sábado, novembro 02, 2013

Estudante implode bomba semiótica do Enem


Sem querer o estudante da USP que simulou ser um candidato atrasado do Enem, cujas fotos ocuparam primeiras páginas de jornais e portais de Internet, acabou abrindo uma perspectiva de contra-ataque na verdadeira guerrilha semiológica que toma conta da opinião pública brasileira: contra a manipulação midiática, a simulação; contra a mentira, o seu paroxismo: o simulacro! É a “bomba pós-moderna”, que ajudou não só a implodir como colocou a nu o processo de construção de bombas semióticas, como as que a mídia detona contra o Enem. A estratégia irônica do contra-ataque através da simulação como forma de desmoralizar a mídia segue a tática como a do agitador cultural Joey Skaggs (famoso nos EUA por "pegadinhas" contra a TV e jornais) e de manifestantes em Portugal contra as políticas de austeridade.

Nessa semana, uma pessoa fez mais estragos que dezenas de black blocks depredando fachadas de bancos e de lanchonetes multinacionais. Trata-se de um aluno do curso de Ciências Contábeis da USP, Flávio de Queiroz, que simulou diante de fotógrafos e jornalistas ser um candidato atrasado na prova do Enem realizado no último domingo. A foto dele dramaticamente tentando escalar as grades da Uninove, na Barra Funda, São Paulo, saiu em portais da Internet e primeira página do jornal Folha de São Paulo ao lado de uma sombria manchete: “Quase um terço dos candidatos não faz Enem”.

                Ao lado da barrigada da rádio CBN em que uma ansiosa repórter confundiu um aviso de um curso de alemão na USP como um aviso cifrado da bandidagem sobre a chegada da polícia para apressadamente confirmar uma pauta estipulada pela reportagem (veja links abaixo), o episódio da simulação do aluno atrasado do Enem pôs a nu o processo de montagem da notícia com a finalidade de torná-la uma bomba semiótica.

Enem na mídia: sempre à beira da fraude com
jornalistas em busca de índices
da sua ineficiência
                Mas esse caso apresentou uma novidade: sem querer, o aluno da USP criou uma verdadeira contra-bomba nessa verdadeira guerrilha semiológica em que se tornou o contínuo midiático nacional. Sem saber, ele acabou criando uma “bomba pós-moderna”, cujo princípio tecnolinguístico pode ser sintetizado da seguinte maneira: contra a manipulação midiática, a simulação; contra a mentira, o seu paroxismo: o simulacro!

A bomba semiótica do Enem


                Assim como a ansiosa repórter da rádio CBN que foi a campo cobrir a greve na FFLCH-USP com a missão de trazer evidências que confirmassem as convicções da chefia, da mesma forma os jornalistas da grande mídia vão cobrir cada Enem com uma pauta bem clara: registrar qualquer episódio, imagem, declaração que, ligadas metonimicamente na diagramação de primeira página ou nos planos das imagens televisivas, comprovem que o Enem é uma catástrofe sempre à beira da fraude.

                E assim é todo ano: imagens de estudantes chegando atrasados lutando contra portões, fotos da prova postadas na Internet, tentativas de fraude e print screens de tweets da debochada série “Aprendi No Enem” onde se ridiculariza conteúdos e enunciados de questões. A missão dos jornalistas é, portanto, coletar o máximo que puder índices, fragmentos, indícios potenciais que ajudem a configurar para a opinião pública um clima generalizado de fraude.

                Mas dessa vez uma contra-estratégia irônica interveio em pleno momento de coleta de material para a montagem das habituais bombas semióticas: um aluno da USP, Flávio de Queiroz Segundo, aluno de Ciências Contábeis, simulou ser mais um desses índices que os repórteres desesperadamente buscam para garantir seus empregos e carreiras no jornalismo atual da grande mídia. Apareceu em primeiras páginas sem sequer ser entrevistado e, quando foi, serviu a mais requintada matéria-prima para ansiosos repórteres: colocou a culpa pelo seu atraso no transporte, no trem, enfim, no poder público. O Jornal Folha de São Paulo foi ainda mais sinistro, ao aproximar sua foto a uma manchete sobre o crescimento de abstenções no exame.

E ainda para piorar, uma matéria do portal IG foi mais dramática e carregou no tom ao relatar que o candidato estava “de mãos trêmulas” ao descer das grades do portão da Universidade.

               
Portal iG: "ele estava de mãos trêmulas"
Pouco depois, o desmentido do aluno: “foi apenas uma brincadeira com alunos de uma faculdade rival. Pretendia divulgar o vídeo na Internet”. Espontaneamente, nas entrevistas com os repórteres ia falando o que dava na telha: “meus pais vão ficar bravos...”, “levei duas horas para chegar...” etc., atendendo a todo o script padrão de respostas que jornalistas esperam nesse momento.

                Ao saber da “barriga”, a reposta da grande mídia foi ironizar o estudante, falando que conseguira os seus “quinze minutos de fama”. Porém, nenhum veículo da grande mídia publicou o deboche e ironias do estudante da USP: “a imprensa é muito ingênua”, “nem dei entrevista e saí na primeira página”, “Eu disse que queria fazer ciências econômicas na UFSCar. Só que nem existe esse curso...”, sugerindo a ausência de apuração nas reportagens.

