terça-feira, dezembro 17, 2013

"A Classe Dominante": o mais estranho filme de Peter O'Toole


O Deus do Velho Testamento (o “messias elétrico”) faz um duelo surreal com o Deus do Novo Testamento; um sádico psiquiatra alemão faz experiências com “ratos esquizofrênicos”; uma família de aristocratas trama a internação de um conde esquizofrênico para conseguirem ficar com o seu título e fortuna. Com a recente morte aos 81 anos do grande ator inglês Peter O’Toole, não poderíamos deixar de reverenciar o filme mais estranho da sua carreira: “A Classe Dominante” (The Ruling Class, 1972). Uma comédia de humor negro repleta de ultraje moral e religioso que após ser restaurada e relançada em DVD, teve recuperados os 20 minutos cortados no lançamento comercial da época. Um filme profético ao mostrar que mesmo após todos os movimentos libertários da época, a aristocracia não morreu: persiste através de uma classe dominante que opta por um deus vingativo e intolerante.

Peter O’Toole para sempre será lembrado pelo filme Lawrence das Arábias. Mas temos também que pagar tributo ao mais estranho filme da sua carreira: A Classe Dominante (The Ruling Class, 1972) que desde o seu lançamento passou a ser seguido por um grupo restrito de fãs como um filme cult. Ainda mais que a versão para o lançamento nos EUA teve uma redução de 20 minutos para tornar o filme mais rentável, poupando ao público daquele país de algumas cenas bizarras e de extremo humor negro que chega, algumas vezes, as raias da violência e ultraje religioso. Pois o filme foi restaurado no relançamento em DVD pela  The Criterion Collection em 2001 e retornou às suas quase duas horas e meia da duração original.

Embora o filme seja um mix de sátira, farsa, musical, drama shakespeariano e muito humor negro, a narrativa é uma descida sombria na loucura, caos e simbolismos religiosos nas tramas envolvendo cobiça e poder no seio de uma elite aristocrática apodrecida, mas que tenta manter sua fleugma e pompa: um conde esquizofrênico, um bispo anglicano sem fé, um sádico psiquiatra alemão, um mordomo comunista que vive em um constante estado de embriaguez, e toda uma galeria de personagens inesquecíveis.


O filme conta a história de Jack (Peter O’Toole) o 14o Conde de Gurney. Ele herda o título depois do ao mesmo tempo engraçado e chocante prólogo do filme, em que o seu patriótico pai, após voltar para casa vindo de uma reunião na St. George Society, enforca-se acidentalmente em um ritual fetichista sexual privado em seu quarto. Jack chega tarde demais para o funeral, mas a sua aparição causa espanto e estardalhaço: Jack chega confiante para buscar seu título porque ele é nada mais do que Jesus Cristo e o próprio Deus. Pelo menos é isso que Jack acredita e anuncia para todos, vestindo roupas excêntricas (ora de monge, ora de dândi) e colocando uma enorme cruz na parede do saguão da mansão. Jack sobe na cruz e ali “descansa” todas as noites, simulando para os olhares atônitos de todos a imagem do Cristo crucificado.

O desempenho de O’Toole no papel é propositalmente teatral e exagerado, porém com o toque inglês: um ator americano certamente tentaria performar Jesus com os maneirismos emprestados dos pregadores da TV. Mas O’Toole interpreta um Jesus com muito improviso, narcisismo e boas maneiras – ele foi indicado ao Oscar de melhor ator naquele ano por esse filme, porém Marlon Brando levou a estatueta com O Poderoso Chefão.

A família está chocada com o esquizofrênico Jack e arma uma artimanha para afastá-lo do título e da fortuna: fazê-lo casar, ter um filho e, depois, mandar Jack para um hospício, enquanto a família se tornaria o tutor do novo 14o Conde, colocando a mão nas propriedades e dinheiro. Mas, o que principalmente incomoda a família é que Jack quer levar as ideias de Jesus às últimas consequências: para ele, todos devem viver somente do amor e esquecer as propriedades e títulos porque todos os homens são iguais... A família passa a considerá-lo uma ameaça bolchevique no meio da aristocracia inglesa.

O deus gnóstico de Jack


E por que Jack acha que é Deus? Ele descreve sua impagável epifania: “Porque toda vez em que rezava para Ele, eu percebia que estava falando comigo mesmo. Logo, eu sou Deus!” Jack fala isso fazendo referências ao papa do LSD, o psiquiatra Thimoty Leary e recomendando a todos que se amem e façam sexo. Esse é o núcleo profundamente gnóstico e libertário no Jesus/Deus imaginado por Jack: Deus está dentro de nós mesmos.

