segunda-feira, março 10, 2014

A nostálgica bomba semiótica do retrofascismo

Depois das manifestações de rua onde foram produzidas bombas semióticas pontuais (fusca incendiando, coreografia desafiadora dos black blocs etc.) acompanhamos a mídia repercutir imagens de racismo, linchamentos, intolerância e crimes cometidos por menores principalmente por meio de vídeos amadores produzidos por telefones celulares. Todas as imagens seguidas de comentários alarmistas em telejornais que incitam soluções ainda mais radicais. Sob a aparência neutra de informação, as imagens a longo prazo suscitam uma estranha nostalgia que se espalha na grande mídia e redes sociais. “Marcha da Família”, depreciação da política e intervenção militar ou o revival de alucinadas conspirações comunistas cubanas e Guerra Fria são sintomas de um complexo psíquico mais profundo e preocupante: o protofascismo colocado em movimento por meio do mecanismo semiótico do “retrofascismo” – nostalgia pós-moderna + protofascismo.
·           O jogador Arouca, disputando uma partida em Mogi Mirim/SP pelo time do Santos, assim como o árbitro Márcio Chagas em jogo pelo campeonato gaúcho foram alvos de insultos racistas por parte de torcedores;
·         Após o episódio de defesa do ato de linchamento contra um garoto negro que havia cometido furtos em um bairro no Rio de Janeiro, a apresentadora de um telejornal do canal SBT Rachel Scherazade sai nas redes sociais apoiando a convocação da “Marcha da Família com Deus Pela Liberdade” para o dia 22 que defende, entre outras coisas, a destituição da presidenta Dilma e do vice Michel Temer, dissolução do Congresso Nacional e intervenção militar, ressuscitando antigos fantasmas como conspirações cubanas e comunistas;

·         O apresentador do programa Brasil Urgente da Band, José Luiz Datena, vem quase que diariamente, todo final de tarde, justificando os casos de linchamentos noticiados alegando que o brasileiro está “de saco cheio” e de que a Justiça “só defende os direitos humanos dos criminosos”;
·         Nas últimas semanas os telejornais vêm dando especial destaque a vídeos produzidos por celulares de anônimos mostrando tentativas ou casos de linchamento e espancamentos;
·         Nos últimos meses esses mesmos telejornais também vêm destacando casos de crimes cometidos por menores ou casos de quadrilhas onde o texto jornalístico sempre destaca o número de menores. Quase sempre são destacadas opiniões de “especialistas” que defendem a diminuição da idade penal;
·         A grande mídia dá destaque à suposta intervenção da Rússia na crise política da Ucrânia como uma espécie de revival da Guerra Fria entre aquele país e os EUA. Destaques para a expressão “não mexam com o grande urso!”.
"Marcha da Família" em 1964 - ícone
conservador do Golpe Militar
Como interpretar esses eventos tão sincronizados e recorrentes? Após as grandes manifestações de rua que serviram de matéria-prima para a construção de uma variedade de bombas semióticas que conseguiram dar uma turbinada à atmosfera de caos e descontrole nas ruas das grandes cidades, agora temos uma mudança de tática com uma ação semiótica não mais pontual (o fusca queimado, os ônibus incendiados, a coreografia desafiadora dos black blocs etc.), mas agora cotidiana e de efeito acumulativo de longo prazo: a bomba semiótica retrofascista.

Observando os episódios relacionados acima podemos perceber que os discursos midiáticos estão articulados em dois planos nítidos: o plano retro (uma espécie de ressurreição de antigos ícones e símbolos como a Guerra Fria, a ameaça do comunismo cubano, imagens iconicamente históricas como a “Marcha Pela Família” e dos esquadrões da morte pré-golpe militar brasileiro de 1964) e o plano protofascista (a atmosfera psicológica de linchamento – real e midiático – intolerância, revanche, vingança e violência).

Pensando por um ponto de vista semiótico, esse plano retro utiliza a nostalgia, onda de revival ou simplesmente clichês icônicos e históricos como suporte significante (ou se quiser, uma expressão material) para uma atmosfera difusa e contínua de percepções e sentimentos. Na verdade, esse plano retro parece muito mais com racionalizações no sentido freudiano: álibis ou pretextos para que percepções e sentimentos protofascistas latentes na sociedade possam se expressar e, o que é pior, serem direcionadas politicamente.

 Para que possamos desmontar mais essa bomba semiótica, temos que procurar entender o funcionamento de cada um desses planos: por que a nostalgia retro? Qual a explicação do desenvolvimento desse imaginário protofascista, imageticamente repercutido pela grande mídia e constatado na prática diária das redes sociais?

A nostalgia pós-moderna


Os jovens são nostálgicos. Mas é uma nostalgia paradoxal: saudades de épocas que não foram vividas, diferente da nostalgia tradicional.

Nostalgia pastiche pós-moderna
Jovens montam as ambiências de suas novas residências com objetos e decorações que remetem aos anos 60 e 70; os anos 80 retornam com “baladas” especializadas nessa década (“trash anos 80”, Projeto Autobahn etc.), feiras de rua onde são comercializados objetos dessa época (livros, jogos, brinquedos) para grupos de jovens estranhamente nostálgicos por uma época que não vivenciaram. Bares temáticos recriam para jovens ambiência e atmosferas de épocas e lugares distantes no tempo e no espaço (“botecos chics” que revivem os botecos populares dos anos 50 e 60, bares frequentados por tribos de jovens rockers em suas jaquetas pretas de couro, topetes à Elvis em uma ambiência estudadamente cenográfica com junkerboxes, pisos quadriculados, e posters com sucessos cinematográficos da época).

