sexta-feira, setembro 02, 2011

O Fetichismo da Liquidez

“Que coisa triste”, diz a música daquele comercial de um cartão de débito referindo-se a pessoas que teimam em portar papel moeda. Acompanhamos o esforço midiático diário por meio da publicidade e filmes em glamourizar o dinheiro na sua forma líquida, fluida e atemporal: crédito, transações eletrônicas, dinheiro contratual etc. É o fetichismo da liquidez, forma imaginária de ocultar os mecanismos ficcionais de financeirização da sociedade, baseados unicamente na fé e no valor moral do dinheiro e do trabalho.

Se Karl Marx na sua obra máxima “O Capital” mostrou que o capitalismo e o mercado se instituíram sobre as formas imaginárias do Fetichismo da Mercadoria e o do Dinheiro, agora diante da financeirização da sociedade faz-se necessária uma crítica ao fetichismo da liquidez.

Podemos observar na indústria do entretenimento uma insistente tendência em glamourizar o dinheiro em sua forma “líquida” (“dinheiro crédito”, “dinheiro contratual”, “dinheiro eletrônico” etc.) como sinônimo de modernidade e inteligência, enquanto ao dinheiro em espécie é reservado o papel de algo antigo, sujo e seu portador como alguém desajeitado e burro.

Como mostra o filme publicitário de um cartão de débito, pagar em dinheiro é “uma coisa triste”, antiga, atrai olhares de condenação das pessoas ao redor. Há uma premissa moral nessa execração em querer carregar consigo o dinheiro em espécie: você passa a ser suspeito de querer fazer um uso infecto, quando o dinheiro é tão belo em seu estado fluido e atemporal. O dinheiro em espécie é sujo e perigoso.

No cinema filmes como “Não Tenho Troco” (Quick Change, 1990 – um trio assalta um banco e planeja fugir de Nova York, mas o fato de estarem levando notas de alto valor vai criar uma série de incidentes em série tal como não conseguir fugir num ônibus por não haver troco) ou  ainda o filme de Scorsese “Depois de Horas” (After Hours, 1985 – onde um yuppie, após deixar voar pela janela do taxi a única nota que possuía, entra em uma série de catástrofes em série) apresentam protagonistas atrapalhados e azarados que enfrentam bizarras cadeias de eventos problemáticos por andarem com papel moeda.


Na mídia sempre o dinheiro em espécie está associado à corrupção: fotos de pilhas de notas ligadas ao caixa dois de campanhas políticas ou compra de dossiês, subornos, “malas pretas” no futebol etc.

Gordon Gekko no filme "Wall Sreet":
liquidez com "sex appeal" 
Ao contrário, a liquidez está quase sempre associada a protagonistas inteligentes e com “sex appeal”: Gordon Gekko no filme “Wall Street”, o yuppie que se transforma em gênio dos mercados financeiros através das “smart drugs” em “Sem Limites” (Limitless, 2011), ou ainda a sexy personagem interpretada por Annette Bening no filme “Os Imorais” (The Griffers, 1990) que trabalhava num escritório de corretagens onde ajudava a aplicar golpes nos mercados financeiros.

Qual o sentido dessa glamourização e idolatria fetichista da liquidez? Por que essa condenação moral do uso do papel moeda?

Liquidez e especulação “ad infinitum”

De certa forma Karl Marx anteviu a financeirização do capitalismo com a teoria da tendência decrescente da taxa de mais-valia com a predominância do trabalho morto sobre o vivo na produção (o crescimento do maquinário e automação na linha de produção). Diminuída a capacidade de extração da mais-valia no setor produtivo, o capital e o Estado migram para o setor financeiro que cada vez mais se autonomiza em relação ao restante da sociedade, como bem explica o Grupo Krisis (grupo de intelectuais e formado em 1986 na Alemanha e liderado por Robert Kurz, influenciados pelas ideias de Guy Debord e Theodor Adorno em torno do jornal “Krisis – contribuições para uma crítica à sociedade da mercadoria):
“Há tempos, empresas industriais têm ganhos que já não resultam da produção e da venda de produtos reais – o que já se tornou um negócio deficitário – mas sim, da participação feita por um departamento financeiro “esperto” na especulação de ações e divisas. Os orçamentos públicos demonstram entradas que não resultam de impostos ou tomadas de créditos, mas da participação aplicada da administração financeira nos mercados de cassino. Os orçamentos privados, nos quais as entradas reais de salários reduziram-se dramaticamente, conseguem manter ainda um consumo elevado através dos empréstimos dos ganhos nos mercados acionários. Cria-se, assim, uma nova forma de demanda artificial que, por sua vez, tem como consequência uma produção real e uma receita estatal real “sem chão para os pés”.”(GRUPO KRISIS – “O Manifesto contra o Trabalho” disponível em: http://www.consciencia.org/krisis.shtml).
Desde que o presidente Richard Nixon em 1971 rasgou o acordo de Breton Woods ao decidir pelo fim do lastro-ouro para o dólar, criou-se as condições para extrema liquidez das transações financeiras globais.

Esta financeirização da economia global pode ser considerada uma “virtualização”. Sem lastro com o mundo material (a produção de riqueza a partir do trabalho nos setores primário e secundário, respectivamente agricultura e indústria) a produção de valor de descola do Estado-Nação (Casa da Moeda e Bancos Centrais nacionais) para ser privatizada pelos grandes conglomerados financeiros. O próprio setor financeiro passou a emitir “moedas” ao converter papéis das dívidas nacionais em novos papéis, ou seja, dívidas pagas com novos créditos que se convertem em novas dívidas, numa espiral especulativa sem precedentes.

