domingo, julho 21, 2013

Globo faz programa tautista sobre "Honestidade"


Em meio ao debate do programa “Na Moral” Antônio Fagundes cita a fábula de Platão do anel da invisibilidade de Gyges para discutir ética e honestidade. Risos amarelos de Pedro Bial e da cantora convidada Gaby Amarantos diante de um momento de dissonância. Segundos de indecisão do surpreendido Bial, que toca o programa pra frente, sem comentários. “Na Moral” detona mais uma bomba semiótica na opinião pública (criar uma relação metonímica entre o impeachment de Collor em 1992 e as manifestações atuais), porém essa explosão parece que saiu pela culatra: esse momento de dissonância criado por Fagundes demonstrou o progressivo autismo da emissora que teimosamente tenta interpretar a realidade através da tautologia, auto-referência e metalinguagem. Seriam sintomas do “tautismo”, espectro que ronda a Globo que, para especialistas em comunicação e linguagem, são sinais de entropia de sistemas que adquiriram tamanha complexidade que não mais se sustentam.

Com a atmosfera política cada vez mais carregada, sucedem-se explosões das bombas semióticas midiáticas . Mas dessa vez, testemunhamos uma espécie de “fogo amigo”, isto é, a explosão de uma bomba que se reverte contra o seu próprio autor e seus aliados. Estamos falando sobre o programa “Na Moral” da TV Globo apresentado no dia 19/07. Apresentado pelo jornalista Pedro Bial, o tema era “Honestidade” e os convidados que debateriam com a plateia o tema foram o ator Antônio Fagundes e a cantora Gaby Amarantos.

Como toda bomba semiótica que se camufla de informação para construir significações arbitrárias que visam criar ondas de choque na opinião pública, o propósito latente dessa particular edição do “Na Moral” era fazer uma aproximação metonímica entre as manifestações do impeachment do presidente Collor de Melo em 1992 com a atual escalada de manifestações pelas ruas do País – e politicamente fazer “sangrar” o governo até as eleições do próximo ano. Para articular essa operação linguística, Bial invocou um episódio do antigo programa “Você Decide” também de 1992 onde se definia se um homem desempregado, que encontrou uma mala cheia de dinheiro, deveria ou não entregar aquele valor ao seu dono. Quem apresentava aquele programa? Claro, Antônio Fagundes.


Bomba semiótica: tentar uma relação
metonímica entre o impeachment de Collor
com as manifestações atuais
A partir desse ponto começa o fenômeno do “fogo amigo” com a detonação dessa bomba semiótica: a edição do “Na Moral” acabou confirmando uma tendência da TV Globo que em postagem anterior (veja links abaixo) nomeávamos como tautismo. Essa tendência seria um espectro ameaçador à emissora, pois representaria um sinal do fechamento autofágico de um sistema que, de tão complexo, começa a consumir a si mesmo por meio da auto-referência e metalinguagem. Como resultado, fecha-se para a realidade exterior como defesa, tornando-se cego ao novo e às mudanças nos cenários sócio-políticos.

Em outras palavras, a edição da semana passada do “Na Moral” evidenciou ainda mais uma crise que ronda a TV Globo: jornalistas, produtores, artistas, diretores etc. não conseguem mais avaliar os fatos, a não ser dentro dos estritos limites de algo que entendem como “realidade”, criado por sucessivas camadas de autoreferências, mistura de informação com entretenimento, artistas analisando fatos jornalísticos e vice-e-versa etc.

Mas vamos refrescar a memória sobre o conceito de tautismo. Segundo o pesquisador francês Lucien Sfez a hipertrofia dos sistemas de comunicações atuais criaria uma situação onde sistemas tão complexos (marcados pela auto-organização e fechamento) tenderiam ao que ele chama de “comunicação confusional”: o tautismo, uma mistura de tautologia (repetição lógica onde o resultado do raciocínio é igual à sua proposição) e autismo (estado mental que produz um mundo próprio e fechado ao contato com a realidade exterior), onde se cria um diálogo sem personagens, isto é, a comunicação como seu próprio objeto.

“Honestidade” no lugar de “ética”


O programa inicia como introdução semioticamente significativa de Pedro Bial: os debates do programa daquela noite “substituiriam a palavra ética por honestidade”, disse o apresentador. E a palavra “honestidade” seria pensada como “antônimo” de corrupção. Troca semântica sintomática, pois para um sistema fechado ao mundo exterior, o conceito de “ética” é ontologicamente carregado demais. Isto é, se a palavra ética significa a busca da Verdade e do Bem a partir das propriedades mais gerais das coisas, seres e da realidade, ela torna-se incompreensível para o tautismo.

