quarta-feira, janeiro 27, 2010

Código Da Vinci é Gnóstico? Algumas confusões conceituais


Muito se fala sobre o Gnosticismo em O Código Da Vinci (The Da Vinci Code, 2006) por apresentar uma versão heterodoxa ou mística de Jesus Cristo, supostamente próxima dos evangelhos apócrifos do gnosticismo. Mas certamente o seu “gnosticismo” é menos pelo conteúdo religioso e muito mais pelos estereótipos pop em torno do tema (sociedades secretas, teorias conspiratórias etc.).

Rotular o filme como “gnóstico” ou “religioso” revela uma generalização conceitual existente entre o filme gnóstico, filme religioso ou sobre o sagrado e filme sobre religião.

Filmes sobre religião seriam aqueles cujo tema religiosidade, religião, organizações religiosas, igrejas etc. são meros pretextos ou pano de fundo para o exercício dos clichês ou convenções de um determinado gênero (policial, thriller, suspense, histórico etc.). O Código Da Vinci se enquadraria facilmente nessa categoria ao fazer um pastiche de elementos históricos e religiosos, reais e ficcionais, tudo mesclado numa narrativa clássica hollywoodiana (que possibilita a identificação com os protagonistas e a forte esquematização entre bem/mal, danação/salvação). Filmes sobre religião não têm a menor pretensão em representar experiência do sagrado, iluminação ou transcendência que envolva seja o protagonista ou seja o espectador. Por possuir uma narrativa sem ambigüidades e fortemente esquemática, não permite nenhuma tensão entre forma e conteúdo que permitiria vazios ou interstícios através dos quais poderia surgir uma experiência de transcendência ou transformação.

Já o filme religioso ou sobre o sagrado já trás o problema do conteúdo e da forma. Por procurar formas imagéticas que procurem se aproximar das experiências de transcendência, seja mística ou religiosa, já experimentam o princípio da tensão entre forma e conteúdo, como coloca Lemos Filho:


“O filme religioso traz problema de conteúdo e de forma. Lumiére desejou simplesmente a realidade sem nenhuma preocupação formal. Meliées, ao contrário, preocupou-se demais com as estruturas formais. De então para cá, o filme religioso tem se inclinado ora para um ora para outro . Determinados elementos formais podem modificar o sentido do conteúdo religioso. Às vezes, a qualidade da obra sob o ponto de vista religioso depende muito menos de seu conteúdo estrito do que de sua forma. A correlação entre valores estéticos e valores religiosos é de fundamental importância para se analisar um filme e encontrar nele a evocação do sagrado”. (LEMOS FILHO, Arnaldo Cinema e o sagrado. IN Comunicarte, v.7/8, n.13/14, p. 6-20. 1990).



É o exemplo de um filme como Diário de um Padre (Journal d’um Cure de Campagne, 1951) de Robert Bresson que nos fala sobre experiências religiosas por meio de um viés realista que imprime banalidade e sensualidade bruta aos objetos e rotinas para revelar, através deles, inesperadas experiências de transcendência (“não importa, tudo é graça”, afirma o protagonista no final). Podemos denominar essa teoria cinematográfica como “realismo espiritual”.

Outra corrente é aquela que podemos denominar como de “formalismo espiritual”, inspirada na possibilidade da exploração das potencialidades formais do cinema tais como a abstração e simbolismo da montagem, do surrealismo e do camp.
Um exemplo dessa vertente está no filme 8 e Meio (8 ½, 1963) de Fellini. Um filme auto-referente: há um filme a ser feito e Oito e meio constrói-se a partir dessa necessidade. Oito e Meio começa com um sonho. Depois, o filme volta a uma estrutura mais coerente, realista, condizente com uma descrição da realidade. Mas trata-se de uma coerência relativa. As situações muitas vezes são verossímeis, porém não são "razoáveis". Há uma confusão constante, um entrar e sair incessante, em meio a imagens quase oníricas. O filme é a exploração de uma estrutura complexa de auto-referencialidades: um filme autobiográfico de Fellini, com uma narrativa sobre a produção de outro filme onde o protagonista embaralha seus sonhos com a realidade. Através de recursos formais como a auto-referencialidade e narrativa ambígua, o filme drena a solidez da realidade para fazer o espectador transcender a realidade dada.

Por sua vez o filme gnóstico experimenta a tensão entre forma e conteúdo por meio da ironia, no sentido dado pelos teóricos do Romantismo literário: procura conferir à narrativa um caráter de ambigüidade através de paradoxos, contradições e negações, pois os recursos formais disponíveis através da linguagem (seja ela fílmica ou literária)são insuficientes para expressar o inominável.

O filme gnóstico detém uma substância esotérica contida em um pacote exotérico, isto é, trabalha com o tema da ilusão da realidade dentro de um produto comercial determinado por uma ilusão: as convenções comerciais do gênero e o próprio caráter ficcional da representação fílmica. Este tipo de filme parece estar consciente dessa condição ao propor, como saída para essa tensão, experiências formais que explodem a expectativa do espectador pelos clichês do gênero.

O filme gnóstico parece seguir o sentido contrário desse prazer cinematográfico. A utilização dos instrumentos da ironia como a fragmentação, auto-referência, narrativas com pontos de vista inconciliáveis, confusão entre o ponto de vista da câmera e o ponto de vista da visão do personagem etc., dificultam essa identificação primária.

A Especificidade do filme gnóstico



O primeiro elemento que define o filme gnóstico é o aspecto da gnose que poderia ser sintetizada na seguinte frase: tudo do que o protagonista necessita já está no interior da sua mente. A gnose é apresentada como uma reforma íntima através de uma superação de limites pessoais (medos, traumas, apego aos valores do mundo físico etc.). O processo de transformação é rigorosamente pessoal e interior. O protagonista não necessita de nenhum instrumento exógeno para conseguir a transformação (livros, manuais, técnicas, guias, mentores, Deus, magia etc.) Apenas encontramos personagens que acompanharão o protagonista para ajudá-lo a criar situações que despertem nele a necessidade da reforma íntima.


Em geral, a gnose é iniciada a partir de sensações ou sentimentos íntimos do protagonista (paranóia, melancolia, déjà vus, lapsos temporais, estranhamento etc.). Isto é, a gnose não é episteme. Ela não é iniciada a partir de um conhecimento racional ou sistematizado. A jornada gnóstica deve conduzir à revelação, ao inesperado e, às vezes, a um violento insight que conduz o protagonista à percepção do todo. Muitas vezes a gnose não é uma experiência que o sujeito alcance intencionalmente. Ele é tomado por ela. Isso é que difere os filmes gnósticos de filmes como O Último Portal (The Ninth Gate, 1999) em que o protagonista percorre o caminho em direção à revelação através de conhecimentos ocultistas sistematizados em livros.

O segundo aspecto é de que a jornada pela qual o protagonista percorre não é uma expiação, mas uma “cura”, Em outras palavras, toda a provação não é conseqüência de pecados ou deformações do caráter do protagonista, mas, antes, decorre de uma realidade corrompida que o aprisiona. Todas as dúvidas e sofrimentos não são castigos por alguma transgressão ética ou moral do protagonista. Pelo contrário, é o trajeto mítico gnóstico de Emanação-Queda-Ascensão onde o protagonista é resgatado do cosmos material ao despertar a Luz interior por meio de situações que o ajudam a revelar o véu da ilusão. Isso é o que distingue os filmes gnósticos de filmes como O Advogado do Diabo (The Devil’s Advocate, 1997), onde o protagonista é seduzido pelo diabo por meio do pecado da vaidade. Apesar do discurso final de Milton (o diabo que vem ao mundo sob a forma de um advogado performado por Al Pacino) tentando convencer o protagonista Kevin (Kaenu Reeves) a ser seu sucessor ter um sabor gnóstico, o drama do protagonista centrado em um recorrente pecado da vaidade configura um típico filme de temática religiosa conservadora. O protagonista é punido pelo seu pecado capital.

O terceiro aspecto é uma decorrência do segundo: nos filmes gnósticos o protagonista não é punido pela transgressão da ordem. Ao contrário das exigências decorrentes dos gêneros comerciais onde o clichê de quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem é dominante, no filme gnóstico a quebra da ordem não é punida, isto é, não há um restabelecimento da ordem (seja social, política, institucional, familiar, moral ou pessoal) com a punição das pretensões de ruptura das ilusões da realidade material. Isso distingue, por exemplo, o salto final em filmes como Telma e Louise (Thelma e Louise, 1991) com o do filme Vidas em Jogo. Se no primeiro filme todo o processo de questionamento da sociedade machista pelas protagonistas é punido pela morte com o salto final no abismo, em Vidas em Jogo o salto no vazio do protagonista é a quebra da ordem, o resultado da jornada do Viajante cujo processo de reforma íntima significa a quebra de toda uma ordem de papéis sociais. Ou ainda, a diferença de desfecho em um filme como Click (Click, 2006). Apesar do sabor temático gnóstico, apresenta um protagonista punido pela sua ambição materialista (workholic cujo objetivo é o de tornar-se sócio de uma empresa) e um final que restabelece a ordem familiar quebrada pelo pecado.

segunda-feira, janeiro 25, 2010

"Quem Somos Nós": a estupidez da Auto-Ajuda em uma teologia secularizada



O documentário “Quem Somos Nós” (What the Bleep, 2005) sob o pretenso objetivo de unir Ciência e Religião, nada mais faz do que perpetuar o pior de ambas (a liquidação do particular e do indivíduo pela Totalidade) na secularização da Teologia por meio do discurso do espiritualismo e auto-ajuda.