Ao longo da descida na loucura e caos, percebemos que o problema não é a insanidade de Jack – na verdade, todos ao redor daquela família aristocrática não batem bem! O problema é qual Deus ele imagina que é: o Deus do Novo Testamento trazido por Jesus, capaz de amar, perdoar e ter compaixão. Ao contrário, o Deus adorado por todos ao redor (a começar pelo apoplético e inseguro bispo que participa da conspiração urdida pela família) é o do Velho Testamento: o Jeová, duro, intolerante e vingativo.

Por isso o tratamento de choque imaginado pelo um sádico psiquiatra alemão, Dr. Herder – ele faz experiências com “ratos esquizofrênicos” no laboratório para que os seus comportamentos sejam comandados por botões de uma estranha máquina – é fazer um encontro de Jack com o “messias elétrico” (um paciente do psiquiatra que também pensa que é Deus, mas o Deus certo para eles – o do Velho Testamento). O duelo surreal é um dos pontos altos do filme, onde “Jeová” chama Jack/Jesus de “mexeriqueiro sentimental” e, através de choques disparados de suas mãos galvanizadas pela máquina do psiquiatra, derrota Jack ao fazê-lo perceber que o amor não comanda mais o mundo.

A “cura” de Jack


Depois dessa sequência o filme entra na segunda parte, cada vez mais sombria e violenta: Jack é “curado” e torna-se cada vez mais xenofóbico, homofóbico, patriótico e intolerante, além de  acreditar que todo o problema da Inglaterra reside na falta de punições exemplares para que o medo se sobreponha ao amor.

O filme A Classe Dominante é estranho e até difícil para os espectadores por dois motivos: primeiro, que ele parece fora do seu tempo – quem se importa com os símbolos da velha Inglaterra (aristocracia, Igreja Anglicana, caça à raposa, Câmara dos Lordes) depois dos loucos anos da década de 1960 de rock e amor livre?

Parece que com isso o filme quer apresentar a seguinte mensagem: não pensem que a ruína da aristocracia trouxe a renovação. Rei morto, rei posto: a brutalidade da classe dominante persiste através de princípios morais e religiosos que mantém a hierarquia da sociedade.

E segundo, o filme é desavergonhadamente teatral. Depois de décadas de atores em interpretações realistas como na Nouvelle Vague francesa ou a Actor’s Studio de Marlon Brando e James Dean nos EUA, A Classe Dominante é um retorno à tradição da década de 40 do cinema de estúdio inglês, trazendo de volta alegoria, fantasia e fantasmagoria – é marcante a cena em que a Câmera dos Lordes é mostrada como uma câmera de horrores, cheia de zumbis e esqueletos enrolados em teias de aranha, enquanto o “curado” Jack assume o seu lugar como Lorde ao discursar sobre a necessidade da mão pesada da classe dominante para manter a coesão pelo medo e o terror.

Constantemente sequências de pesado humor negro repentinamente são quebradas por sequências musicais, numa constante autorreferência irônica. É o que muitos críticos chamam de gênero camp, certamente ecos do grupo de humor inglês Monty Python, exibido na TV inglesa naquela época.

O fascinante é que o filme também reflete as novas visões sobre a perversão e a loucura que estava sendo debatidas naquele momento. Na França, a obra de Marquês de Sade estava sendo culturalmente reabilitada, enquanto na Grã-Bretanha, sob a influência de um movimento de psiquiatria “existencial”, a loucura estava cada vez mais sendo percebida como uma construção social. Os relatos do movimento da chamada Antipsiquiatria inglesa do final da década de 1960 de David Cooper e R. D. Laing de que a esquizofrenia era essencialmente uma indução familiar – uma resposta lógica do indivíduo a pressões irracionais – foram argumentos contra os defensores das terapias de eletrochoque e a fármaco dependência. Esse é o pano de fundo da “loucura” e “cura” de Jack e o confronto surreal com o “messias elétrico”.

Ficha Técnica

  • Título: A Classe Dominante
  • Diretor: Peter Medak
  • Elenco: Peter O’Toole, Alastair Sim, Arthur Lowe, Carolyn Seymour, Coral Browne
  • Produção: Keep Films
  • Distribuição: The Criterion Collection
  • Ano: 1972
  • País: Reino Unido

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