sábado, fevereiro 23, 2013

O evangelho do capitalismo tardio no filme "Rede de Intrigas"


Vencedor de quatro Oscars em 1977, “Rede de Intrigas” (Network, 1976) de Sidney Lumet foi interpretado na época apenas como um drama sobre “o primeiro homem a morrer por causa dos baixos índices de audiência”. O filme estava à frente do seu tempo com um tom de sátira cínica e trágica que profetizava uma nova forma de sensacionalismo midiático bem diferente da velha “imprensa marrom”: uma espécie de sensacionalismo ecumênico, o novo evangelho da nova ordem mundial que estava sendo instaurado – a Globalização. Para compreender totalmente o quão profético foi o filme “Network”, somente através do conceito de “capitalismo tardio” tal como desenvolvido pelo economista marxista belga Ernest Mandel em 1972.

- Olá, eu sou Diana Cristensen, uma racista escravizadora do circo do Tio Sam.
- E eu sou Laura Hobbs, uma negra suja e comunista.

O insólito diálogo acima entre a executiva da rede de TV norte-americana UBS com uma líder ativista radical de esquerda ao se conhecerem para fechar o acordo sobre a exibição no horário nobre do programa chamado “A Hora Mao Tsé-Tung” , é um dos cínicos e irônicos momentos do filme “Rede de Intrigas” de Sidney Lumet. Para conseguir audiência a executiva não hesitará em exibir vídeos gravados pelos próprios guerrilheiros do Exército Ecumênico de Libertação assaltando bancos e cometendo atentados.


O filme “Network” é uma devastadora crítica à submissão da programação televisiva à luta pela elevação dos índices de audiência a qualquer preço. Em 1976 a sátira do roteiro de Paddy Chayefsky foi entendida como um drama por críticos e pela Academia de Hollywood que conferiu ao filme quatro Oscars (ator, atriz, ator coadjuvante e roteiro): a história do “primeiro homem que morreu devido aos baixos índices de audiência”.

O filme estava à frente do seu tempo e, mesmo ainda hoje, os críticos se referem à “Network” como um filme sobre o sensacionalismo e a falta de ética da TV. Reduzir a essa leitura é desprezar o fato de que o filme é um documento profético dos tempos da globalização que estavam chegando, como bem compreendeu o cult documentário “Zeitgeist” (o documentário insere um trecho do filme para ilustrar a "Nova ordem mundial"), o advento de uma época onde os conglomerados estão acima de Estados e nações e a unificação de ideologias, partidos etc. em um único sistema financeiro internacional passa a ser a nova religião ecumênica no chamado “capitalismo tardio”.

“Network” vai além da crítica moralista da falta de escrúpulos dos executivos da mídia. Mostra que o sensacionalismo é o resultado direto da industrialização da cultura acelerada pelo capitalismo onde negócios, política e religião se confundem em um ecumenismo pós-moderno.

Para entendermos o verdadeiro significado de “Network” temos mergulhar no conceito de “capitalismo tardio” tal qual desenvolvido pelo economista e político marxista belga Ernest Mandel para contextualizar a questão dos conteúdos televisivos dentro de um sistema de industrialização generalizado não só das mercadorias, mas também da cultura.

O Filme


Quando os índices de audiência começam a cair, a rede UBS decide demitir o veterano âncora do principal telejornal da emissora Howard Beale (ganhador do Oscar Peter Finch). Indignado, Beale anuncia ao vivo que irá se matar diante das câmeras como forma de protesto. Com o súbito aumento da audiência pela expectativa de suicídio, a ambiciosa e carreirista diretora de programação Diana Christensen (vencedora do Oscar Faye Dunway) decide criar o “The Howard Beale Show” onde Beale poderá extravasar toda a sua raiva contra o establishment e criará bordões como “Estou louco como o diabo, e não aguento mais isso!”.

Como um pastor evangélico televisivo, Beale convocará todos os espectadores a gritarem nas janelas seu bordão e enviar milhares de telegramas de protesto à Casa Branca. Ele se transforma no “Profeta tardio mais louco que Moisés” ou “O Profeta Louco das Ondas de TV”. Juntam-se ao seu púlpito televisivo um freak show de videntes, cartomantes e justiceiros.

Seu amigo pessoal e diretor de Jornalismo da UBS Max Schumacher (William Holden) teme pela saúde mental de Beale e tenta tirá-lo desse circo. Mas o “The Howard Beale Show” torna-se a salvação financeira da emissora. Principalmente porque por trás de tudo isso ocorre uma milionária aquisição da rede por um gigantesco conglomerado alimentado por petrodólares árabes. A emissora precisa ser valorizada para haver retorno financeiro ao gigantesco investimento.
A ironia de “Network” é mostrar como na programação da UBS passam a conviver tranquilamente a indignação evangélica de Beale que acha que é uma canal de comunicação com o Divino e o programa “Hora Mao Tsé-Tung” co-produzido pelo “Exército Ecumênico de Libertação” (um pastiche de islamismo, feminismo e comunismo) e o Partido Comunista americano. Isso na emissora pivô de uma milionária engenharia financeira global.