Se no documentário O Segredo (The Secret, 2006) tínhamos uma abordagem mais direta ou grosseira do velho tema da auto-ajuda sobre o poder da mente (com esse poder você seria capaz, por exemplo, de fazer chegar até cheques pelo correio!), pelo menos em "Quem Somos Nós" a abordagem é “filosófica” ao tomar, como ponto de partida, a discussão da união Ciência e Religião por meio da Física Quântica, Neurologia e Neurofisiologia. As perguntas clichês de uma teologia secularizada estão presentes: de onde viemos? Quem somos nós? Para onde vamos? Qual o propósito da nossa existência?... e assim por diante. Mas o ponto de chegada é o mesmo: pérolas motivacionais especialmente elaboradas para o mundo corporativo e de vendas (no final, os grandes consumidores deste tipo de vídeo para motivar equipes de vendas, gerencias e chefias), noções filosóficas e científicas fragmentadas e arbitrariamente associadas ao temas de auto-ajuda etc.

Muitos fóruns, blogs ou sites (como, por exemplo, http://gnosticteachings.org/forum/index.php?showtopic=716&mode=threaded ou http://www.religionnewsblog.com/14722) acabam se impressionando com a pretensa discussão filosófica do vídeo e acabam associando-o ao Gnosticismo, principalmente pelas críticas à religião. Puro engano, pois “Quem Somos Nós” perpetua o pior tanto da Ciência quanto da Religião: o esmagamento da importância do indivíduo diante de uma totalidade (seja natural ou divina). Ou seja, vai num sentido oposto do Gnosticismo.

Se não, vejamos. O filme parte do princípio que a cisão entre Ciência e Religião parte de uma percepção limitada do indivíduo. Os sentidos são fonte de erros porque a nossa consciência é a ínfima parte das informções que o cérebro processa (analogia do cérebro com o computador). Partindo da física quântica descobrimos que a nossa percepção cotidiana é falsa: não há matéria (grande parte do átomo é composto de vazio), objetos e eventos não estão isolados no tempo e no espaço, mas conectados entre si numa rede de interferências, da qual o Observador faz parte.

Por isso, o indivíduo é limitado por não conseguir se conectar com o “Ser Abstrato Puro”, com a “Consciência Abstrata Pura”, com o “Ser Transpersonal Único”. A consciência seria limitada por ser “um subproduto do Espírito quando entra na Matéria”. As velhas dualidades teológicas são atualizadas, até chegar a liquidação total do indivíduo: a secularização do pecado. Essa limitação do Espírito confinado na Matéria propicia a limitação da percepção e do pensamento, preso que está a esquemas viciosos (melancolia, depressão, tristeza e “negatividades” em geral). Esquemas que produzem fracasso, derrota etc.
A verdade está no Todo e jamais no indivíduo, persistentemente limitado e em queda numa nova forma de pecado: a do desconhecimento da “Consciência Abstrata Pura”. Seu pecado é o da ignorância.

O documentário não consegue superar a dualidade Ciência/Religião por estar presa a uma Teologia Positiva que, afinal, é a matriz epistemológica de ambas: o sacrifício ritual do indivíduo diante do Absoluto e o Infinito. Mas, e se esta melancolia, depressão e tristeza do indivíduo forem estados críticos de consciência contra esta Totalidade? Em outras palavras, e se for a Totalidade Natural, Divina ou Social (no final, todas a mesma coisa) a fonte do sofrimento individual?
Este é o caminho de uma Teologia Negativa ou “Herética” como fala T. Adorno: a verdade esta no particular, no indivíduo, no singular diante de uma Totalidade autoritária, origem de toda dor. Toda a literatura e videografia Espiritualista ou de Auto-ajuda nada mais faz do que atualizar este ritual cotidiano de sacrifício da parte pelo Todo.

Há uma sequência no filme Beleza Americana (American Beauty, 1999) que sintetiza essa problemática da Teologia Positiva na Auto-Ajuda. É quando Carolynn (corretora de imóveis e voraz consumidora de literatura motivacional para negócios), frustrada por não ter conseguido vencer naquele dia uma casa após uma exaustiva maratona de clientes, encosta na parede e reprime o choro e a frustração, batendo a mão no próprio rosto: “Cale-se. Pare, sua fraca, infantil!” (veja a sequência abaixo). É a repetição de um mantra dessa espiritualidade que reprime o momento de verdade contida na dor individual em nome de uma Totalidade da qual ela se origina.
Teologia Positiva como
Tecnologias do Espírito
Esta secularização teológica surge no século passado através daquilo que Lucien Sfez (Veja o livro "Crítica da Comunicação" da editora Loyola) chama de “Tecnologias do Espírito”, um discurso científico sintetizado pelos seguintes conceitos: Rede, Paradoxo, Simulação e Interação. É o modelo das ciências computacionais aplicados autoritariamente ao Espírito: indivíduo, cérebro, percepção, sentidos etc., funcionam de forma análoga aos computadores no sentido mais paradoxal e interativo.

Como nos informa “Quem Somos Nós,” a realidade não existe (tal informação confere um ar “espiritualizado” e “místico” à teologia da Auto-Ajuda). Ela nada mais é do que conceito, informação, idéias processadas pelo nosso cérebro. Se, então, isso for verdade, confere um surpreendente livre-arbítrio para o indivíduo (negado até hoje pelas religiões): a realidade é aquilo que queremos que seja, é a força do nosso pensamento (concentração, meditação). E como alcançar essa liberdade? Abandonando “vícios, medos e limitações” (os novos pecados) para, assim, entrarmos no reino da “Consciência Abstrata Pura”.
Diante desse híbrido de Ciência e Religião devemos confrontar uma Teologia Negativa que encontra na dor individual os elementos críticos da Transcendência. É a ressureição da carne: o que anseia o Absoluto não é o Espírito, mas a Carne com toda a sua dor e sofrimento impingidos pela História.
Filme Beleza Americana (American Beauty, 1999)

quinta-feira, janeiro 21, 2010

Paradoxo, Contradição e Ironia: a Teologia Negativa no Filme Gnóstico

Como expressar o indizível por meio da linguagem? Através do caráter paradoxal da linguagem mística que fere as regras da lógica e do entendimento, os textos místicos tentam exprimir a sublimidade da experiência. Na arte moderna (da literatura romântica até o cinema) a Ironia será a estratégia que dá continuidade à Teologia Negativa.

A linguagem mística com o caráter de negatividade (a Teologia Negativa) tem em Dionísio Aeropagita (entre os anos 484 e 532) o seu principal introdutor. Considerado por muitos o pai da mística ocidental, seus textos são especulações teológicas onde procura comprovar a existência de Deus pela via negativa, ou seja, por meio de paradoxais negativas infindáveis. Veja este trecho do livro chamado De Mystica Theologia:


“Elevando-nos mais alto, dizemos agora que esta causa não nem alma nem inteligência; não tem imaginação, nem expressão, nem razão nem inteligência; que ela não pode se exprimir nem conceber; que ela não tem nome, nem ordem, nem grandeza, nem pequenez, nem igualdade, nem semelhança, nem dessemelhança (...) Não é móvel nem imóvel, nem descansa. Não é luz, nem vive, nem é vida (...) Quando negamos ou afirmamos algo de coisas inferiores ‘a Causa suprema, dela mesma não afirmamos nem negamos nada, porque toda afirmação permanece mais aquém da causa única e perfeita de todas as coisas, pois toda negação permanece mais aquém da transcendência daquilo que está simplesmente despojado de tudo e se situa mais além de tudo” (AEROPAGITA, Dionysius. Ouevrea completes Du Pseudo-Denys/Aeropagite Apud: LOSSO, Eduardo Guerreiro. Teologia Negativa e Theodor Adorno-a secularização da mística na arte moderna, Tese de Doutorado, Faculdade de Letras da UFRJ, 2007.
Esta linguagem paradoxal quer comprovar que há uma experiência além da inteligência, da linguagem, dos sentidos e das emoções. Tenta-se comprovar o indizível e o inconcebível por meio do esvaziamento da sensação e do conhecimento. Dionísio introduz na tradição ocidental essa retórica de negação incondicional de todo ente ou ser somentepara afirmar que o inconcebível é a causa suprema:


“Logo, Deus não é negado, não é posto em dúvida. O que ocorre é o contrário: é a existência indubitável e inconcebível de Deus que nega todos os atributos, pois Deus é, em terminologia medieval, o ens realissimum, o que há de mais real” (LOSSO, Eduardo Guerreiro, IDEM)

Portanto, o caminho para se tentar expressar a experiência metafísica não há outro caminho senão usar e abandonar a linguagem na ânsia pelo absoluto através do paradoxo e da contradição.

Esta teologia negativa aproxima-se de uma “teologia herética”, muito próxima do gnosticismo, ao criar dissensão com a doutrina católica: enquanto Dionísio coloca que a revelação não pode ser compreendida por qualquer um (somente por meio de uma disciplina esotérica) para católicos o amor e vida moralmente correta dão condições para qualquer um encontrar Deus.