O aquecimento da economia é tudo que
mais teme o fetichismo da liquidez
Nesse contexto de extrema liquidez, surge a necessidade de que o dinheiro em espécie seja substituído progressivamente pelo chamado “dinheiro-crédito” nas suas várias formas (talões de cheque, cartões de crédito, cartões de débito etc.).  Sem lastro de valor “real” o dinheiro e demais títulos cambiais têm que ser colocados em eterna circulação especulativa, adiando “ad infinitum” que sejam descontados ou que se convertam em espécie.

Por isso compreendem-se os freios estruturais do sistema econômico: juros altos e a constante ameaça inflacionária que paira se a economia “aquecer”. Pleno emprego e pleno consumo é tudo que a liquidez mais teme, sob pena de que títulos sejam descontados e de que todo o sistema se desmorone ao ser descoberto a ausência de lastro e a inexistência da medida do valor no sistema econômico.

A financeirização e a liquidez tornam-se uma camisa de força para as forças produtivas da sociedade (como diria Marx, o trabalho morto domina o vivo), pois a criação do dinheiro-crédito é uma nova forma de poder (virtualmente infinita) pela capacidade do sistema financeiro criar crédito e riqueza sobre o nada. Isto é, sobre a credibilidade ou a fé de milhões de usuários que, seduzidos pelo fetichismo da liquidez, acreditam que através das “home banking” nas telas de computadores e cartões de crédito e débito estão manipulando valores monetários reais.

O segredo do dinheiro-crédito

Atualmente nos países desenvolvidos mais de 90% das transações são feitas sem o uso do papel-moeda. Cheque, cartões de crédito e outras formas de pagamentos são constantemente criados pelo sistema bancário e usados com as mesmas funções do dinheiro.

Mas será que essas formas de pagamento representam efetivamente dinheiro? Para além do fato de serem instrumentos convenientes para o dia-a-dia, não podem ser considerados “dinheiro”, não enquanto contraparte, equivalente em papel ou metal para as transações diárias, em um nível nacional e internacional. É o que tecnicamente chama-se "dinheiro contratual" e que nós podemos chamar de "dinheiro-crédito".

Crédito é uma palavra que etimologicamente vem do latim "credere", que significa "acreditar". Nós pensamos que um título lançado por um banco (um cheque, por exemplo), implica na existência do papel-moeda numa quantidade do mesmo valor, em algum lugar. Normalmente, no cofre de um banco. Isso não é verdade.

A crença na intercambialidade entre
dinheiro crédito e papel moeda
Desde aproximadamente dois séculos na Europa e Estados Unidos, os banqueiros sabiam, pela experiência diária, que o dinheiro retirado das contas correntes pelos clientes na boca do caixa representa apenas 10% do total dos valores depositados. O restante dos valores são movimentados por meio de “dinheiro contratual”, como talão de cheques, por exemplo.

Isso dá aos bancos a oportunidade de abrir créditos dezenas de vezes superiores ao montante de dinheiro efetivamente existente nos seus cofres, sabendo que quando cada crédito é aberto, o cliente não irá sacar todo o dinheiro da sua conta. Como sempre, em média 10% desse valor será sacado, e o restante será movimentado através de cheques ou transações eletrônicas, os quais na maioria das vezes entrarão em outras contas correntes.

Nessa perspectiva compreende-se a financeirização da atividade econômica e toda a estratégia midiática em torno do fetichismo da liquidez com o incentivo do “dinheiro-crédito” nas suas formas eletrônicas. Todos pensam que os empréstimos ou créditos são efetivamente dinheiro, que é dinheiro real, vindo da Casa da Moeda, e que cheques e cartões são unicamente usados para tornar as coisas fáceis e rápidas.

Quanto mais é incentivado o uso de “dinheiro crédito” por meio de cartões e transações eletrônicas, mais aumenta a margem especulativa do sistema financeiro em oferecer mais crédito (fabricar mais “moeda”). Em outras palavras, os bancos oferecem o que não têm (emprestam apenas números que aparecem em telas) e a juros altos, como freio estrutural para evitar que a economia “aqueça” e quebre a espiral especulativa.

Dessa maneira, os negócios bancários dependem de uma aparente intercambialidade entre dinheiro-crédito e dinheiro em espécie. Esses negócios estão baseados na credibilidade (crédito), ou seja, numa ficção.

Na verdade, a credibilidade não é tanto no sistema financeiro, mas provém do valor moral que a sociedade ainda confere ao trabalho e ao dinheiro. Ainda acreditamos (fé, crença fetichista) que o dinheiro é fruto do nosso trabalho e que ele é intercambiável com o dinheiro crédito no sistema financeiro que, afinal, nos libera da perigosa situação de andarmos com dinheiro vivo.

No final é essa crença moral que impede a corrida desesperada da sociedade para sacar seus ativos no caixa dos bancos. Em nome da praticidade e segurança abrimos mão do patrimônio e da concreção dos valores em lugar da liquidez, sem saber que estamos diante da chantagem da financeirização: se todos tentarmos converter o dinheiro crédito para a realidade através do saque, consumo ou patrimônio, o sistema financeiro nos colocará sob a espada da inflação e da elevação dos juros. Ou diante de um feriado bancário emergencialmente decretado, enquanto tropas de choque se postam diante das agências bancárias para que desistamos da ideia de recuperar nossos ativos.

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