O jovem atual é conservador não apenas esteticamente: essa relação nostálgica com a História tende a idealizar o passado como épocas que foram melhores. Essa percepção se fundamenta nas próprias referências midiáticas ao passado, para começar cinematográficas e, depois, televisivas pelas retrospectivas superficiais.

Golpe militar de 1964, Guerra Fria e comunistas se fundem num amálgama de política, Woodstock, Beatles com imagens de estetizadas de Chê Guevara em baús de motoqueiros na atualidade e uma percepção de que no passado os jovens eram mais “atuantes” e que hoje são “alienados” pelo carnaval e futebol.

Protofascismo


 Em seus famosos estudos sobre a personalidade autoritária nos anos 1940, Theodor Adorno elaborou a chamada "Escala F" resultando na fórmula clássica sobre o caráter fascista: “quem é duro consigo mesmo, também é com os demais”. Essa dureza individual viria como estratégia psíquica de sobrevivência em tempos difíceis (hiperinflação, pobreza, falta de perspectiva, humilhação etc.) resultando em ressentimento, vingança e ódio descontado no socialmente mais fraco ou no bode expiatório oferecido no momento.

Retrofascismo: nostalgia pós-moderna
+ potofascismo
Na sua forma clássica, após a Primeira Guerra Mundial, o fascismo surgiu como uma reação à condição da depressão econômica generalizada na Europa combinada com o senso de humilhação nacional. Nada mais foi do que a tradução política desse mecanismo psíquico difuso e regressivo de autoconservação.

Esse psiquismo protofascista (de “proto” – aquilo que é primitivo, incipiente) retorna na atualidade através de um novo endurecimento das condições da vida cotidiana, dessa vez pelas novas formas de organização tecnológica do trabalho decorrentes da alteração das estratégias de acumulação do capital:

(a) crise da ideologia meritocrática das classes médias: a precarização de um trabalho mal pago e insegurança profissional leva àquilo que o professor de Sociologia do Trabalho da Unicamp Ricardo Antunes chama de “vida urbana destroçada”. Frustrada, toda uma nova geração descobre que estudar para crescer na vida se tornou um mito após passar anos em escolas privadas caras e de péssima qualidade – sobre isso clique aqui. Essas condições criam sentimentos de traição, humilhação e ressentimento prontos para se converter em ódio contra os “preguiçosos”, “encostados”, sejam eles pobres, imigrantes ou todos aqueles que recebem benefícios sociais do Estado.

(b) A precarização do trabalho e a “vida urbana destroçada” (insegurança e paranoia do cotidiano da vida urbana) conduzem a uma estratégia desesperada de racionalização da vida pelo apego a gadgets tecnológicos como aplicativos, dispositivos móveis, redes sociais (que em outra oportunidade chamamos de “bomba tecnológica” - clique aqui para ler sobre esse conceito) pela sedução de liberdade e organização prometida pela virtualidade do ciberespaço. A “inteligência coletiva” que tais ambientes digitais proporcionariam e que supostamente resultaria em liberdade e interatividade reverte-se no contrário: tais ambientes tornam-se muito mais solipsistas e narcísicos ao criar um meio circundante plasticamente moldável aos desejos do usuário reforçando uma autoimagem grandiosa.

Aplicativos e gadgets tecnológicos: ambientes
solipsistas que alimentam o protofascismo
“Protegido” em um ambiente simulado, fecha-se à experiência da alteridade e da convivência com o outro. Esse é um importante pressuposto psíquico que alimenta o protofascismo.

(c) O já fartamente documentado apoio logístico e financeiro dos EUA a grupos neonazistas na Ucrânia que defendem pureza étnica e a derrubada de um governo eleito, alimenta o imaginário protofascista de depreciação da política e estimula as soluções de força como saída para crises políticas. Principalmente quando a mídia, por exemplo, coloca as notícias das manifestações de rua no Brasil no mesmo bloco de notícias das crises na Ucrânia e Síria, atiçando a analogia entre situações totalmente diversas.

Retrofascismo


O que espanta nessa bomba semiótica é que a esperança em relação ao futuro só pode existir retornando ao passado. Embora o psiquismo protofascista seja antigo e ahistórico, ele sempre parece retornar através de diferentes significantes ou suportes. Na atualidade, o novo significante para esse psiquismo está em uma nostalgia cuja origem é midiática pela idealização do passado seja em filmes, novelas ou retrospectivas jornalísticas.

O fascismo em sua forma clássica já apelava para essa nostalgia do “retorno às origens” de um passado idílico: retorno a supostos valores tradicionais da nação corrompidos pelo capitalismo financeiro internacional, retorno aos valores da vida agrária, dos laços familiares tradicionais e da pureza do corpo e do caráter por meio da prescrição de hábitos “saudáveis” (antitabagismo, higiene, assepsia e monitoramento médico – médicos da SS no caso da Alemanha - da população). 


A diferença é que a nostalgia atual que dá suporte ao protofascismo é muito mais midiatizada, pastiche e pop, sem a aura mítica e ritual da mitologia nazi-fascista clássica.

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