Na arte moderna, o romantismo literário do século XIX vai dar continuidade a esta tradição mística por meio da “ironia transcedental”. É através do Romantismo, nos séculos XVIII e XIX que o Gnosticismo deixa o submundo para ascender à literatura e à cultura através de nomes como William Blake, Percy Shelley, Gerard de Nerval, Baudelaire, Rimbaud. Em todos eles encontramos a redescoberta da atitude e das imagens do pensamento gnóstico. A abordagem do gnosticismo pelo Romantismo é nitidamente sincrética, associando o gnosticismo cristão com o hermético (alquimia e cabala). Figuras como Nerval e Goethe, por exemplo, beberam em fontes gnósticas, cabalistas e alquímicas. Enquanto Goethe trabalhava com complexos simbolismos iniciáticos derivados da alquimia, Nerval estudou profundamente livros de esoterismo, magia e metafísica.

A ironia surge na lacuna entre aparência e realidade, representação e presença. Pensadores do fim do século XVIII, principalmente Friedrich Schlegel, acreditavam que essa lacuna era constitutiva da natureza humana proveniente do antagonismo entre o desejo de representar o mundo e a impossibilidade de fazê-lo. O grupo de Iena (formado pelos irmãos August e Friedrich Schlegel, Novalis, entre outros) começa a teorizar sobre a ironia como um procedimento auto-reflexivo a partir da leitura de Cervantes, Shakespeare e Diderot. A moderna concepção da ironia tematiza o intervalo entre a linguagem e a experiência empírica. A ambição pela imediatez dos modernos parece ser uma procura sempre renovada de uma linguagem absoluta, pela busca de uma palavra definitiva que dê nome às coisas.

As dimensões estéticas desse tipo de ironia são muitas: a fragmentação como forma preferida de representação, isto é, como um consciente elemento de uma completude jamais alcançável; o narrador autoconsciente que expõe as próprias construções da realidade para, dessa forma, explicitar suas limitações; a mistura entre texto primário e comentário em uma mesma página; a descrição não-conclusiva de pontos de vista inconciliáveis que deixa o leitor em um limbo interpretativo; o poema que se consome em dois significados contraditórios que se co-habitam e se anulam.

O romantismo cria um anseio pelo absoluto, uma espécie de busca religiosa que, de um lado, toma seriamente as percepções fragmentárias do mundo material como forma de revelação do espírito e, do outro, toma essas mesmas percepções como formas inferioras que encobrem como um véu o invisível. A ironia transcendental do romantismo exemplifica este irônico questionamento religioso próximo da tradição gnóstica.

Ironia e Negatividade no Filme Gnóstico

Ao explorar o tema da transcendência onde os protagonistas lutam para ascender de um mundo ilusório e corrompido (por ser uma construção artificial, obra de um demiurgo) o filme gnóstico vai explorar a ironia como caminho para evitar cair na dualidade falso/verdadeiro, espírito/matéria, ilusão/realidade etc. o caminho é o da negatividade: nem uma coisa nem outra, mas a busca de um tertium quid, uma outra via posta em suspensão pelo vazio cognitivo que a ambigüidade da narrativa fílmica procura criar.
A utilização dos instrumentos da ironia como a fragmentação, auto-referência, narrativas com pontos de vista inconciliáveis, confusão entre o ponto de vista da câmera e o ponto de vista da visão do personagem, desfechos narrativos que se anulam, narrativas em abismo etc.

Dois Exemplos da Ironia no Filme Gnóstico


Podemos apresentar dois exemplos de filmes gnósticos que partilham desse caminho da negatividade do sentido por meio de narrativas cujos desfechos são paradoxais por apresentarem interpretações que se anulam. O primeiro é o filme O Décimo Terceiro Andar (The Thirteenth Floor, 1999) com um autêntico happy end (casa em frente a uma praia, grupos de gaivotas voando, um cachorro brincando na areia, um lindo pôr do Sol). O protagonista parece ter descoberto o último nível das simulações que é, finalmente, a realidade, o ponto de partida de tudo. Mas, repentinamente, a imagem do enquadramento encolhe-se até transformar-se numa linha, reduzindo-se a um ponto de luz de um monitor de TV (veja essa sequência final abaixo). Uma pista da irrealidade: será que alguém puxou o fio da tomada? Este ambíguo e irônico final sugere que o própria realidade última, também, uma simulação como os demais níveis. Uma possível interpretação que cai na suspensão, no vazio.
Outro exemplo é o do filme Brilho Eterno de Uma mente Sem Lembrança (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004) onde elemento irônico está presente. Na seqüência final com Joel e Clementine correndo pela gelada praia de Montauk em fevereiro é ambígua, podendo ser interpretada como dois finais excludentes: ou assistimos a um típico happy end romântico em um final clichê com casais enamorados correndo felizes à beira do mar ou um final trágico: as seqüências de Joel e Clementine após o apagamento de memória ter sido finalizado, retornando ao primeiro plano que inicia o filme (Joel despertando em sua cama pela manhã), poderiam ser mais uma instância narrativa interna das memórias de Joel. A partir daí até o final poderíamos estar vendo mais narrativas das memórias de Joel. Na seqüência de desfecho na praia de Montauk as imagens do casal vão dissolvendo-se em fade out para o branco. Isso acontece também em algumas seqüências anteriores aonde objetos vão tornando-se brancos até desaparecerem (como na seqüência do desaparecimento dos livros na Bernes e Noble) como metáfora de apagamento das memórias. Além disso, há uma descontinuidade na corrida do casal, em loop: a corrida repete-se até o fade out. Novamente, este loop aparece como metáfora de apagamento ou degeneração da memória como na seqüência em que Joel persegue Clementine pela rua após uma discussão: o tempo e a perspectiva parecem estar em loop, impossibilitando Joel de chegar ao final da rua e alcançar Clementine


domingo, janeiro 17, 2010

Evitar a remitologização do Sagrado no Cinema

Ao abordar o Sagrado, o Cinema explicita sua dialética: de um lado a possibilidade regressiva de fixar a mística na imagem e, por outro, liberá-la através do conceito e do simbólico.


A origem dessa postagem se deu em um leitura de férias, em um sítio em Cotia, São Paulo: a leitura de uma longa e densa tese de doutorado de Eduardo Gerreiro Losso, "Teologia Negativa e Theodor Adorno - a secularização da mística na arte moderna", tese defendida no Programa de Ciência da Literatura da UFRJ em 2007. Ao longo das suas 342 páginas, o autor destrincha a obra, correspondências e arquivos pessoais de Adorno em busca das referências teológicas do seu pensamento, principalmente no seu principal legado filosófico: a Dialética Negativa.

É impossível nesse espaço discutir essa obra fundamental, mas podemos traçar alguns insights que a discussão sobre Teologia, Mística, Razão e Fé podem trazer para o tema Sagrado e Cinema.

Como destaca Losso, o principal conceito da Teologia é o da "negatividade". Como Adorno localizou nos chamados teólogos heréticos, essa negatividade é a essência da mística: a união entre pensamento e experiência. O conceito de "negatividade" deriva do fato de que a busca de Deus ou do Sagrado não se localiza no mundo das idéias do pensamento ou nas abstrações que tentam compreender o infinito, mas na materialidade da experiência particular, no ínfimo, no precário. É a Metafísica em queda.

Ao contrário, o mito procura conciliar esses dois extremos (particular/universal, matéria/espírito, experiência/pensamento) através da imagem. A imagem do mito conterá o germe do conceito do pensamento racional do Iluminismo que liquida a experiência do particular em nome do Universal (Deus, Logos, Infinito, Devir etc.). A imagem de Cristo, dentro do sistema religioso do cristianismo, é um exemplo de remitologização da mística ao longo da história. A proibição na nomeação da palavra que designa Deus entre os judeus ou os avisos sobre a idolatria das imagens no Velho Testamento bíblico são alertas para o perigo regressivo das imagens. O conceito na Razão Instrumental, como alertam Adorno e Horkheimer na "Dialética do Esclarecimento", retorna ao perigo da imagem ao querer fazer coincidir o conceito com o objeto por meio da metodologia científica que almeja coincidir sujeito e objeto para a dominação instrumental do mundo.

A imagem, assim como o conceito, querem coincidir com a Verdade como se o signo (imagético ou científico) fosse a própria coisa, como se o mapa fosse o próprio território. Congela e sacrifica a experiência em nome de uma totalidade instrumental e abstrata (sistema religioso, sistema mercantil etc.). O resultado é a idolatria religiosa ou o autoritarismo tecnocrático e mercantil que impõem sofrimento e mal-estar.

O momento negativo da Teologia que a metafísica moderna deve incorporar, como defende Adorno, é o mergulho na experiência, mas não reduzindo-se à pequenez do particular. Por que nele está a abertura para o transcendente. É a busca de uma espécie de empirismo transcedental. Na impossibilidade de apreender no objeto, o inominável, o transcendente somente poderá se revelar pela mística. É o momento progressista da Razão e do pensamento simbólico: a linguagem se recusa a fixar-se em imagens para, por meio da própria abstração que revela a distância entre sujeito e objeto, liberar o inominável.