A bomba pós-moderna


Era 1995. No último bloco o telejornal Bom Dia Brasil da TV Globo apresentou uma notícia que o terapeuta internacionalmente famoso chamado Baba Wa Simba, queniano e filho de missionários norte-americanos, estava desembarcando em Londres. Nas imagens uma demonstração que ele fez em pleno saguão do aeroporto de um método que inventara para que homens e mulheres desenvolvessem “seu lado animal” e liberassem “instintos reprimidos”. Diversos pacientes de quatro no chão urrando, grunhindo e devorando um pedaço de carne crua que Bamba Simba jogava. Tudo diante de uma patuleia de jornalistas e fotógrafos, ávidos por sensacionalismo para preencher blocos de notícias diversas dos telejornais.
Baba Simba: a simulação ganhou
espaço nas mídias

Depois, o choque. Tudo era uma simulação na qual os repórteres prontamente caíram, sem sequer apurarem minimamente quem era “Baba Simba”. O terapeuta, na verdade, era o artista plástico Joey Skaags, famoso nos Estados Unidos pelas “pegadinhas” que apronta contra TV e jornais com um objetivo estético (ter a sua “arte” captada pela mídia) e outro ideológico-político: desmoralizar a própria mídia.

O episódio involuntariamente criado pelo estudante da USP se enquadra nessa estratégia de enfrentar a manipulação midiática com a simulação. Para entendermos a eficácia dessa bomba pós-moderna é necessário estabelecermos a diferença entre a manipulação e a simulação.

A manipulação, técnica de montagem da bomba semiótica, está no campo dos signos. Todo signo é uma representação de um referente – evento, objeto, ideia, imagem mental etc. Os signos podem tanto apresentar como mascarar a realidade, ou seja, manipular: dizer que algo não existe quando na verdade você o esconde.

A bomba semiótica é uma manipulação de um tipo especial: esconde mostrando, por meio de técnicas metonímicas de justaposição de imagens e áudios. Obriga repórteres a serem meros coletores de índices (sem apuração ou crítica) para se tornarem depois símbolos ideologicamente direcionados nas edições e montagens nas ilhas de edição e reuniões nos “aquários” das redações.

Pensando no diagrama do processo da comunicação, a manipulação ocorre no canal e na mensagem.

Ao contrário, a simulação ocorre na própria fonte, pois aparenta ser um evento autêntico, simula ser um índice que docilmente se oferece aos jornalistas para ser encaixado aos seus scripts e pautas pré-estabelecidas. Na simulação temos o inverso da manipulação, o blefe: dizer que possui algo, quando na verdade nada tem. Ao contrário da manipulação que está no campo dos signos, a simulação está no campo de influência dos simulacros no sentido atribuído pelo pensador francês Jean Baudrillard.

Blefe: a principal arma contra a mídia


Matéria-prima da
Bomba Pós-moderna:
simulações e simulacros
Essa é a eficiência da bomba pós-moderna da simulação, pressentida pelo artista plástico Joey Skaags. A mídia acredita no blefe, capta-o através de áudios e imagens na ansiedade de ter encontrado um índice para suas pautas, a matéria-prima de mais uma bomba semiótica. Porém, a simulação  implode no interior da bomba semiótica através do anúncio do blefe, expondo a manipulação e a mídia à desmoralização.

E por que uma “bomba pós-moderna?” A simulação é uma sensibilidade e, ao mesmo tempo, uma metodologia da nossa era do espetáculo e das imagens que muitos estudiosos qualificam como pós-moderna: a massificação e fixação dos clichês e estereótipos cria uma espécie de autoconsciência da sociedade em relação ao funcionamento e demandas midiáticas. Fraudes e boatos se sucedem através das mídias, sempre ávidas por notícias, seja por finalidade ideológica (fazer bombas semióticas) ou por necessidades mercadológicas (conteúdo para atrair publicidade).

Em 1962 o historiador Daniel Boorstin no livro The Image – A guide of pseudoevents in America, apresentou essa contradição interna na expansão dos meios de comunicação: o crescimento exponencial da necessidade por notícias – a demanda por notícias é maior do que a capacidade do mundo produzir fatos novos para as mídias. Para suprir essa “deficiência” do mundo, boatos, mentiras e fraudes ganham espaço midiático.

O jornalista norte-americano Chris Berdik classifica cinco tipos de fraudes das fontes midiáticas (veja "Duped! When Journalists Fall for Fake News"): primeiro, eventos criados por pessoas em busca de fama e publicidade; segundo, eventos, boatos ou falsos comunicados à imprensa criados por empresários ou CEOs para manipular mercados de ações; terceiro, citações ou personagens falsos criados por jornalistas para “apimentar” as notícias e alavancar suas carreiras; quarto, brincadeiras de jornalistas que normalmente não se destinam a serem levadas à sério.

E finalmente o quinto: simulações encenadas por não-jornalistas para satirizar a imprensa, no qual se enquadram Joey Skaggs e o gozador estudante da USP.

A simulação armada pelo estudante Flávio de Queiroz abre uma nova perspectiva na guerrilha semiológica atual: combater a manipulação com a simulação. Como fizeram um grupo de manifestantes em Lisboa em outubro: para furar o bloqueio midiático, através de redes sociais fizeram uma simulação de uma manifestação supostamente a favor da política de austeridade imposto pela “Troika” (Banco Central Europeu, FMI e Comissão Européia) à Portugal. Os jornalistas foram na onda e, depois, descobriram que se tratava de uma estratégia irônica de atrair a atenção dos portugueses para o verdadeiro manifesto: “Que se lixe a Troika!”.

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