quinta-feira, fevereiro 11, 2016

Bebê-diabo, zika vírus e a busca da relevância perdida pela grande mídia


Se no passado era fácil diferenciar o Jornalismo da chamada “imprensa marrom”, hoje a perda da relevância da grande mídia frente às tecnologias de convergência a faz tomar medidas desesperadas que confundem o sensacionalismo com informação: criam-se situações de exceção, crises econômicas e políticas, pandemias, ameaças terroristas crescentes, iminentes catástrofes geológicas, climáticas, astronômicas e assim por diante numa espiral especulativa. Da clássica história do “bebê-diabo” nos anos 1970 às pandemias promovidas a cada temporada mudou-se apenas a motivação: lá, o jornalismo por centavos; agora, a busca de uma relevância perdida.

Numa Chicago dos anos 1930 marcada por segregação étnica e choques entre culturas de imigrantes, o sociólogo Ezra Park assinalava a importante função integradora dos jornais – como a imprensa contribuía para a integração dos imigrantes à população local. Essa visão sobre a função integradora da imprensa marcou a distinção entre a grande imprensa e a chamada “imprensa marrom” – ao contrário, uma imprensa “desintegradora” porque apostava no sensacionalismo, no medo e no individualismo para unicamente vender mais jornais.


Surgia a “Escola de Chicago” que no âmbito das teorias da comunicação também explorou os efeitos sociais da distinção entre jornalismo e sensacionalismo, imprensa e o “penny press” – o chamado “jornalismo de centavos”.

No Brasil, em pleno fluxo migratório do Nordeste para São Paulo durante a ditadura militar nos anos 1970, um jornal explorava esse mesmo tipo de público solitário e sem laços sociais: o Notícias Populares, famoso pelo episódio da notícia do “Bebê-Diabo” em 1975.

Notícia inventada para o jornal vender mais exemplares, na falta de coisa melhor para noticiar – “Nasceu o Diabo em São Paulo”, estampava a primeira página. De acordo com a notícia, uma senhora havia dado à luz a uma criatura sobrenatural em São Bernardo do Campo. O bebê tinha o corpo completamente coberto de pelos, dois chifres e um rabo, e já nasceu falando e ameaçando médicos e enfermeiras que realizaram o parto.


A pequena criatura teria escapado no meio da madrugada e passou a aterrorizar o imaginário dos leitores, produzindo manchetes por quase um mês com supostos casos de avistamentos e sustos. Muitos deles relatados pelos próprios leitores.

Enquanto a “imprensa marrom” vivia do sensacionalismo para ganhar centavos, a grande imprensa respeitável criava a noção de “jornalismo de prestação de serviços”. Favorecido pela monopólio midiático incentivado pela Ditadura Militar, a imprensa (e principalmente a TV) tornava-se o principal veículo de cidadania – campanhas públicas de conscientização, expressão das demandas comunitárias,  informações de interesse público etc.

Quando a grande mídia tinha relevância


A grande mídia vivia seu período dourado de relevância junto à opinião pública: criava a pauta e prescrevia para a sociedade o que era ou não pertinente para ser discutido.

Por isso, era fácil tanto para o público como para pesquisadores acadêmicos separar a imprensa “séria” da “sensacionalista”. O máximo de critica que poderia ser feita era a ideológica: manipulações das notícias pelo viés ideológico da política editorial.

Com a Internet e as tecnologias de convergência tudo mudou - veio a crise existencial (com sites, blogs, podcasts etc., qualquer um podia ser jornalista) e mercadológica (o fim da noção de “grade de programação” e a perda de audiência para a Internet).

Mas a maior crise foi a perda de relevância: a grande mídia perdeu o monopólio das informações, deixou de ser um gatekeeper (aquele que tem o poder de decisão do que será passado para o grande público) e um newsmaking (controle e geração de acontecimentos).

No caso brasileiro, para a grande mídia o problema foi duplo: é muito mais do que sobreviver à evolução histórica das mídias no cenário de convergência tecnológica, mas tentar dar sobrevida de um modelo de concentração criado pela ditadura militar, mercado publicitário e institutos de pesquisa de audiência.


O irônico é que na busca da relevância perdida a grande mídia começou cada vez mais a se aproximar da antiga “imprensa marrom” – gênero que, por sua vez, acabou desaparecendo, absorvido pelos memes, vídeos, boatos e teorias conspiratórias pela Internet.

Agendamento: a última bala na agulha


Perdido o poder de newsmaking e gatekeeper, restou ainda o de agendamento (ou “agenda setting” – a capacidade em agendar os temas e conversas das pessoas em função do que é veiculado na mídia), a última bala na agulha. Passa-se então a criar situações de exceção, crises econômicas e políticas, pandemias, ameaças terroristas, iminentes catástrofes geológicas, climáticas, astronômicas e assim por diante numa espiral randômica.

Qual será o futuro? Há esperanças? Como sobreviver? Assista à próxima edição e ouça o que nossos especialistas e colunistas têm a dizer!