A mística, portanto, é o momento do encontro entre pensamento e experiência: de um lado o pensamento (abstração) e por outro a fugidia e inapreensível experiência particular do sensível. O que é essa dimensão mística para Adorno? Embora seja atraído por nomes da "teologia herética" associados a filosofias e práticas místicas e gnósticas (Novalis, Eckhart, etc), ele interessa-se menos pela viagens espirituais ou experiências místicas e muito mais pelo potencial crítico: desafio às autoridades instituídas (religiosas ou sociais) ao propor a possibilidade de uma realidade "totalmente outra". Principalmente a Estética e a Arte ocupariam, na modernidade, esse papel de uma teologia negativa.

Dialética Negativa no Cinema


Se o cinema é uma mídia visual, ou seja, edita, monta e põe imagens em movimento, como pode essa mídia, ao refletir sobre o tema do Sagrado, pode evitar cair na idolatria teologicamente regressiva das imagens?

Sabemos que a narrativa clássica constrói os seus pilares na busca pela ilusão de realidade. Encenação naturalista, mudanças invisíveis entre um corte e outro, continuidade de olhar e movimento, manutenção do eixo de 180 graus, sincronismo entre som e imagem. Cada cena é amarrada em si mesma e em função das cenas imediatamente anteriores e posteriores, em uma relação contínua de causa e conseqüência. O roteiro clássico obedece a uma métrica que determina a duração das partes do filme, como apresentação dos personagens, introdução do conflito, primeiro plot e assim por diante. A estrutura lógica e a busca incessante pela verossimilhança são pertinentes à natureza do discurso, colocando o espectador em contato direto com o significado e não causando possíveis dificuldades de leitura.

Esta ilusão de realidade, a identificação naturalista com a imagem, cria uma aparência de contato direto com o objeto fílmico, um prazer voyeurista de contato direto com o representado. Em essência: uma fetichização ou mitologização da imagem como se tornasse de ícone a índice da realidade. Mais que signo, a imagem torna-se decalque do objeto representado. Ao invés de representação, a ilusão de apresentação. Porém, paradoxalmente uma mitologização da imagem por meio das técnicas abstratas de montagem edição e do próprio aparato tecnológico do dispositivo.

É a própria Dialética do Esclarecimento: a Razão regride ao mito por meio da técnica e tecnologia. Mas, ao mesmo tempo a abstração da imagem e do conceito trás em si a negatividade: a mediação através da qual a experiência do particular pode aspirar a transcendência. Assim como para Adorno abstração matemática e formal da música abre espaço para elementos sensíveis e particulares (como o timbre e a densidade, por exemplo), no Cinema a edição e montagem são mediações para elementos sensíveis e particulares como a tonalidade, saturação, granulação e, inclusive, o própria experiência da recepção concreta do espectador.
O filme gnóstico, por exemplo, ao abordar seus temas místicos (gnose, ilusão da realidade etc.) evita uma remitologização do Sagrado por meio das imagens ao
seguir o sentido contrário desse prazer voyeurístico da narrativa clássica. A utilização dos instrumentos da ironia como a fragmentação, auto-referência, narrativas com pontos de vista inconciliáveis, confusão entre o ponto de vista da câmera e o ponto de vista da visão do personagem etc., dificultam a identificação primária com a imagem.

Por exemplo, em A Passagem (Stay, 2005) vemos deliberadas falhas de continuidade, lapsos, quebras de eixo, tudo para representar, na própria linguagem narrativa, o universo onírico no qual o protagonista está preso. O filme faz uma "desconstrução" (ou uma "negação da negação" na linguagem adorniana) do conceito e da imagem em três sentidos: primeiro ao apresentar a realidade como ilusão. Segundo, ao apresentar o próprio caráter da representação fílmica como ilusão. E, terceiro, ao utilizar uma voz narrativa que, no fundo, apresenta a própria condição limitada da recepção do espectador: assim como o protagonista da estória (Dr. Henry), o espectador não consegue vislumbrar a verdade por trás dos véus metonímicos e metafóricos (oníricos) da narrativa.

Esse caráter "meta" do filme gnóstico põe em suspensão sujeito/objeto, imagem/representado, conceito/significado, criando um "vazio cognitivo" que permite um distanciamento do espectador diante da imagem, explicitando a própria situação particular das condições de recepção de um indivíduo diante de uma tela. É o momento "negativo", a queda do conceito no particular. Ao invés do espectador ser absorvido pela imagem (o universal, o abstrato) ele é convocado a "pensar" nas próprias condições particulares da recepção:a de um indivíduo diante de um dispositivo ficcional. É o momento sagrado e irônico: o filme que quer demonstrar a ilusão da realidade por meio da ilusão da representação.

segunda-feira, janeiro 11, 2010

Narrativas Sem Tempo

Passado, presente e futuro. A narrativa dos filmes gnósticos embaralha estas categorias temporais porque, para o Gnosticismo, o tempo é erro, fruto de um acidente cósmico.


Se pensarmos a narrativa como uma série de eventos encadeados, reais ou imaginários, que ocorre ao longo de um tempo determinado pela estória, podemos considerar o conceito de tempo como o ponto crítico nos filmes gnósticos. O gnosticismo encara o tempo como uma prisão, fonte de mistificação, ilusão e engano.

Igual ao mundo físico, o tempo – que subjaz, por outro lado, em todas as manifestações do cosmos visível – é ‘mescla’ e ‘mancha’: O ciclo do tempo não é outra coisa que a Fatalidade; o tempo pertence ao mundo material, enquanto que o mundo superior é atemporal (e se diz separado do primeiro por um limite que emprincípio é absoluto). O tempo é mal e constitui-se numa fonte de angústia; a gnose se opõe tanto à doutrina estóica do tempo cíclico, circular, como à doutrina cristã de um tempo linear que se estende irreversivelmente desde a criação O tempo, que em si mesmo é insuficiência, nasceu de um desastre, de uma ‘deficiência’, do desmoronamento e a dispersão no vazio, no kenoma, em uma realidade que existia antes, uma e integral, o sonho do Pleroma, da ‘plenitude’, do Aión, da Eternidade O gnóstico não aspira mais do que ser liberado do tempo, estabelecer-se ou restabelecer-se fora de todo devir, de volta ao estado que se supõem existia no princípio: a estabilidade, a verdade do Pleroma, do Aión, do ser eterno, do ser completo. (HUTIN, Serge. Los Gnósticos. EUDEBA: Buenos Aires, 1963, p. 14.

Por isso, o filme gnóstico vai explorar formas narrativas opostas às formas clássicas e lineares. As narrativas gnósticas tentarão sempre destacar a instabilidade temporal da realidade, isto é, como por trás do aparente encadeamento linear dos eventos, escondem-se abismos temporais e espaciais, os múltiplos universos contínuos e descontínuos e a própria ontologia do real (ou a verossimilhança) confundida com possíveis projeções psíquicas do protagonista.
Por exemplo, em Homem Morto a estória é narrada, aparentemente, de forma linear, como a narrativa de um western clássico. Porém, a frase de Nobody (índio
que acompanha o protagonista) de que a morte é como fosse “a passagem através do espelho” é a chave de compreensão da estrutura narrativa do filme. As seqüências iniciais de finais do filme parecem se “espelhar”: as sequências iniciais e finais, embora passadas em locais espacialmente diferentes, obedecem a uma mesma sequência de eventos (Blake chegando à cidade de Machine e, no final, chegando à tribo de Nobody).
Ou em Vidas em Jogo onde o tempo cronológico é confundido com o tempo psicológico do protagonista. Nas cenas em que Nicholas está mergulhado na paranóia (ele está envolvido em uma espécie de RPG onde não consegue mais distinguir onde termina o jogo e onde a realidade começa) o som ambiente torna-se um amálgama de vozes distorcidas e ecos, reforçando que o que vemos é a percepção da realidade pelo ponto de vista psicológico do personagem.
Ou, ainda, a seqüência onde Nicholas tenta retirar uma chave da boca de um palhaço de madeira (que havia encontrado diante da porta do casarão na seqüência anterior) enquanto assiste na TV um telejornal de economia, é mais um exemplo do tempo psicológico que confunde o espectador. A transmissão é interferida pelo Jogo da CRS e o âncora do telejornal começa a falar com Nicholas sobre as regras do Jogo que se inicia. A seqüência chega ao inverossímil: como uma empresa capaz de tal proeza tecnológica, é capaz de cometer erros primários ao longo da estória como, por exemplo, esquecer uma etiqueta de preço em um lustre (o que acabou denunciando a falsidade do interior de uma casa armada cenograficamente para enganar o protagonista)? Ou seja, Nicholas realmente conversa com a transmissão de TV ou tudo não passa de fruto do delírio originado por uma condição paranóica?


