sexta-feira, dezembro 02, 2016

"Abandone a esperança aquele que por aqui entrar", diz o filme "Évolution"


Um menino chamado Nicolas vive em uma pequena comunidade à beira do mar onde só existem mulheres adultas, todas estranhamente inexpressivas, que cuidam de seus filhos, todos masculinos e da mesma faixa etária. Ele desenha em seu caderno esboços de experiências que jamais poderia ter vivido naquela comunidade. Junto com essas memórias, cresce a suspeita de que todas aquelas mães escondem um terrível segredo: a obsolescência sacrificial dos jovens. É o filme “Évolution” (2015, co-produção França, Bélgica, Espanha), uma produção europeia que reúne os cinco elementos básicos de uma narrativa gnóstica: estranhamento, esquecimento, paranoia e conspiração de um sistema que não ama aquelas crianças. Lembrando o famoso aviso na entrada do Inferno da "Divina Comédia" de Dante Alighieri: “Abandone toda a esperança aquele que por aqui entrar”.

Nesses sete anos de atividades do blog Cinema Secreto: Cinegnose, mapeamos até aqui algo em torno de 70 filmes gnósticos – excetuando-se aqueles com “sabor” gnóstico: filmes que exploram elementos alquímicos, cabalísticos ou esotéricos e herméticos, mas que ainda não se configuram como uma narrativa gnóstica completa.

Uma narrativa gnóstica necessariamente deve abordar os temas da conspiração, amnésia, paranoia e a ambivalência entre realidade e ficção. Sempre temos a ideia geral de um protagonista que vive em uma realidade aparentemente familiar mas que progressivamente começa a inspirar estranhamento e desconfiança.

Até a realidade ser desconstruída e apresentar-se como uma ilusão ou um sistema metodicamente construído por alguém que não o ama e que objetiva aprisiona-lo para roubar do protagonista alguma propriedade especial ou qualidade.

Em nossa lista, 70% são produções norte-americanas. As produções europeias em torno de gêneros próximos as narrativas gnósticas (sci-fi, terror, thrillers ou dramas) sempre abordam o tema que denominamos como “humano, demasiado humano”: narrativas que versam sobre as fragilidades éticas, morais e existenciais do ser humano – seus dramas, erros e pecados.


Produções europeias como Évolution (2015, co-produção França, Bélgica e Espanha) são bem vindas para o Cinegnose como um filme gnóstico fora da curva do cinema daquele continente.

Lembra bastante o filme O Homem Que Incomoda (2006) – uma narrativa que pode se passar tanto em um futuro distópico quanto em um presente situado num mundo alternativo – sobre o filme clique aqui. Dos filmes distópicos e opressivos dentro dos filmes gnósticos, Évolution é intrigante porque nunca chega ao puro medo, transitando entre o pesadelo e o devaneio poético com lindas imagens de uma ilha cercando por uma mar translúcido repleto de algas, corais e estralas do mar multicoloridos.

Mais ainda intrigante é que toda a verdade a respeito daquele lugar (habitado por mulheres estranhas e inexpressivas, uma instalação hospitalar com enfermeiras sem sobrancelhas que entendem meninos aparente filhos de mulheres numa ilha sem homens adultos) somente vem à tona visualmente.

Isto é, todas as linhas de diálogo são mentirosas. Somente através do olhar das crianças e do olhar do próprio espectador para os belíssimos planos de câmera, é que se descobrirá uma sinistra realidade por trás de um lugar tão paradisíaco.  

O Filme


Évolution nos apresenta uma aldeia à beira-mar povoado unicamente por meninos pré-adolescentes e suas mães, todas também na mesma faixa etária, pálidas e com rostos inexpressivos que parecer ter sido dos quadros do pintor holandês Vemeer – aliás, as referencias pictóricas são uma constante no filme. Muitos planos de câmera do povoado nos faz lembrar do surrealismo metafísico do pintor modernista Giorgio de Chirico, carregando os locais com uma atmosfera espectral e irreal.


Há uma espécie de hospital, uma grande instalação de concreto que domina a aldeia e para onde os meninos são enviados. Supostamente há alguma doença e os meninos são regularmente enviados a essa instalação para serem “curados”.

No meio da rotina no qual os meninos brincam à beira do mar e retornam para suas casas onde suas mães estão à espera com uma estranha refeição (um mingau escuro) acompanhado de um “remédio” dissolvido em um copo, uma das crianças chamada Nicolas encontra o corpo de outra criança no mar.

A partir daí começam a crescer a suspeita de que todos os seus amigos são alimentados com mentiras e que todos as crianças parecem estar sendo preparadas para algum destino não especificado e misterioso.

A relação de estranhamento com aquele mundo dominado por mães de uma beleza robótica cresce na medida em que Nicolas faz desenhos em seu pequeno caderno – ele desenha objetos e situações, experiências que Nicholas jamais poderia ter vivenciado naquela ilha: esboços de coisas como carros, play grounds e uma mulher que talvez seja a sua verdadeira mãe.

