sábado, novembro 23, 2013

Hollywood brinca de Big Brother no filme "Jogos Vorazes"


Depois de uma safra de filmes de ficção científica que vai de “Cidade das Sombras”, passando por “Matrix” até chegar a “Distrito 9”, assistir ao filme “Jogos Vorazes” (The Hunger Games, 2012) é um retrocesso. Seu mundo distópico inspirado no imaginário orwelliano do Big Brother do livro clássico “1984” daria uma aparência supostamente “contestadora” e "crítica" a um produto que tenta reproduzir o sucesso de franquias como “Crepúsculo” e “Harry Potter” com um produto "diferenciado". Porém, a crítica cinematográfica parece desatualizada: o sistema que banca o discurso “contestador” de filmes como esse há muito superou o Big Brother de Orwell e é capaz de ironicamente brincar com seus mundos distópicos e fazer o reality show rir de si mesmo.

Adaptado do livro voltado ao público juvenil The Hunger Games de Suzanne Collins, o filme Jogos Vorazes foi saudado pela crítica como um produto diferenciado dentro da estratégia hollywoodiana de produção de franquias como Crepúsculo ou Harry Potter. Ao lado dos indefectíveis amores impossíveis e adolescentes incompreendidos e melancólicos com os tradicionais problemas de relacionamentos familiares, Jogos Vorazes teria um conteúdo “mais contestador”, por ser inspirado em obras distópicas como 1984 e Admirável Mundo Novo com discussões sobre o autoritarismo, exploração de classes, culto a celebridades, poder, obediência e controle.

Como explicar que um blockbuster hollywoodiano tenha um “conteúdo contestador”, ainda mais em se tratando de obras para um público juvenil cujos filmes se caracterizam pela aplicação rígida das regras do gênero? Parece que a crítica cinematográfica anda desatualizada em relação à indústria de entretenimento contemporânea: há algum tempo o modelo distópico de Orwell e Huxley se tornou tema dileto de Hollywood, pelo fato de que se tornou um clichê em filmes do gênero ficção-científica pretensamente contestadores. Principalmente, porque com a nova configuração do Estado e do Poder criada pela Globalização, esse modelo orwelliano de controle social e dominação ficou ultrapassado.


Mas antes de tratarmos dessa questão que é central numa crítica a Jogos Vorazes, vamos fazer uma breve sinopse da narrativa do filme.

O filme


Um Estado ditatorial comandado por uma elite ociosa e cruel domina uma sociedade pós- apocalíptica a partir de uma capital central que subjuga 12 distritos periféricos. São distritos que oferecem força de trabalho farta e barata, cada um com a sua especialidade (mineração, metalurgia, alimentos etc.), todos servindo à elite que habita a Capital.

Depois de uma tentativa de revolução, os distritos foram derrotados e submetidos a um sistema de dominação onde a Capital exige um “tributo”: cada distrito oferecerá através de um sorteio um casal, jovens entre 12 e 18 anos, para competir em um reality show transmitido ao vivo pela TV chamado The Hunger Games. Todos lutando até a morte em uma grande região florestal que faz lembrar o gigantesco estúdio do filme Show de Truman onde todas as variáveis são controladas computacionalmente pela produção do programa. O vencedor garante para o seu distrito regalias e bônus em suprimentos para o próximo ano.

Como afirma o presidente da Capital (Donald Sutherland), um sistema ideal de dominação onde a esperança substitui o medo. E para a ociosa elite da Capital, um show de deleite sádico.

O filme acompanhará a trajetória nos jogos de um casal do distrito 12, Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence) e Peeta Mellark (Josh Hutcherson).

A superação do modelo orwelliano


Depois de filmes com o tema pós-apocalipse como Matrix, Cidade das Sombras, A Estrada ou de Show de Truman onde o gênero reality show foi explorado aos limites metafísicos e teológicos, assistir ao filme Jogos Vorazes é uma experiência regressiva: soa como algo antigo e ultrapassado.

O modelo de Estado orwelliano como um gigantesco Big Brother tornou-se tão antigo frente à nova ordem mundial da Globalização, que se tornou tema dileto para Hollywood parecer “contestador”, para se confrontar à crítica comum feita a ela de produzir filmes alienantes e conformistas.

De Cidade das Sombras, passando por Matrix até chegar ao recente Distrito 9, temos filmes inovadores ao apresentar formas cruéis de dominação não mais regidas pelo modelo orwelliano de Estados opressivos guiados por uma elite que explora a força de trabalho de humanos inferiorizados. Esse modelo estaria inserido no paradigma do desumano, discussão ainda dentro campo da discussão do Humanismo, da Ética e da Moral. Torturas, humilhações e assassinatos são impingidos por máquina virtuais, produtores de TV indiferentes ou elites que exploram a força de trabalho ou riquezas. É o campo da luta de classes.