O paradoxo do futuro no filme gnóstico



Se para o Gnosticismo o tempo é ilusão, fonte de engano e alienação, como o futuro pode ser representado nesse grupo de filmes? Ou seja, se o encadeamento linear dos eventos, como uma seta que aponta do passado para o futuro, é uma ilusão que aprisiona o espírito, de que maneira ficções-científicas como O Pagamento e Matrix podem representar os episódios das previsões e profecias? Resposta: através de paradoxais previsões e profecias “sem futuros”.
Em O Pagamento, Jennings descobre que as pesquisas que a Allcom estava envolvida tinham a ver com uma máquina que faria previsões do futuro a partir de uma lente curva que simularia a própria curvatura do Universo. Seu inventor foi assassinado a mando da Allcom e ele, Jennings, como um engenheiro reverso, foi encarregado de recriar a máquina a partir de um protótipo. A certa altura da narrativa, perplexo, Jennings descobre que a máquina que construíra, na verdade, era uma irônica forma de prever o futuro. Através de um mecanismo de profecia auto-realizadora o futuro previsto não acontecia porque estava lá, mas por que a sua divulgação fazia o futuro previsto acontecer de fato. O futuro como profecia auto-realizadora é a própria configuração de um evento circular, tautológico: o futuro não é previsto como um fato objetivo que está em algum lugar à frente no tempo, mas porque a sua divulgação evoca um novo comportamento que acaba confirmando a “profecia”, na verdade, uma falsa premissa que se torna verdade.
Um futuro tautológico, recursivo, uma circularidade viciosa entre crença e comportamento.


Jennings: “Meu Deus, é o futuro. A máquina prevê a guerra, entramos em guerra para evitá-la. Prevê uma praga, juntamos todos os doentes e acabamos criando uma praga. Todo o futuro que ela prevê, fazemos acontecer. Perdemos todo o controle sobre nossas vidas. Ver o futuro nos destruirá. Se mostrar o futuro a alguém, ele não terá futuro."



É a ironia final: o futuro dobra-se sobre si mesmo, criando um efeito recursivo.

"Vamos falar em recursão quando se trata da própria energia que reentra do efeito na causa ou quando o output alimenta o input em retorno (...). Em suma, o fato de que alguns anúncios chegam, com efeito, a realizar-se sublinha uma vez mais o quanto a palavra se encontra tomada indicialmente na camada dos comportamentos, ações e reações cuja seqüência nunca é linear, mas emaranhada, recursiva ou complexa." (BOUGNOUX, Daniel. Introdução às Ciências da Informação e da Comunicação. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 235-240.) O tempo recursivo em Matrix


O tempo recursivo em Matrix


Também é curioso o papel de profeta do Oráculo no filme Matrix. Neo surpreende-se com a aparência do Oráculo: uma senhora com aspecto de típica dona de casa, em uma prosaica cozinha preparando biscoitos no forno. Parece que o Oráculo tem consciência do caráter auto-realizador das profecias, isto é, o fato de que o anúncio de uma profecia pode fazer o evento ocorrer ou não, alterando a espontaneidade dos acontecimentos. Isso fica claro no diálogo em torno do vaso que se quebra:


Oráculo: E não se preocupe com o vaso.
Neo: Que vaso? (Neo vira-se e esbarra no vaso que cai e quebra-se no chão).
Oráculo: Esse vaso.
Neo: Como você sabia?
Oráculo: O que vai mesmo fazer seus miolos queimarem é: você teria quebrado se eu não tivesse dito nada?

Paradoxo quântico: a visualização do objeto altera a própria constituição do objeto. Ou seja, a queda do vaso não decorreu de uma inexorabilidade do futuro, mas por uma profecia que acabou se auto-realizando como verdade. Se a Matrix é uma gigantesca máquina de calcular similar a imaginada pelo matemático francês do século XVIII Laplace (que vislumbrava a possibilidade do controle e previsibilidade total do universo a partir do momento que todas as coordenadas e variáveis fossem conhecidas por um “Computador Laplaciano”), o Oráculo insere nos códigos-fonte desse cosmos um elemento de acaso: a profecia auto-realizadora. O Oráculo profetiza que Neo terá fazer uma escolha: “Numa mão terá a vida de Morpheus. Na outra mão terá a sua vida. Um de vocês vai morrer”. Se a profecia auto-realizadora é a concretização de expectativas, o Oráculo sabe que Neo luta contra a idéia de destino e fará de tudo para impor o livre-arbítrio. Neo lutará contra o destino e salvará a ambos numa seqüência que terminará no duelo final com o Agente Smith. Embora não confirme ser ele, Neo, o Salvador, de forma indireta cria circunstâncias para que ele se torne como tal. Ou seja, o Oráculo nada fala sobre o futuro, mas apenas insere na previsibilidade dos códigos da Matrix o elemento do acaso através da profecia que se auto-realiza.
Além disso, o Oráculo não quis admitir que Neo era o Salvador porque, curiosamente, as profecias auto-realizadoras parecem não funcionar com anúncios de natureza positiva ou promissora . Mais um motivo para conseguir, de forma indireta, que Neo assumisse o papel de O Escolhido na estória. Certamente, se o Oráculo dissesse para Neo que ele era, de fato, O Escolhido a profecia não se realizaria.

sexta-feira, janeiro 08, 2010

"Spiritual Cinema Circle": Espiritualidade como Auto-Ajuda

Reduzir a angústia à possibilidade da cura por meio de filmes “inspiradores” e “motivacionais” parece ser o destino da Teologia e da Metafísica na contemporaneidade.


Foi fundado nos Estados Unidos o Spiritual Cinema Circle (Círculo do Cinema Espiritual). Nos moldes do antigo "Círculo do Livro", os associados pagam uma taxa mensal para receber todos os meses em sua casa os melhores títulos espiritualistas, além de documentários e filmes de curta metragem.

O projeto nasceu da colaboração entre o produtor Stephen Simon e os psicólogos Kathlyn e Gay Hendricks. Stephen é o responsável por alguns dos títulos favoritos do gênero como Em Algum Lugar do Passado (Somewhere in Time, 1980) e Amor Além da Vida (What Dreams May Come, 1980); enquanto o casal Hendricks criou e administra o Hendricks Institute, uma entidade sem fins lucrativos que auxilia pessoas com problemas de relacionamento.


Esse gênero “cinema espiritual” é definido da seguinte maneira, segundo o site do Círculo: “São filmes que abordam temas espirituais, metafísicos e religiosos. Evocam uma experiência interior. Iluminam a condição humana, levando-nos numa jornada onde vivenciamos a vida como seres espirituais tendo uma experiência humana. O Cinema Espiritual engloba filmes, curtas, e documentários que evocam uma experiência espiritual, metafísica e religiosa. São filmes que inspiram e ao mesmo tempo entretem. Hoje, podemos assistir filmes como 'A Profecia Celestina', baseado no livro que faz parte do caminho de tantas pessoas."

A lista dos “filmes espirituais” engloba desde documentários como O Segredo até filmes como Amor Além da Vida, A Vida é Bela e Peter Pan. Percebe-se que sob esse rótulo abriga-se um amálgama de esoterismo, espiritualismo, auto-ajuda e auto-conhecimento. Por uma lado, demonstra o esgotamento da religião enquanto sistema simbólico que procura dar conta da experiência do Sagrado. Mas, por outro, é um sintoma de uma “teologia secularizada”. Temas como o “poder da mente”, o “triunfo do espírito humano sobra a adversidade” e “busca de outros mundos de beleza, verdade, amor, harmonia e felicidade” e a “conexão com o mundo ao nosso redor” denotam as características da metafísica moderna que seculariza a teologia ao inscreve-la na imanência das relações interpessoais e na comunicação. A conseqüência é o esvaziamento do aspecto crucial da discussão teológica: a angústia humana diante do infinito e do absoluto que, do ponto de vista do gnosticismo, é a próprio sintoma da condição do homem, exilado num universo, isto é, numa falsa totalidade.

Cristo, Fé e Angústia

Numa crítica à Martin Buber, Adorno nos oferece uma pista para compreendermos as origens dessa “teologia secularizada” que culmina, na atualidade, no discurso espiritualista e da auto-ajuda:



“Enquanto em tal relação (Eu-Tu) a comunicação se converte naquele suprapsicológico que ela apenas o seria através do momento da objetividade do comunicar mesmo; ao final, pois, a estupidez como fundadora da metafísica. Desde que Martin Buber desintegrou a cristologia de Kiekegaard no conceito de existencial e o distendeu até ressecá-lo, existe a tendência dominante de apresentar o conteúdo metafísico como vinculado a chamada relação Eu-Tu. Remete-se à imdeiatez da vida, fixa a teologia em determinações da imanência que, por sua vez e por lembrança da teologia querem ser mais(...)” (ADORNO, Theodor. La Ideologia como Lenguaje, Madrid: Taurus, p. 18).


Adorno aqui remete a Kiekegaard (objeto da sua tese de doutorado) para criticar o discurso existencialista do século XX (o “jargão”) que após seu auge em Heidegger e Sartre se pulverizará em fragmentos que se converterão na teologia secularizada do espiritualismo e auto-ajuda. Esta teologia baseia-se num modelo comunicacional que busca a autenticidade e a transcendência nas relações interpessoais (“Eu-Tu”) como uma utopia positiva.

Se Kiekegaard localizou a angústia humana na fé cristã, personificada na figura de Cristo (o Deus tornado homem, a mediação entre o homem e o infinito), esta metafísica vai esvaziar essa angústia radical com a possibilidade de uma utopia na imanência, isto é, a transcendência na imediatez da vida numa relação tão abstrata (o “Eu-Tu” destituído de qualquer história ou materialidade) quanto a da sociedade inautêntica que quer superar.

