domingo, abril 13, 2014

Como fazer uma notícia para um telejornal

Como o dramaturgo do Teatro do Absurdo Eugène Ionesco pode explicar o suposto escândalo da questão de uma prova de Filosofia de uma escola pública que citava a música da Valesca Popozuda? Não só explica como também fornece um método para a criação de notícias em telejornais: a estratégia de descontextualização. Mais uma bomba semiótica onde a fabricação da notícia é ordenada pela organização de fragmentos díspares em função de uma lógica que parece fazer os pedaços convergir em direção a um desenlace que já se tem em vista. Como nos romances, tudo parece ser o presságio de um inevitável abismo para onde o País caminharia. Uma bomba semiótica cujo efeito é turbinado tanto pelo preconceito de classe contra o funk  quanto pelo jornalismo metonímico do “Não Vai Ter Copa”.

Como recortar um elemento do real para apresentá-lo como notícia em um telejornal? Na peça A Cantora Lírica Careca (La Cantatrice Chauve, 1950) Eugène Ionesco, dramaturgo do Teatro do Absurdo – 1909 a 1994) nos fornece um método bem interessante que é seguido à risca na atualidade para a montagem de bombas semióticas. Em primeiro lugar, devemos declarar como “extraordinário” um conjunto de elementos qualquer:

Sra. Smith ao casal Martin: vocês que viajam bastante devem ter muita coisa para contar.
O Sr. Martin para a sua mulher: Diga querida, o que você viu hoje?

Sra. Martin: Não vale a pena, não acreditarão em mim.

Sr. Smith: Não duvidaremos da sua boa-fé.

Sra. Smith: Você os ofenderia se o fizesse.

Sra. Martin (com graça): Pois bem, assisti hoje a uma coisa extraordinária, inacreditável.

Sr. Martin: Diga logo, querida.

Sr. Smith: Ah! Vamos nos divertir.
Sra. Smith: Finalmente!
Estamos nas manchetes, ou tecnicamente naquilo que se chama “escalada” em um telejornal. É preciso que o espectador tenha curiosidade por algo que foi pinçado da realidade seja uma novidade.
Sra. Martin: Muito bem, ao ir ao mercado para comprar verduras, que estão cada vez mais caras...
Sra. Smith: Onde é que vamos parar?

Sr. Smith: Não devemos interromper, querida levada!

Sra. Smith: Via na rua, ao lado de um café, um senhor convenientemente vestido, com cerca de 50 anos, talvez nem isso, que...

Sr. Smith: O que, quem?

Sra. Smith: O que, quem?

Sr, Smith: Não devemos interromper, querida. É desagradável.

Sra. Smith: Pois bem, vocês dirão que inventei, mas ele pôs o joelho no chão e se agachou...
Sr. e Sra. Smith: Ohh!
Sra. Martin: Sim, agachado!
Sr. Smith: Impossível!
Sra. Martin: Sim, agachado. Aproximei-me dele para ver o que ele fazia.
A fabricação da notícia é ordenada por essa organização de fragmentos díspares em função de uma lógica que parece fazer os pedaços convergir em direção a um desenlace que já se tem em vista. Como nos romances, tudo aprece ser o presságio do inevitável.
Sr. Smith: E então?
Sra. Martin: Ele amarrava os cordões do seu sapato que tinha soltado

Os outros três: Fantástico!

Sr. Smith: Se não fosse a senhora, não acreditaria.

Sr. Martin: Por que não? Veem-se coisas ainda mais extraordinárias quando se anda por aí. Eu mesmo vi sentado em um metrô um senhor que lia tranquilamente seu jornal!

Sr. Smith: Que original! Talvez fosse o mesmo.
Substitua os personagens dessa peça de Ionesco pelos apresentadores e telespectadores de telejornais e o homem que “estranhamente” se agachava na rua pela falsa polêmica da questão da prova de Filosofia que fazia referência a Valesca Popozuda, e teremos um caso exemplar de fabricação de mais uma bomba semiótica.

O fato descontextualizado


A primeira vista o trabalho de um jornalista pode parecer simples: ver coisas que se passam e relatá-las. A princípio, essas coisas que passam seriam acontecimentos que rompem a norma, destoam em relação à regra e, por isso, chocam – um cachorro que morde um homem não é notícia, mas se um homem morder um cachorro... Mas desde que o Jornalismo transformou-se em uma indústria de notícias, esse trabalho simples tornou-se complexo: o mundo não produz um número de acontecimentos “chocantes” que atenda às necessidades diárias de produtividade da Imprensa. Então, é necessário tornar chocante qualquer acontecimento, algo parecido com o método proposto por Ionesco.