Ao contrário, filmes como Matrix ou Distrito 9 (de forma alegórica) mostram o inumano: seres humanos que nem mais para serem explorados ou dominados servem. São considerados redundantes e, portanto, devem ser confinados, excluídos ou eliminados. No máximo, como em Matrix, servem como pilha para fornecer energia às máquinas dominantes. O Estado já não mais existe (foi privatizado ou reduzido à função mínima de polícia) e corporações assumem o papel de excluir ou eliminar a população “redundante”, seja por meio do genocídio através de jogos de caça, como no filme de ficção científica mexicano 2033 (2009) ou reduzir o ser humano a uma atração de entretenimento como em Show de Truman.

Esses filmes estariam sintonizados com aquilo que Zygmunt Bauman descreve como “baixas colaterais” trazidas pelo processo de Globalização econômica: um sistema econômico que não cria mais desigualdades, crescimento dos abismos das classes ou pobreza como nos sistema econômicos clássicos marcados pela exploração da força de trabalho. Simplesmente, o pleno desenvolvimento econômico trouxe a exclusão ou “baixas colaterais”: lixo tóxico, tecnológico e refugos humanos – velhos, estrangeiros, imigrantes etc., todos sem possibilidade de serem integrados. Assim como o lixo informático (baterias, placas etc.) são enterrados em contêineres em algum país africano, da mesma forma uma massa de “redundantes” são empurrados para periferias, guetos ou caçados ou barrados pela polícia de imigração, sem possibilidades de integração. Para o novo sistema global nem são considerados “exército industrial de reserva”, mas “redundantes” e “superpopulação” - veja BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas, Jorge Zahar Editores, 2005.

Assistir ao filme Jogos Vorazes faz parecer que Hollywood descobriu a luta de classes e se tornou “contestadora”. O filme apresenta uma crítica tão ingênua quanto o público ao qual se destina. É um discurso crítico que poderíamos chamar de complacente, já que deliberadamente se baseia em um modelo distópico de dominação já antigo e superado por uma forma mais cruel trazida pela Globalização: a transformação de humanos em inumanos, sem chance de integração, nem mesmo para serem objetos de exploração, refugos que tornam problema de controle populacional ou de saúde pública pandêmica.

O inumano no gênero reality show


Nem mesmo a “denúncia” que o filme apresenta sobre a manipulação nos bastidores de um reality show (a manipulação das variáveis feitas pela produção, a roteirização do programa que elimina a sua suposta natureza reality, a deliberada elaboração de papeis ou scripts para cada competidor etc.) pode ser levada a sério como “contestadora”. Desde a série da TV inglesa Dead Set (2008), uma sátira crítica aos reality shows ironicamente produzida pela empresa holandesa Endemol (cujo maior produto é o reality Big Brother), sabemos que esse gênero aprendeu a rir de si mesmo – sobre isso, veja links abaixo.

Criticar as supostas manipulações e conchavos de bastidores (como aborda o filme Jogos Vorazes) é supérfluo e até os próprios programas desse gênero já apresentam isso em seus making of e na imprensa especializadas em fofocas.

Tanto isso é verdade que ironicamente a maior franquia de programas do gênero é o Big Brother, numa referência irônica ao imaginário orwelliano do sistema autoritário de vigilância. Sintoma de que a distopia de Orwell há muito já perdeu o seu pode crítico e de contestação: a evolução político-econômica e tecnológica contemporânea já há muito superou o Estado Big Brother.

Uma verdadeira crítica ao gênero reality show teria que sair do campo do escândalo moral para aprofundar a sua natureza inumana, assim como o filme Show de Truman fez: o protagonista era criança adotada de uma mãe que o rejeitou, e toda a sua vida foi simulada – inclusive seus traumas e psiquismo, elementos que supostamente nos tornariam humanos. A essência do reality show não é a crueldade sádica ou o voyeurismo desavergonhado dos espectadores: mas a espetacularização da exclusão, a naturalização de um sistema que exclui estrangeiros, velhos e derrotados em geral. Tão derrotados, que nem mais para serem explorados servem, a não ser para oferecerem-se como espetáculo da sua própria eliminação.

Em síntese, Jogos Vorazes é o último truque de um discurso “contestador” patrocinado pelo próprio sistema que sabe que já há muito superou as imagens distópicas e George Orwell e Adous Huxley.

Ficha Técnica

  • Título: Jogos Vorazes (The Hunger Games)
  • Diretor: Gary Ross
  • Roteiro: Gary Ross baseado no livro homônimo de Suzanne Collins
  • Elenco: Stanley Tucci, Wes Bentley, Jennifer Lawrence, Josh Hutcherson, Donald Sutherland
  • Produção: Lionsgate
  • Distribuição: Paris Filmes
  • Ano: 2012
  • País: EUA

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