Claro que nada é tão trash e bizarro como caso do Bebê Diabo da penny press brasileira dos anos 1970. Agora o sensacionalismo vem “credibilizado” por pesquisas, números extraídos de digestos científicos, declarações editadas de incautos chefes de pesquisas de tradicionais institutos etc. A partir de fatos verdadeiros (o mosquito, a doença, a microcefalia etc.) apressam-se a criar conexões e relações causais que, cientificamente, exigiriam demoradas análises de dados de populações e teste laboratoriais.

Nada de beijos no Carnaval!


Como na atual “Pandemia da Temporada” do zika vírus que segue o mesmo script das pandemias passadas que nunca se realizaram - sobre o conceito de "Pandemia da Temporada" clique aqui. O timing é preciso: em plena sexta-feira de carnaval, a mídia divulga de forma bombástica pesquisa da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) sobre a possível transmissão do zika através de saliva e urina. Nas escaladas dos telejornais e “cabeças” das matérias a conexão é dada como cientificamente comprovada. Enquanto a declaração da chefe da pesquisa, Myrna Bonaldo, espremida no meio da edição das matérias, falava em “início de pesquisa” e de que ainda era necessário “massa crítica de dados”.


Evitar “beijos” e “aglomerações” foi o conselho em tom patibular dos jornalistas, piada pronta no dia em que iniciava o Carnaval.

Se no caso do Bebê Diabo lá nos anos 1970 era explorado o imaginário cristão de imigrantes nordestinos perdidos na cidade grande, agora é a manipulação dos temas do nascimento (microcefalia), sexo (a possível transmissão do zika pelo ato sexual, mais uma relação causal dada como certa pela mídia) e morte (assustadoramente pandêmica e imprevisível por meio de um micro-terrorista). Nascimento, sexo e morte, as experiências mais marcantes (e as mais disciplinadas socialmente) da vida humana.

 O caso da “epidemia midiática” da febre amarela em 2008 foi bem documentado por diversas pesquisas. Uma delas, Epidemia Midiática: um estudo sobre a construção de sentidos na cobertura da Folha de São Paulo sobre a febre amarela, no verão 2007-2008, foi realizada pela Faculdade de Saúde Pública (FSP-USP) mostrando como o discurso jornalístico transformou uma epizootia (contagio em animais) em epidemia – contágio em humanos.

O efeito foi o aumento explosivo pela busca de vacina da febre amarela onde a aplicação indiscriminada produziu casos de óbitos por doença vicerotrópica, a mais grave reação adversa. A notícia da suposta epidemia de febre amarela gerou sua própria epidemia: desinformação, pânico, filas, vacinações desnecessárias, erradas etc.


Os supostos casos de febre amarela eram noticiados pela mídia como verdadeiros, enquanto as pesquisas laboratoriais, clínicas e epidemiológicas ainda estavam em fase final de apuração.

A cereja do bolo: o contágio sexual


Hoje o mesmo ocorre com as relações causais automáticas entre zika, microcefalia e contágio sexual – esta, a cereja que faltava no bolo para a mídia criar a “tempestade perfeita”.

Mas, em nota técnica emitida pela Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) é destacada outras variáveis na epidemia de microcefalia como o quadro sanitário de onde emergem os casos e o modelo de controle vetorial pelo chamado “fumacê” – o uso de produtos químicos que desconsidera a fragilidade biológica e socioambiental de comunidades pobres.

A exemplo do Malathion, neurotóxico para o sistema nervoso central e periférico, além de provocar náuseas, vômitos, diarreia, dificuldade respiratória e fraqueza muscular – sobre a nota da Abrasco clique aqui.

Refém que o Governo Federal é do agendamento da grande mídia, e às vésperas das Olimpíadas, a presidenta se apressa em “declarar guerra ao zika” e “formar um exército da paz e da saúde”.

Enquanto isso, a gripe comum mata 500 mil pessoas por ano no mundo; dois milhões de mortes anuais por malária; dois milhões de mortes anuais por diarreia e dez milhões de mortes anuais por doenças curáveis como sarampo ou pneumonia. E que jamais ganham as primeiras páginas de jornais e escaladas dos telejornais.

Mortes que poderiam ser evitadas por medidas simples como mosquiteiros e soro caseiro. O que passa longe dos interesses da indústria biofarmacêutica, interessada em medidas de saúde pública muito mais lucrativas.

Sabendo-se que esse setor, ao lado de armamentos e tabacos, é um dos que mais investem em táticas de agendamento nas mídia mundiais, temos uma convergência de interesses: para indústria biofarmacêutica o pânico e a desinformação é bom para os negócios por criar pandemias autorrealizáveis (como no caso da febre amarela no Brasil em 2008); e para a grande mídia, pânico e medo produzem a falsa necessidade das suas informações, tentando recuperar uma relevância inevitavelmente perdida.

Como se a vacina estivesse matando o próprio paciente.  

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