Em Kiekeegard, somente podemos existir diante de Deus, diante da inconpreensibilidade da infinitude divina. A Verdade não nos foi revelada por meio das pompas e dos conceitos sistêmicos, mas por meio do fato violento da crucificação de Cristo. Cristo a sua época foi um homem obscuro que morreu crucificado, assim como nós que não conseguimos vislumbrar a verdade do Todo, mas a fatalidade dos fatos cotidianos. Esse é o paradoxo da fé para ele: Verdade e ao mesmo tempo angústia na mediação entre o infinito e homem por meio da figura de Cristo. Portanto, não há outro caminho para a Verdade que não seja o da interioridade, o aprofundamento da subjetividade. O ateísmo místico de Martin Buber vai compreender isso como um mergulho na intersubjetividade esvaziando toda a tensão da cristologia de Keikegaard: busca-se uma terapêutica para a angústia, aqui traduzida como incomunicabilidade entre Eu e Tu.

Ora, embora subjetiva, essa angústia tem seus fundamentos numa situação bem material e histórica que transcende ou permeia as relações interpessoais: o mal inscrito em um mundo absolutamente sem sentido, corrompido nas suas origens.

De um ponto de vista gnóstico, a angústia na fé somente pode representar a condição do exilado, do estrangeiro dentro da sua própria morada.
Reduzir esta angústia à incomunicabilidade é negar o seu estatuto ontológico a
um mero sintoma que possa ser curado, tornando o homem ainda mais atrelado à própria cegueira da imediatez cotidiana. Esse parece ser o destino da teologia e
da metafísica na contemporaneidade: a cura da angústia por meio de filmes “motivacionais” e “inspiradores”, como quer o Spiritual Cinema Circle.

quarta-feira, janeiro 06, 2010

Nostalgia Pós-Moderna: a nostalgia do "totalmente outro"


A idéia dessa postagem surgiu a partir de um debate em uma aula de Estudos de Comunicação na Universidade Anhembi Morumbi. O tema geral era os Estudos Pós-Modernos. Discutíamos a nostalgia que domina a estética pós-moderna (remake, pastiche etc.). Constatamos a existência de um paradoxo: se a nostalgia é sentir saudades de época que foram vividas, como explicar a nostalgia da estética pós-moderna onde novas gerações têm saudades de épocas que jamais foram vivenciadas? O que há por trás dessa nostalgia: manipulação ideológica ou uma aspiração pelo "totalmente outro"?

"Toda ideologia tem o seu momento de verdade" (T. Adorno)


Uma natureza retrô domina o horizonte cultural da Contemporaneidade. Pastiches e sucessivas reciclagens criam um cenário cultural paradoxalmente nostálgico. Primeiro porque vem envolto numa embalagem moderna e contemporânea. Filme como Kill Bill mostra uma chiquérrima Uma Thurman em cenas de lutas marciais em trajes fashion, radiciais e aparentemente atualíssimo. Porém, para a delícia dos cinéfilos, são os mesmos trajes usados por Bruce Lee em seus filmes B de Kung Fu dos anos 70. Aliás, Kill Bill é um pastiche de referências dos anos 60, 70 e 80 ( western “spaghetti” italiano dos anos 60, filmes de Bruce Lee dos anos 70, sons new wave dos anos 80 etc.). Aliás, o que torna os filmes de Tarantino cult é precisamente a maestria dessas citações de signos de diversas épocas e contextos, retirados das suas origens e colocados num conjunto lógico atemporal.

Segundo aspecto paradoxal: esses pastiches que fazem a delícia de cinéfilos revela uma estranha nostalgia: saudades de épocas que não foram vividas. Jovens montam as ambiências de suas novas residências com objetos e decorações que remetem aos anos 60 e 70; os anos 80 retornam com “baladas” especializadas nessa década (“trash anos 80”, Projeto Autobahn etc.), feiras de rua onde são comercializados objetos dessa época (livros, jogos, brinquedos) para grupos de jovens estranhamente nostálgicos por uma época que não vivenciaram, bares temáticos recriam para jovens ambiência e atmosferas de épocas e lugares distantes no tempo e no espaço (“botecos chics” que revivem os botecos populares dos anos 50 e 60, bares freqüentados por tribos de jovens “rockers” em suas jaquetas pretas de couro, topetes à Elvis em uma ambiência estudadamente cenográfica com junkerboxes, pisos quadriculados, e posters com sucessos cinematográficos da época).

Como entender essa estranha nostalgia que parece caracterizar o jovem contemporâneo, a nostalgia de experiência que não foram vividas e de locais que não foram visitados?
Há duas perspectivas diferentes sobre esse tema que podemos nomear a primeira como finalista e a outra como causalista.

No primeira abordagem a nostalgia que contamina a produção cultural contemporânea tem como finalidade servir “a interesses ideológicos específicos de estagnação da vida que deveríamos permitir que se renovasse sempre. A nostalgia, de que tanto falam os jornais e revistas, não passa de um poderoso instrumento psicológico da Morte Organizada.” (Luis Carlos Maciel, A Morte Organizada) É uma espécie de “nó psicológico” para desviar a atenção para os problemas presentes. Esta abordagem é da tradicional denúncia das manipulações ideológicas dos meios de comunicação. Nostalgia como falsa consciência.

A segunda abordagem causalista podemos exemplificar com a aproximação que Frederic Jameson faz da nostalgia, o pastiche cultural e a esquizofrenia da subjetividade pós-moderna. Partindo dos fundamentos lacanianos (a identidade se estrutura através da linguagem) Jameson percebe a impossibilidade do esquizóide em ascender à linguagem e construir um Eu persistente e duradouro através do tempo. Sem conseguir representar o real, toma o significantes como as próprias coisas, passando a ter uma experiência intensa, pontual e fragmentada. O tempo é percebido como eterno presente e os momentos intensos um conjunto atemporal, assim como os pastiches culturais. Em síntese: nostalgia e pastiche como sintoma.


O "Totalmente Outro"

Se partirmos da proposta espistemológica de Adorno de que “toda ideologia tem o seu momento de verdade” podemos compreender que essas abordagens finalistas e causalistas são insuficientes, pois não conseguem apreender o momento particular de verdade. Seja como falsa consciência ou como sintoma, a nostalgia pós-moderna é, de qualquer maneira, descartada in totum como mito ou mera ilusão ou regressão.

Sem dúvida, esta nostalgia (sintoma de um mal estar da subjetividade pós-moderna) é instrumentalizada como mercadoria, porém, explora um nostálgico sentimento verdadeiro e concreto: a “nostalgia do totalmente outro”. Expressão de Horkheimer, a “nostalgia do totalmente outro” sintetizava o propósito da Teoria Crítica: combater a idéia temporal de progresso e propor um resgate do passado:


“O totalmente outro só pode significar a pura transcendência, a redenção: o
materialismo da Teoria Crítica se volta simultaneamente para o singular e a
redenção das gerações que passaram pela História. Devemos nos ligar pela
nostalgia do que acontece no mundo, o horror e a injustiça não são a última
palavra, há um Outro”


Há nesta afirmação de Horkheimer um forte componente místico ou gnóstico: o tempo como uma prisão, fonte de mistificação, ilusão e engano. Na verdade, o Gnosticismo procura libertar-se do devir e retornar ao estado do princípio de tudo: a estabilidade e a verdade do Pleroma, do ser eterno, do ser completo. É uma nostalgia romântica.

Desse ponto de vista, esta nostalgia paradoxal da cultura pós-moderna expressa o componente místico de um radical mal-estar da subjetividade atual: o mal-estar de um exilado, de um estrangeiro dentro do seu próprio país, que anseia buscar no passado algo que se perdeu, a verdadeira origem.
Aqui a Nostalgia não é mais nem falsa consciência e nem sintoma, mas, antes de tudo, chamamento. O passado nos chama para algo que apenas experimentamos como deja vu. A cada jogo Genius que encontramos em feiras de antiguidade ou imagens do velho vídeo game Pack Man que, inexplicavelmente, inspira saudosismo em um jovem que cresceu jogando Nintendos, podemos encontrar esta nostalgia pelo “Totalmente Outro”.

A nostagia sagrada em Donnie Darko

Um caso exemplar é o filme de Richard Kelley Donnie Darko (Donnie Darko, 2001). Além da sua estética retro (a narrativa se passa no final dos anos 80), o filme descreve a vida de um adolescente problemático, Donnie Darko, com uma misteriosa condição mental que o separa de um ambiente cultural conformista: ele começa a perceber a irrealidade da vida suburbana de classe média americana através de estados sonambúlicos e após tomar remédios antidepressivos. Donnie percebe que há algo de errado com o mundo através de insights e estados alterados de consciência e não a partir de princípios ideológicos ou religiosos. Donnie também descobre que o plano temporal em que ele vive pode ser revertido e que ele tem poder para fazer isso, isto é, transcender seu plano temporal através de um vórtice e mover-se livremente por outros planos alterando destinos pré-determinados. Após a morte de sua namorada e, mais tarde, da sua mãe na queda de um avião sugado por outra dimensão temporal, Donnie retorna no tempo. Dessa vez Donnie fica no seu quarto e morre na queda da turbina. Um grande sacrifício que Donnie assume para que desperte desse de mundo e altere o fluxo temporal – sua namorada e sua mãe irão escapar da morte. “Voltei para casa”, afirma de forma expressiva Donnie. Ele vai encontrar no passado a redenção de um mundo inautêntico que Donnie experimenta de forma dolorosa.