Mas, quando, além disso, a Imprensa e a grande mídia assumem o papel de oposição política, temos então a necessidade de produzir acontecimentos “chocantes” não mais de forma genérica como “sensacionalismo” (notícias chocantes para vender jornais e conquistar audiências), mas agora com uma intencionalidade: descontextualizar acontecimentos. Tal como o absurdo diálogo acima proposto por Ionesco, a grande mídia deve retirar fatos da sua banalidade cotidiana para em seguida, descontextualizado, o fato é elevado à condição de acontecimento.

Um professor de Filosofia, na sua atividade cotidiana de ministrar o conteúdo programático da disciplina em uma escola pública do Distrito Federal, lança mão de uma estratégia pedagógica para discutir com os alunos os valores da sociedade e o papel da imprensa – como a mídia apenas vê pontos negativos e não consegue enxergar os pontos positivos. E o funk como um exemplo. Correspondendo ao que foi discutido em aula, o professor formula uma questão ao mesmo tempo irônica é séria citando uma música da Valesca Popuzada.

Professor Antonio Kubitschek versus
Valesca Popozuda: uma estretégia didática
rotineira elevada à condição de escândalo
A imagem nas redes sociais da questão da prova (correspondendo ao homem convenientemente vestido que se agacha na rua, de Ionesco) e a citação da música “Beijinho no Ombro” (o homem estava amarrando os cordões do sapato) são retirados do contexto dos instrumentos didáticos cotidianos utilizados por um professor para discutir conteúdos (não só aquele homem, mas todos os homens convenientemente vestidos amarram seus cadarços na rua).

Eu mesmo na minha experiência como professor, já utilizei letras de músicas de Talking Heads e Madonna a Latino e o funk Dança da Motinha para contextualizar certos temas e debates. Imagine se uma dessas provas fosse parar em redes sociais...

Turbinando os efeitos da descontextualização


O objetivo dessa bomba semiótica de descontextualização é evidente: ao lado de outras notícias e produtos como o livro Diário de Classe (sobre as denúncias dos problemas de uma escola pública), o propósito é o de levantar evidências não só da crise do ensino público mas dos valores da sociedade brasileira exemplificado na sugestão de uma suposta má formação de um professor de rede pública. Reparem no vídeo abaixo do Telejornal Hoje da TV Globo, o rosto grave de Sandra Annenberg enquanto baixam os créditos finais, como se estivesse gesticulando indignada com a matéria a pouco exibida...

Sandra Annenberg:  feições graves e
indignação estudada após a notícia
Mas o efeito de tornar chocante um fato pedagogicamente banal através da estratégia de descontextualização somente é possível com o cruzamento de alguns pressupostos latentes, aumentando a letalidade dessa bomba semiótica:

(a) O estereótipo criado pela grande mídia de que o funk é intrinsecamente mau, criminógeno e perigoso para as pessoas de bem. E as casas noturnas funkeiras como lugares insalubres onde ocorrem crimes e obscenidades – como se em raves e baladas de classes médias e altas não pudessem ocorrer casos idênticos.

(b) Como na maioria dos telejornais, Internet e redes sociais (inimigos da mídia tradicional) são sempre associados a casos exemplares negativos como golpes, trapaças, viciosidade e deterioração cultural. A fotografia da prova com a questão sobre a Valesca Popozuda, apenas comprovaria esse pressuposto que faz recordar das denúncias de publicações de gabaritos de provas do Enade e Enem nas redes sociais.

(c) Seguindo a estratégia do jornalismo metonímico (sobre esse conceito clique aqui), essa suposta evidência da deterioração do ensino público que representaria a questão sobre a Valesca Popozuda, foi estrategicamente colocada antes ou depois das notícias sobre a Copa do Mundo no Brasil ou dos exames internacionais de educação onde o País ocupou posições classificatórias modestas. Essa operação semiótica cria um imediato efeito de contaminação, turbinando essa estratégia de descontextualização e tornando a notícia uma evidência do suposto abismo para o qual o País caminha.

(d) Isso sem falar na coincidência significativa (na verdade, um evento sincromístico) do professor ter o sobrenome Kubitschek, o mesmo do presidente que construiu Brasília (Juscelino Kubitschek). Mais um fator que turbina essa bomba semiótica, oferecendo um evento sincrônico que sublinha ainda mais o elemento de "brasilidade" ao destino das más notícias que, para a grande mídia, o Brasil está predestinado.



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