“Network” e o Capitalismo Tardio


Talvez o ponto alto do filme seja a sequência em que o dono da CCA, Arthur Jensen, (gigantesco conglomerado que está fazendo secretas transações com os árabes) faz um messiânico monólogo para Beale compreender a nova religião global que ele deverá ser o seu maior profeta:
Arthur Jensen - Você é um homem velho... que pensa em termos de nações e pessoas. Não existem nações. Não existem pessoas. Não existem russos. Não existem árabes. (...) Só há um sistema holístico de sistemas! Um vasto e imanente, interligado, interagente... multivariante, multinacional domínio de dólares!Dólares petrolíferos, eletrodólares, multidólares. É o sistema internacional da moeda corrente... que determina a totalidade de vida neste planeta. Não há América. Não há democracia. Só há IBM e ITT... e AT&T... e Du Pont, Dow, Union Carbide... e Exxon. Essas são as nações do mundo de hoje. (...) Nós não estamos mais vivendo num mundo de nações e ideologias, Sr.Beale. O mundo... é um colegiado de corporações... inexoravelmente determinado... pelas leis imutáveis dos negócios.  Um mundo perfeito... não haverá guerra ou fome... opressão ou brutalidade. Uma vasta e ecumênica "companhia-mãe" pela qual todos homens irão trabalhar para servir a um lucro comum que proverá todas as necessidades e tranqüilizará todas as ansiedades... E eu escolhi você, Sr.Beale... para pregar esse evangelho... 
Beale - Por que eu?                                                             
Arthur - Porque você está na televisão, idiota!
O que é essa autêntica “Nova Jerusalém” do novo messianismo ecumênico? Globalização? Sociedade Pós-Industrial? O economista Ernest Mandel (1923-1995) preferia chamar de “Capitalismo Tardio”. Ele achava um equívoco o termo “pós-industrial” porque, pelo contrário, o capitalismo atual seria definido por uma industrialização generalizada e sem precedentes não só para a produção de mercadorias, mas em todos os setores da vida social: produção, lazer, cultura e trabalho (Veja MANDEL, Ernest “Capitalismo Tardio”, série “Os Economistas”, Abril, 1982).

Por “industrialização” ele se referia a categorias mais gerais e abstratas como mecanização, super-especialização, padronização e fragmentação que no passado apenas se referiam à produção de bens, mas agora se estendem à sociedade como um todo.

Essa industrialização generalizada (que leva a hipertrofia de setores terciários como finanças, comércio, publicidade, mídia, etc.) seria o resultado de uma crise do Capital valorizar-se, isto é, a dificuldade em reverter a mais-valia acumulada no setor produtivo em mais produção, principalmente pelo esgotamento dos recursos naturais e limitação física dos mercados.

Para resolver essa contradição o capital necessita expandir a lógica da industrialização para setores onde ainda se produzia mercadorias de forma autoral ou artesanal para torná-los industriais para promover a aceleração do consumo.

O evangelismo raivoso de Beale e a “Hora Mao Tsé-Tung” já não podem mais ser comparados ao velho sensacionalismo da “imprensa marrom” de jornalistas e empresários sem escrúpulos. Como mostra magistralmente o filme “Network” são resultados de uma linha de montagem cientificamente elaborada com prazo de validade marcado e de depreciação acelerada para serem substituídos por outras novidades.

O novo sensacionalismo do capitalismo tardio é um liquidificador de ideologias, nações, etnias e religiões sob a égide do ecumenismo messiânico do novo evangelho global que Howard Beale passa a ser o seu visionário. Partindo da lógica do capitalismo tardio proposto por Mandel, é a ponta do iceberg da hipertrofia dos setores terciários da economia (serviços, crédito, mídia, sistema financeiro etc.) pela necessidade da busca do capital valorizar-se em outros setores para além da produção.

Esse é o novo evangelho, o “zeitgeist” dos conglomerados que são capazes de diversificar seus investimentos de fábrica de parafusos a evangelistas televisivos possessos, passando por educação e universidades que se transformam igualmente em linhas de montagem. Tudo sob o messianismo do ecumenismo das religiões, raças, nações, sexos e ideologias. Como fala aquele slogan de telefonia celular: “o mundo sem fronteiras”.

Ficha Técnica

  • Título: Rede de Intrigas (Network)
  • Diretor: Sidney Lumet
  • Roteiro: Paddy Chayefsky
  • Elenco: Faye Dunaway, William Holden, Peter Finch, Robert Duvall
  • Produção: Metro Goldwyn-Mayer (MGM), United Artists
  • Distribuição: Warner Home Video
  • Ano: 1976
  • País: EUA

 

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