Aliás, é recorrente na cinematografia recente a incessante busca do protagonista de respostas para o mal-estar do presente no passado, por meio de deslocamentos temporais (seja por meio de mediações tecnológicas ou estados alterados de consciência). De De Volta para o Futuro (Back to the Future, Robert Zemeckis, 1985), passando por Peggy Sue: Seu Passado a Espera (Peggy Sue, Coppola,1986) até chegarmos ao recente Efeito Borboleta (The Butterfly Effect, Eric Bress, 2004) testemunhamos a nostálgica volta ao passado como busca de uma inocência perdida, a reconstituição de uma experiência, a recuperação do “olhar da primeira vez”, o frescor de uma experiência primeira que se perdeu na cilada temporal do devir.

segunda-feira, janeiro 04, 2010

O Sabor Gnóstico em "O Homem Que Incomoda"


Um filme europeu com sabor de gnosticismo alquímico.

Andreas chega a uma estranha cidade sem lembrar-se de como parou lá. É dado para ele um trabalho, um apartamento e até mesmo uma esposa. Mas algo parece errado. As pessoas ao redor parecem vazias de emoções e conversam apenas sobre superficialidades. Percebemos que há uma espécie de “governança” nessa cidade onde autômatos funcionários públicos certificam-se de que tudo está funcionando bem: pessoas acidentadas, mortas ou que, simplesmente, estejam disfuncionais ao ambiente são recolhidas para um carro e levadas para um lugar não identificado.

Definitivamente, Andreas não consegue adaptar-se: é o único que aspira a emoções e sabores (na cidade os alimentos estranhamente não têm sabor, as bebidas alcoólicas não embriagam etc). Ela trás aspirações que remetem a uma outra existência da qual não consegue lembrar. Tenta escapar da cidade, mas logo descobre ser impossível. Andreas acaba encontrando uma outro pessoa com as mesmas aspirações (Hugo). Ambos descobrem, num porão de um prédio, uma rachadura na parede de onde sai uma estranha e maravilhosa música. O que há do outro lado? Começam a escavar na parede na última e desesperada tentativa de encontrar uma outra realidade além daquela.

Esta é a sinopse desse perturbador filme O Homem que Incomoda (Den Brysomme Mannen, 2006) ganhador do prêmio ACID – Agência de Difusão do Cinema Independente – em Cannes). Dentro da categorização que Eric Wilson apresenta no seu livro sobre gnosticismo no cinema (Secret Cinema: gnosticism in film), esse filme é daqueles que têm um “sabor gnóstico”: não apresenta propriamente simbolismos, iconografias ou narrativas explicitas de elementos do gnosticismo, como o fazem filmes como Matrix (Matrix, 199), A passagem (Stay, 2005) ou Show de Truman (The Truman Show, 1998). Mas possui o ponto de partida da “atmosfera gnóstica”: a desconfiança de que a realidade é falsa, um mero “constructo”. Essa desconfiança vai levar o protagonista aos estados de paranóia, melancolia ou suspensão, condições psicológicas que propiciam a gnose.

O Homem que incomoda trás uma novidade: é um dos raros filmes europeus (o filme é uma co-produção Islândia/Noruega) a abordar essa temática metafísica. Em geral no cenário cinematográfico europeu ou temos uma crítica social ou política ou filmes sobre o “humano, demasiado humano” (narrativas que versam sobre impasses éticos, morais ou dúvidas existenciais sobre “o sentido da vida”). Ao contrário, temos neste filme uma verdadeira crítica metafísica: a realidade é negada “in totum” e, a única forma de escapar é negá-la (no filme representado pela possibilidade por meio de uma fresta na parede do porão.

O curioso no filme é como é apresentada a possibilidade da transcendência. O filme trás um profundo simbolismo alquímico: a transcendência não é procurada nos céus, correndo até o fim do mundo ou se matando mas ... cavando, numa parede em um porão! A fresta aberta é um contato para um mundo paralelo onde as coisas têm cor e sabor. O processo alquímico clássico envolve a dissolução de elementos até o caos para, por meio desse estado, separar massas indiferenciadas em espírito e matéria, unindo essas oposições em uma espécie de casamento alquímico – do qual surge a pedra filosofal. Essa atividade alquímica reencenaria a atividade de Deus que separou o caos em elementos distintos para, mais tarde, reunificar essas antinomias na Revelação. Estes aspectos simbolizariam o processo através do qual o adepto consegue refinar a sua alma.


  • Ficha Técnica:
    Direção: Jens Lien
    Ano: 2006
    País: Islândia, Noruega
    Duração: 95 min/cor
    Título Original: Den Brysomme Mannen
    Título em Inglês: The Bothersome Man
Trailler do filme "O Homem que Incomoda"



Mais sobre Alquimia e Gnosticismo veja no meu texto on line "Tecnognose: Do Vale do Silício a Hollywood"

sexta-feira, janeiro 01, 2010

Viajantes, Detetives e Estrangeiros: protagonistas dos filmes gnósticos (parte 2)

Uma das características gerais dos filmes gnósticos é a presença de três tipos básicos de protagonistas: O Viajante, O Detetive e o Estrangeiro. Como vimos na postagem anterior, estes protagonistas correspondem às três formas de estados alterados de consciência que permitem ao iniciado encontrar a gnose (Suspensão, Paranóia e Melancolia). Cada um desses protagonistas vai se confrontar com um tema específico: respectivamente os temas do “Jogo”, “Memória” e “Confronto”.

O Viajante - Grupo “Suspensão”

O tema comum desse grupo é o JOGO. Narrativas de personagens que se encontram presos em um jogo da qual não sabem quando começou e quando irá acabar. As fronteiras entre aparência e essência, ficção e realidade estão suspensas. O Jogo mistura-se com a própria percepção que os personagens têm sobre o que entendem como realidade. O Jogo sempre parece dar errado, o controle da situação parece estar irremediavelmente perdido criando uma suspensão radical das fronteiras e diferenças. Neste estado psicológico de suspensão cria-se uma passagem através da qual o protagonista irá saltar (morte, salto para o abismo, queda etc.). É a Grande Negação de Basilides, a indução ao silêncio interior pela fuga da linguagem, do discurso, da cadeia racional dos eventos.
Em Vidas em Jogo (The Game, 1997) o rico banqueiro Nicholas Van Orton (Michel Douglas) vive uma vida rotineira e solitária. Até que no seu 48º aniversário (o ano em que seu pai cometeu suicídio) ganha um estranho presente do seu irmão Conrad (Sean Pen): um cartão de entrada para um jogo oferecido pela empresa Consumer Recreation Service (CRS). A princípio a natureza do jogo não está clara, mas, aos poucos, demonstra ser uma espécie de role-playing game que se integra totalmente na vida real das pessoas. O Jogo toma o controle da sua vida e Nicholas torna-se vítima de uma fraude financeira que rapidamente desintegra seu império. Nicholas é seqüestrado, largado só e sem dinheiro no México enquanto suas contas bancárias são drenadas. O clímax chega ao momento em que Nicholas, na cobertura do prédio da empresa CRS dispara sua arma contra as supostas pessoas que lhe aplicaram o golpe. Inadvertidamente atinge mortalmente seu irmão Conrad que estava com o grupo de amigos e funcionários da CRS que iriam revelar-lhe que tudo fazia parte do Jogo. Desesperado, Nicholas joga-se da cobertura, estraçalha um telhado envidraçado e cai em segurança em um imenso airbag. Lá embaixo estão Conrad e amigos revelando a falsidade de tudo que aconteceu. O Jogo, na verdade, foi um arranjo para chacoalhar o irmão e trazê-lo de volta para a realidade, para entender a lição de que a vida deve ser mais bem aproveitada.
O tema Jogo aparece de forma indireta em Vanilla Sky (Vanilla Sky, 2001). No filme encontramos David Aames (Tom Cruise) um rico e bem sucedido editor que tem tudo o que
quer. Charmoso e sedutor, David sente que sua vida está incompleta. Num momento de desespero, ele toma um porre e acaba dormindo na sarjeta. Ao acordar, tudo parece sofrer uma transformação. David cai num abismo de seu pior pesadelo, não entendendo nada do que se passa, não conseguindo compreender se perdeu o juízo ou se há uma trama para enganá-lo. Ao final descobrimos que David é um homem em estado criogênico que sonha imagens que lhe foram artificialmente implantadas por uma empresa. A única forma de escapar desta realidade virtual criada é saltando do alto do arranha-céu para retornar à própria realidade: a vida em estado de suspensão.
Em Vanilla Sky temos o Jogo como um sonho lúcido (e lúdico) criado por uma empresa (a LE – Life Extension), dentro do qual o controle é perdido tornando-se tudo um pesadelo. O Jogo é uma obra do Demiurgo/companhia (em Vidas em Jogo a companhia CRS). Como obra de um Demiurgo, é uma cópia imperfeita da realidade. O Jogo reduz os personagens à ignorância e ao silêncio. São incapazes de discernir as fronteiras entre mentira e verdade. Tal como proposto por Basilides, esta situação cria o estado de suspensão, o tertium quid, a terceira alternativa entre a ilusão e a realidade.
A suspensão encontra o clímax numa situação altamente simbólica nesse grupo de filmes: o salto/morte. Em Vidas em Jogo e Vanilla Sky os protagonistas saltam num abismo, o simbolismo da suspensão, o salto para o vazio, o silêncio, o grau zero de sentido.
Podemos nomear as personagens protagonistas desse grupo como o Viajante. Todos eles são bem estabelecidos, bem sucedidos, ricos ou famosos ou no gozo da plena capacidade criativa. Porém falta algo. É necessário empreenderem uma jornada para que todo o sentido seja suspenso, o tertium quid se apresente e o salto para a gnose seja dado.

