jordan (1941), Heaven Can Wait (1943), Cabin in the Sky (1943), Angel on My Shoulder (1946), The Ghost and Mrs. Muir (1947), and Sunset Boulevard (1949).

Nas três décadas posteriores acompanhamos o decréscimo de filmes sobre o tema – com o crescimento da sociedade de consumo, comédias, hedonismo e sci-fis dominaram a pauta temática do cinema.

Com a proximidade do final de século vemos um novo boom de filmes sobre o tema da vida após a morte e, com a virada, só se intensificou: Amor Além da Vida (1998), O Sexto Sentido (1999), American Beauty (1999),What Lies Beneath (2000), Dogma (1999), Gladiator (2000), Final Destination (2000), Um Olhar do Paraíso (2009), Enter the Void (2009), The Discovery (2017) etc.

O medo pela virada do milênio (“Bug do Milênio”, profecias sobre fim do mundo), a insegurança pela guerra ao terrorismo e catástrofes ambientais seriam fatores que impactariam a cultura como defende a pesquisadora Amanda Shapiro em sua tese “You Only Live Twice: The Representation of the Afterlife in Film” (Miami University, 2011).


Anjos e solipsismo


No cinema há duas representações básicas sobre a vida pós-morte: a representação do céu com nuvens, anjos tocando harpas, ao lado de um sistema organizado, hierarquizado e burocrático com porteiros, tribunais etc. Ou o “céu” solipsista, representação que domina desde o filme Amor Além da Vida: diversos céus pessoais criados por projeções psicológicas a partir de seus sonhos, memórias e desejos.

Mas o filme japonês After Life (Wandafuru Raifu, 1998), de Hirokazu Koreeda (um diretor que repetidas vezes explora temas como o tempo, a memória e a morte), embora se situe na segunda onda do interesse da vida pós-morte pelo cinema, é um ponto fora da curva: é uma curiosa combinação das duas representações dos “céus”: a clássica e a solipsista. Talvez um reflexo da própria sociedade japonesa, capaz de combinar a alta tecnologia e sociedade de consumo do capitalismo avançado com práticas culturais feudais e imemoriais - assista ao filme abaixo com legendas em espanhol.

Koreeda aborda o tema de uma maneira pungente, delicada e comovente:  após a morte o que mais nós prezamos da vida que passou? Depois de uma vida inteira de esforços pela carreira, dinheiro e o sucesso, se fossemos forçados a escolher apenas uma única memória que sintetizasse a nossa vida e levasse essa lembrança para toda eternidade, qual momento ou cena da vida escolheríamos?

Para After Life, certamente escolheríamos pequenas lembranças ligadas a aromas, texturas, sons, sussurros, confissões amorosas, afagos, olhares e outras qualidades sensoriais fugidias, que passam batidas pela nossa consciência e são esquecidas em nossa corrida por conquistas materiais. Mas, embora esquecidas, foram importantes na estruturação de quem nós somos: personalidade, caráter e, principalmente, capacidade de empatia e amor.


Tudo pode parecer de um sentimentalismo piegas, mas o método narrativo escolhido pelo diretor garante um distanciamento objetivo: uma combinação de atores experientes e não profissionais cujos depoimentos são material confessional legítimo, o que, em muitos momentos, dá ao filme uma atmosfera documental.

O Filme


Na primeira cena ouvimos um sino tocar. E também vemos apenas os perfis de pessoas atravessando a soleira de uma porta larga, contra uma luz branca e forte vinda de fora. Eles estão entrando num edifício comum cercado por árvores e bambuzais em um lugar indeterminado. São recebidos por uma equipe de funcionários que, de forma cortês, explicam que morreram e que estão agora em uma espécie de estação provisória, antes de passarem para o próximo estágio das suas experiências: a Eternidade.

O grupo de 22 pessoas recém-falecidas ficará ali por uma semana, com prazos bem apertados: terão três dias para escolher uma memória feliz de toda a sua vida. Uma memória que desejam salvar, para revivê-la por toda a eternidade. Enquanto, todo o restante será esquecido.