Por que não há homens adultos naquele lugar? Por que todas as crianças têm a mesma faixa etária? Por que só meninos?

Cresce a suspeita de haver algum tipo de obsolescência sacrificial para esses jovens. Principalmente porque as enfermeiras e médicas do hospital passam o tempo assistindo a vídeos sobre partos por cesariana. Elas parecem querer aprender e desenvolver algum tipo de técnica cirúrgica.

Évolution tem um grande apelo visual. Cercado por uma exuberante natureza (algas verdes, estrelas do mar vermelhas, o azul translúcido do oceano e o contraste das casas com o céu), é paradoxal que em meio a tanta beleza cresça uma atmosfera macabra e antinatural.


Elementos gnósticos


O filme começa a desenrolar quatro elementos básicos em um filme gnóstico: o estranhamento (Nicolas parece não pertencer àquele lugar, e seus desenhos parecem demonstrar isso), a perda da memória (Nicolas tenta resgatá-las por meio do caderno de esboços, tentar lembrar de onde veio), ilusão (há uma construção deliberada da aparência de rotina e maternidade) e paranoia - há algo de artificial e antinatural no meio daquelas paisagens paradisíacas.

Por isso, na medida em que a narrativa se desenrola, a fotografia, cores, contrastes e sombras vão tornando-se mais sinistros, espectrais e fantasmagóricos. Todas aquelas solícitas mãe parecem esconder não apenas um sinistro segredo – a ilha inteira parece ser um sistema criado para aprisionar aquelas crianças na ilha.

O espectador vai descobrindo esse mundo de Nicolas aos poucos, por incrementos sucessivos que vão montando um quebra-cabeças nos preparando para uma terrível revelação próxima. São poucas linhas de diálogos (quando ocorrem são apenas mentiras contadas pelas mães). Tudo apenas será revelado visualmente, principalmente nas sequências finais passadas no interior daquele misterioso hospital no qual todas as crianças são finalmente internadas.


O pós-humano – alerta de spoilers à frente


Depois desses quatro elementos gnósticos expostos em Évolution (estranhamento, memória, ilusão e paranoia) a narrativa prepara o espectador para o quinto elemento: o que o sistema quer daquelas crianças prisioneiras?

Em Show de Truman, o gigantesco reality show queria do protagonista sua alegria e espontaneidade “para inspirar milhões”; em Matrix as máquinas queriam a energia vital humana para alimentar o sistema; em Vanilla Sky a empresa de criogenia extraia as memórias do protagonista. E em Évolution, toda a aldeia é um sistema de reprodução pós-humana baseado em clonagem no qual os corpos dos meninos são a matéria-prima fundamental.

Os meninos deverão carregar os fetos por um curto período, até serem extraídos em uma cirurgia, tornando as crianças obsoletas e necessariamente sacrificadas.

Quem são aquelas mulheres? Alienígenas anfíbios? Ou o próximo passo da evolução humana (como o título sugere) no sentido do chamado pós-humano, no qual todos os processos naturais serão subvertidos através da clonagem e manipulação genética?

  Acredito que essas leituras são periféricas ou superficiais. São apenas suportes para uma questão arquetípica que se conecta ao simbolismo gnóstico: o drama da adaptação do jovem a um mundo que, sabe, não lhe pertence. É o antigo ritual de passagem presente em todas as culturas no qual o jovem é marcado com ferro e fogo, lembrando o famoso aviso na entrada do Inferno na Divina Comédia de Dante Alighieri: “Abandone toda a esperança aquele que por aqui entrar”.

Ao contrário, com seu caderno de esboços, Nicolas quer resgatar as esperanças, relembrar algo que foi perdido e que estranhamente esqueceu – talvez aquele nojento mingau escuro tenha essa propriedade.

As distopias teens atuais como as franquias Divergente ou Jogos Vorazes estão explorando esses dramas de adaptação ao futuro mundo adulto na adolescência. Porém, seguindo os moldes clichês hollywoodianos de performance e retorno à ordem.

Ao contrário, em Évolution há a busca da gnose interior: a recuperação da lembrança daquilo que foi perdido.

Dessa forma o enfoque gnóstico de Évolution didaticamente contrasta com o viés do “humano, demasiado humano”: o elemento humano não é a fonte dos erros e pecados – ao contrário, é naquilo que nos torna humanos (a memória) que devemos encontrar a redenção.


Ficha Técnica

Título: Évolution
Diretor: Lucile Hadzihalilovic
Roteiro:  Lucile Hadzihalilovic, Alante Kavalte
Elenco:  Max Brebant, Roxane Duran, Julie-Marie Parmentier, Mathieu Goldfeld
Produção: Les Films du Worso, Noodles Production
Distribuição: IFC Midnight
Ano: 2015
País: França, Bélgica, Espanha


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