O Detetive - Grupo “Paranóia”

O tema comum deste grupo é explicitamente a MEMÓRIA. A memória do protagonista foi perdida. Mas não por uma simples amnésia momentânea. Este esquecimento é a própria constituição do seu ser e da própria realidade que o envolve de forma conspiradora. Ele tem que resolver um enigma proposto, sem saber que a solução final desse enigma levará à própria identidade perdida ou esquecida. Esta perda cria o estado de paranóia: em quem confiar? Como distinguir a verdade da mentira, a ilusão da realidade? Por que os fatos se sucedem sem causalidade? Como saber se o que ele sente é sanidade ou loucura? É através desse estado psicológico que, segundo Valentim, o iniciado encontrará a iluminação.
Na ficção científica noir Cidade das Sombras (Dark City, 1998) temos uma nova dimensão da paranóia. John Murdock (Rufus Sewell) acorda num estranho quarto de hotel e descobre-se sem memória e caçado por brutais e bizarros assassinos. Enquanto tenta juntar os pedaços do passado, descobre que está numa cidade controlada por seres conhecidos por “Os Estranhos”. A cidade na verdade é um imenso laboratório que reproduz os aspectos de uma grande metrópole. Os Estranhos têm o poder de colocar cada habitante em estado de sonolência enquanto suas identidades são trocadas e todo o ambiente ao redor é alterado. Chamam isso de “sintonizar”. Na verdade os Estranhos são alienígenas em extinção que precisam migrar para o corpo de uma nova raça. Por isso, pretendem estudar os seres humanos descobrindo neles o que torna o espírito durável e vital apesar das sucessivas trocas diárias de identidades. John Murdock é mais uma dessas identidades “sintonizadas” pelos Estranhos, com memórias pré-fabricadas implantadas através de uma injeção aplicada entre os olhos (simbolismo esotérico do “terceiro olho”).
A cena inicial revela o simbolismo gnóstico que o filme vai abordar: John acorda (“nasce”) em uma banheira cheia d’água e completamente nu. Por algum motivo passa a ter uma sensação de estranhamento e suspeita com os objetos pessoais das memórias pré-fabricadas (chaves, as iniciais numa maleta, um cartão postal de um lugar chamado Shell Beach). É a paranóia que criará o estado incomum de consciência que resultará no renascimento para a verdade sobre a ilusão criada por um Demiurgo. Seu poder de “sintonizar” que ele acidentalmente descobre tem forte simbolismo: ele possui a mesma habilidade de mentalmente alterar a realidade que o Demiurgo. O homem tem faculdades semelhantes ao Deus imperfeito que o criou.
Em Amnésia (Memento, 2.000) Leonard (Guy Pearce) é um investigador de uma companhia de seguros que sofre de perda da memória de curto prazo. Ele procura os assassinos de sua esposa e, para compensar sua deficiência, cria um metódico sistema de notas, tatuagens e fotos para lembrar-se dos eventos anteriores. Sua relação com a realidade é de total estranhamento e paranóia: em quem pode confiar? E, o que é pior, poderá ele confiar nas suas próprias anotações feitas a partir de situações das quais ele não se lembra? Leonard enfrenta profundas crises existenciais e epistemológicas sobre a própria natureza ontológica da realidade.
Buscar os assassinos da sua esposa implica em buscar sua própria identidade. A paranóia o faz crer em fatos e não em memórias, certeza epistemológica na qual baseia o sistema de anotações que fará Leonard encontrar a verdade: “memórias podem mudar a forma de um quarto, a cor de um carro. Podem distorcer. São apenas interpretações, não uma gravação. Memórias tornam-se irrelevantes se tenho os fatos”.
A personagem deste grupo de filmes, portanto é o Detetive. É aquele que busca o que se perdeu. Tudo está mergulhado na obscuridade. As investigações o levam para um mundo fragmentado e incompreensível povoado por gente cujos compromissos e motivações não são claros. Defronta-se sem cessar com o mundo da simulação. O mundo com suas conexões e eventos são falsos, fabulações conspiratórias de um Demiurgo/Diabo/Alienígena.
A fragmentação do mundo falso em que o Detetive movimenta-se é representada pela própria narrativa não-linear dos filmes desse grupo: Flash-backs, Flash-forwards, narrativas paralelas etc. Amnésia, por exemplo, adota uma complexa narrativa onde as seqüências em cores estão cronologicamente invertidas enquanto as cenas em preto e branco estão em ordem cronológica.
A experiência da perda é o evento central para o detetive. Vive em estado constante de deslocamento e desorientação. Freqüentemente é atingido na cabeça ou drogado, delira, perde os sentidos. Ao acordar não sabe onde está, quanto tempo se passou, o que aconteceu.
Na vida do Detetive há um profundo sentido gnóstico a respeito da natureza corrompida da realidade: a vida não opera por soma, mas por subtração. A vida mais nos retira do que nos dá. Não há evolução, acumulação, progresso, mas perda, roubo, involução. Por isso, é marcante que o enigma a ser resolvido comece por pistas, objetos, verdadeiros rastros, escombros da uma identidade que se perdeu ao longo do caminho.


O Estrangeiro - Grupo “Melancolia”

O tema comum desse grupo é o CONFRONTO. Tudo começa com a relação de estranhamento dos protagonistas com o lugar onde moram, vivem e se relacionam. São estrangeiros dentro do seu próprio país vivendo um auto-exílio. Sentem não pertencer àquele mundo, estão em constante mal-estar e à deriva. O que está errado? Tudo parece estar no lugar, seguindo os padrões e expectativas do status quo. O Estrangeiro pressente a inautenticidade do mundo em que ele está. Demonstra desdém aos papéis sociais, padrões, modelos de felicidade. É um melancólico. Pretende se reconhecer no submundo, nas ruínas, em todos os lugares que estão acabando, no erro, no suicídio, na morte. Este fascínio pelo universo looser levará o protagonista a um confronto final contra o Demiurgo que criou este mundo inautêntico que o rodeia.
Show de Truman dramaticamente nos apresenta a cosmologia de Mani: a luta entre Trevas e Luz e a sedução da realidade pela simulação. Christoff (Ed Harris), o produtor de TV, é o Demiurgo. Ele cria um imenso estúdio em forma de domo onde as condições meteorológicas são controladas por computadores, tudo sob um céu falso, um pequeno mar simulando oceano, e uma cidade ficcional chamada Seaheaven habitada por atores que representam scripts pré-determinados. Ele necessita criar um simulacro da realidade para realizar seu sonho: tomar uma criança (Truman Burbank) desde o nascimento, colocá-la em um ambiente simulado e acompanhar com as câmeras o seu crescimento em cada ação, até tornar-se homem. É claramente o simbolismo do aprisionamento de Adão no Paraíso engendrado pelo deus-demiurgo. Como tal, surge Eva para “tentar” Adão: a atriz Sylvia (Natascha McElhone) rompe com o seu papel no programa e tenta alertar Truman sobre a ilusão na qual está aprisionado.
O que Christof pretende com o seu gigantesco reality show? Tal qual o Demiurgo de Mani, quer aprisionar o anthropos (criar um ser humano puro, original e espontâneo, “uma estrela que inspira milhões”) para roubar dele a partícula de Luz, tal como é descrita na gnóstica mitologia maniqueísta da batalha contra as Trevas.
Truman é um homem comum vivendo uma vida comum. Tem uma esposa normal, vizinhos normais e um amigo normal. Mas não está feliz. Há um vazio. Melancólico, tem fantasias escapistas com as Ilhas Fiji. Quer conhecer o mundo. Romper com o habitual, com o papel pré-determinado de um agente de companhia de seguros. Até que um acidente misterioso acontece: do céu azul cai, na sua frente, um spot de estúdio. Esse spot trará a suspeita de que há um mistério por trás da rotina. Sua melancolia torna-se febril. Decide então pular para o abismo, desafiar a morte para fugir daquela vida. À noite rouba um barco e decide rumar para o horizonte do mar de Seaheaven. Começa o confronto final com o Demiurgo. Assim como o Deus vingativo do Velho Testamento, Christoff tenta matar Truman pela desobediência criando violentas tormentas no mar cenográfico. “Isso é o melhor que pode fazer?”, desafia Truman.
O estrangeiro aspira ao sagrado, à transcendência, ao autêntico, aquilo que denuncie a falsidade que constitui a vida nesse mundo. Por isso inventa um mundo para si. Cria sua própria origem, constrói uma mitologia que ajude a explicar seu estranhamento em relação ao mundo. Truman cria um imaginário em torno das ilhas Fiji, habita antecipadamente esse sonho. Truman apaixona-se por uma extra do reality show (notório para um Estrangeiro apaixonar-se por uma atriz secundária do programa). Tenta relembrá-la a partir de fragmentos de recortes de fotografias de revistas. Um retrato imaginário das suas origens.

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