Serão entrevistados por roteiristas que buscarão detalhar as cenas da memória escolhida, mas principalmente aspectos sinestésicos: cores, som, texturas, toque, músicas etc. Após essas entrevistas, os roteiristas terão pouco tempo para elaborar cinematograficamente as cenas para serem passadas às equipes de produção – em grandes estúdios, tentarão reconstruir filmicamente as memórias com trucagens simples e criativas, típicas de uma produção de baixo orçamento e sem efeitos especiais de pós-produção.


Todos os filmes deverão estar prontos no sábado, quando serão exibidos em uma sala de projeção para o grupo de hóspedes temporários. E no dia seguinte partirão para a Eternidade, com a memória cinematográfica do momento mais feliz das suas vidas. 

O desafio tanto de roteiristas como da produção é evidente: como reconstituir através de imagens experiências tão sensoriais, exclusivas e pessoais? Não se trata apenas de narrar, mas através das imagens reviver as sensações sinestésicas e emoções. E tudo com baixo orçamento.

Aqueles que não conseguirem escolher uma memória (mesmo com o auxílio de diversas caixas de VHS com vídeos gravados da vida inteira) não poderão partir, e farão parte da equipe de roteiristas e produção.

É o que garantirá um dos momentos mais emocionantes de After Life: quando um jovem roteirista da equipe (há 50 anos está ali, incapaz de escolher a sua memória-síntese) descobre uma conexão entre ele e um idoso recém-chegado, capaz de alterar toda a sua percepção de vida – a lembrança de um jovem amor de anos atrás. Ele morrera na II Guerra Mundial deixando para trás a jovem que amava que mais tarde seria a esposa do recém-chegado que estava ali agora, na sua frente.

Memória, Morte e Esquecimento


After Life é uma fábula sobre tempo, morte e memória. Além de ser uma carta de amor ao cinema como uma memória criada para manter, por toda eternidade, a qualidade atemporal de um filme.

Mas também é sobre esquecimento. O diretor Koreeda figura o solipsismo do pós-vida típico da segunda onda cinematográfica sobre a morte – o Além como uma dimensão de natureza plástica e moldável segundo nossos sonhos e lembranças.


Mas o interessante em After Life é que esse solipsismo é um constructo: existe uma estrutura burocrática e hierárquica que reconstrói as memórias, sonhos e fantasias dos recém-chegados. Reviver na Eternidade sua memória mais feliz a partir de um simulacro de uma cena que se perdeu no tempo.

O preço desse prazer eterno é o esquecimento: todo o restante será apagado e uma única cena será pinçada de todo o resto.

After Life permite essa leitura gnóstica pela ambiguidade através da qual Koreeda trata o tema – por um lado é um emocionante e pungente mergulho na natureza das memórias e como elas desafiam a morte e o tempo por meio daquilo que é, paradoxalmente, mais corporal e sinestésico. Mas de outro, o pós-vida como uma estrutura que, no além, repete a hierarquia e burocracia terrenas e, como qualquer organização, cobra um preço: o prazer eterno e solipsista na Eternidade em troca do esquecimento.

 Morte e esquecimento é aquilo que, para o Gnosticismo, nos prende a esse cosmos material – através da reencarnação, somos condenados a recomeçar do zero, do esquecimento, sob a ilusão do renascimento sob uma promessa de redenção que nunca se concretiza. Porque esquecemos e não aprendemos.

A diferença, é que After Life joga esse esquecimento para a Eternidade. Para sempre ficarmos repetindo as sensações mais felizes de uma vida que foi esquecida.


Ficha Técnica 

Título: After Life
Criador: Hirokazu Koreeda
Roteiro: Hirokazu Koreeda
Elenco:  Arata Iura, Erika Oda, Susumu Terajima, Takashi Naitô
Produção: Engine Film, Sputnik Productions
Distribuição: Artistic License
Ano: 1998
País: Japão

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