Convém substituir por “honestidade”, psicologicamente intimista, como convém à personalização de processos e conjunturas sociais que o telejornalismo e as telenovelas globais operam: a avaliação da realidade a partir do binarismo bem/mal, manifestantes/desordeiros, mocinhos/bandidos. Corrupção não é uma questão de estrutura que envolve os corruptores, mas de mera formação familiar, educacional ou moral de um indivíduo.
Convém também perceber que muitos outros termos “ontologicamente carregados” desaparecem e são substituídos (≈) por um telejornalismo pautado pela linguagem das telenovelas e programas de entretenimento: /ideologia/≈/pensamento/; /sistema/≈/modelo/ (um modelo é mais personalizável do que um sistema); /ministro/≈/ministro da Dilma/ etc.

A auto-referência do “Você decide”

"Você Decide" de 1992: o desempregrado
deve ou não devolver a mala
cheia de dinheiro?
E como “Na Moral” vai discutir o problema atual da corrupção? Exibindo um episódio do “Você Decide” de 1992, armadilha metonímica para comparar o momento atual ao do pré-impeachment do então presidente Collor de Melo. Mas tudo o que vemos é metalinguagem e auto-referência: mostra-se um fac-símile de um jornal da época (claro, “O Globo”!) repercutindo a polêmica decisão dos espectadores que optaram pela não devolução da maleta cheia de dinheiro.
Uma flagrante interpretação tautista da Globo sobre seu próprio passado: a decisão do “Você Decide” de 1992 interpretado como fosse um fato jornalístico ou sociológico. Esquece-se de questionar qual era o registro dos espectadores à época para um programa dito “interativo” (“interatividade” era um termo novo e incompreensível para uma maioria que ainda não tinha acesso às mídias digitais) que misturava fatos reais com linguagem ficcional. Em outras palavras, o público interagiu com uma narrativa teledramatúrgica, jamais com um relato documental.
Exibida novamente para o público atual, exposto à armadilha semiótica da metonímia (impeachment  ≡ manifestações), logicamente o resultado foi inverso. Bial eleva a nova decisão dos espectadores de “Na Moral” a um impacto sociológico de um suposto “amadurecimento dos brasileiros”.

A simulação das pegadinhas

E para complementar “Na Moral” propõe um exercício que é o exemplo-limite do tautismo televisivo: as “pegadinhas”, situações simuladas por atores para surpreender incautos transeuntes. Se no passado as pegadinhas se limitavam ao entretenimento voyeurístico e sádico, agora com Pedro Bial é elevado a laboratório sociológico!
Duas situações foram simuladas: uma pessoa deixa cair um maço de notas de dez reais; e outra, dessa vez deixando cair um maço com notas de cem reais. Logicamente, menos pessoas devolveram o maço de notas de cem, mas nesse caso o resultado pouco importa. O que interessa é o sintoma simultaneamente autístico e tautotlógico dessa pegadinhas: a produção de um programa televisivo que cria uma situação para avaliar uma realidade a partir dos seus próprios pressupostos. Circularidade, auto-referência e delírio!

O fim da competência Global?

"Saramandaia" (1976): houve um tempo
em que a Globo estava sintonizada
com os novos tempos.
Mas nem sempre foi assim. Já houve um tempo em que a TV Globo primou pela experiência, profissionalismo e inovação. Momentos em que esteve aberta à realidade e sabia avaliar para que direção apontava os novos tempos.
“Saramandaia”, novela de Dias Gomes de 1976, incorporava elementos da escola literária do realismo fantástico sul-americano de Gabriel Garcia Marques, Julio Cortázar e Jorge Luis Borges, criando um microcosmo brasileiro hiperbólico em plena ditadura militar – hoje o tautismo global reduz o remake aos clichês de maridos chifrados, mulheres fogosas e o elemento fantástico reduzido à imagética da série cinematográfica “Crepúsculo”; mesmo o “Você Decide” tentava incorporar a interatividade a uma mídia passiva diante do horizonte das novas mídias digitais – com Pedro Bial, foi promovido a documento sociológico.
Em outras palavras, para explicar dois eventos reais (o impeachment de Collor em 1992 e as atuais manifestações nas principais capitais do País) a TV Globo mobiliza um complexo discurso auto-referencial e circular, base que configura o tautismo, sintoma da cegueira e crise estratégica da emissora para entender o novo. E o pior é que os próprios personagens que deveriam fazer a interface do sistema global com o mundo exterior (jornalistas, comentaristas, editorialistas, diretores de núcleos e executivos) começam a avaliar o mundo a partir do seu próprio discurso autístico narcísico.
Mas um fato engraçado típico de nota deve ser lembrado nessa edição do “Na Moral”: em meio ao debate, de repente o ator Antônio Fagundes cita Platão e a narrativa do mito do anel da invisibilidade de Gyges para discutir ética e honestidade. Sorrisos amarelos de Pedro Bial e da cantora Gaby Amarantos... Bial desconversa e toca pra frente, sem comentários. Momento constrangedor! Fagundes quis injetar alguma “ontologia” no delírio tautista, mas ninguém entendeu nada.

Veja a íntegra do programa (clique aqui) e veja essa sintomática passagem aos 10 minutos do vídeo.

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