domingo, junho 04, 2017

Doria Jr. é vanguarda de um experimento e São Paulo o laboratório


Subir numa escavadeira para posar para as câmeras em demolições na Cracolândia, qualificar como “bobagem” quando questionado sobre as ameaças de agressão física do secretario André Sturm contra agentes culturais, o humilhante vídeo demitindo uma secretária de governo análogo à estética visual dos vídeos do ISIS, qualificar as ruas de São Paulo como “lixo humano” e pulverizar e despachar a Virada Cultural para lugares distantes entre si. Arrogante? “João Noia?” O gênio do prefeito João Doria Jr. é saber que foi eleito pela e para a mídia corporativa e que “opinião pública” resume-se a câmera e teleprompter. Sabe que nada deve ao respeitado público já que é uma experiência de vanguarda de um projeto no qual São Paulo é o laboratório. Por isso, de forma atávica, repete como farsa o roteiro do assalto nazifascista ao poder e guerra contra a sociedade: começa pelo banimento da “arte degenerada”, passando pela desautorização e humilhação das opiniões contrárias, terminando com a “Nova Berlim” paulistana na Cracolândia e “sacar revólveres” quando ouve falar em cultura. 

Locomotiva da nação, São Paulo sempre esteve na vanguarda: Semana de Arte Moderna de 1922, a Revolução Constitucionalista de 1932 contra Getúlio Vargas, a primeira emissora de TV da América Latina inaugurada em 1950 (a TV Tupi), a primeira rede de metro do País, o berço da indústria automobilística nacional entre outros pioneirismos.

Muitos dizem que São Paulo é um enclave conservador, porque resistente a medidas civilizatórias globais como ciclovias e redução da velocidade dos carros.

Mas temos que admitir: São Paulo sempre esteve na vanguarda e, na atualidade, é um laboratório para o “brave new world” que nos aguarda. Desde a simbólica inauguração da Praça Victor Civita (símbolo de um projeto de sustentabilidade - por meio do sucateamento deliberado do Estado, tornar escasso todos os bens tidos como universais (água, educação, energia etc.) para, depois, serem entregues à regulação do mercado como simples mercadorias – clique aqui) até a primeira posse de um prefeito midiático – João Dória Jr.

Como este Cinegnose anteviu em 2015, a cidade que pariu o conservadorismo populista do “rouba-mas-faz” de Ademar de Barros e Maluf, seria o laboratório para a primeira experiência de um candidato eleito pela e para a grande mídia – o velho conservadorismo renovado eletronicamente – clique aqui.

Na época, o apresentador da Band José Luiz Datena era assediado a se candidatar ao pleito municipal, enquanto o apresentador do programa Show Business, Doria Jr., junto com Celso Russomano (que fez carreira na TV como suposto defensor do consumidor) eram nomes confirmados.

Berlusconi no vácuo da "Operações Mãos Limpas"

Vácuo político


Para analistas, nomes que surgiram na esteira do “vácuo político” resultante da judicialização da política feita pela Operação Lava Jato e congêneres em diária exposição televisiva de políticos e empresários conduzidos por policiais federais. Repetindo o mesmo roteiro da Operação Mãos Limpas na Itália que destruiu o sistema político partidário e abriu caminho para o empresário midiático Silvio Berlusconi nos anos 1990.

Depois do incansável trabalho diário em desmoralizar não só a figura do político, mas a própria instituição da representatividade na Política, a grande mídia entrou na fase decisiva do seu projeto histórico: chega de intermediários! Cansada de levar a reboque a Política, agora a mídia corporativa quer “gestores” que saibam ler um teleprompter, consigam se posicionar bem diante das câmeras e entendam a logística da grande mídia.

O resultado dessa experiência vanguardista pudemos acompanhar nesses primeiros cinco meses desse prefeito que representa a quintessência do imaginário conservador paulistano (“vencedor”, “empreendedor”, “gestor eficiente”): bravatas, agressões, predisposição a humilhar os outros, solene desprezo pela alteridade, arrogância e nenhuma disposição para diálogo – a não ser com membros de uma elite empresarial “parceira” na gestão municipal.



Vemos quase diariamente nos noticiários secretários esbaforidos e gaguejantes diante das câmeras na urgência de apagar algum incêndio provocado por decisões intempestivas do prefeito, na sua ansiedade diária de ocupar o noticiário e redes sociais com factoides e notícias sobre decisões de súbito e, muitas vezes, projetos que nem saíram do papel.

Começou com a blitzkrieg da tinta cinza sobre os painéis de grafismos em avenidas da cidade dentro do programa “Cidade Linda” e a sua cruzada pelo embelezamento urbano mediante a caça policial de pichadores, repentinamente transformados em urgentes inimigos públicos.

Depois, a humilhante exposição da secretária Soninha Francine sendo demitida em vídeo por Doria Jr. Os dois, lado a lado, com uma estética audiovisual parecida com aqueles vídeos do ISIS no qual vemos um jihadista gritando alguma coisa como “Allahu Akbar”, enquanto o refém espera ser decapitado ao vivo.

“Bobagem!”


Depois de jogar flores de uma ciclista no chão, passar com escavadeiras e policiais sobre a Cracolândia numa manhã de domingo (vitimando até moradores e trabalhadores que dormiam nas suas casas) e, com mais escavadeiras, tentar derrubar muros para colocar contêineres para atender dependentes químicos da região sob protestos de moradores que sequer foram consultados, ocorreu o episódio que é uma síntese do modus operandi  Doria Jr.

O secretario da cultura André Sturm em uma reunião com agentes culturais de uma Casa da Cultura de Ermelino Matarazzo, Zona Leste da Capital, ameaçou diversas vezes “quebrar a cara” de um dos interlocutores em visível descontrole emocional.

Questionado pelos jornalistas sobre o acontecimento, o prefeito desdenhou: “bobagem!”.

Para além de secretários visivelmente estressados pela urgência em produzir acontecimentos para a mídia e ter que limpar os efeito colaterais para debaixo do tapete, a resposta lacônica e indiferente do prefeito (“bobagem!”) é sintomática: Doria Jr. sabe que não tem qualquer compromisso com alguma coisa chamada “opinião pública” – ele foi eleito pela mídia corporativa e somente a ela deve satisfações, fora do enquadramento da câmera e nos bastidores.

Blindagem pelo "jornalismo snapchat":  
indignação dura apenas 24 horas


Para o midiático prefeito, “opinião pública” é a câmera e o teleprompter. E “gestão pública” é a produção de factoides onde o efeito estético é mais importante do que implementações reais.

Estoicamente, Doria Jr. aposta na blindagem do “jornalismo snapchat” da grande mídia: apresentadores e comentaristas chegam a demonstrar uma leve indignação e até mesmo o áudio ameaçador do secretario Sturm foi ao ar em tom de denúncia.

Porém, passada a manchete e mantida a aparência de “imparcialidade”, nos dias posteriores não vemos mais atualizações nos telejornais e tudo fica por isso mesmo.

Porém, isso ainda não é o suficiente. Nenhuma experiência política (e até supostamente apolítica como a do campeão paulistano da “gestão”, “eficiência” e das “parcerias”) se realiza sem a exploração do psiquismo e do imaginário.

E talvez involuntariamente, de forma atávica como se revivesse como farsa algum inconsciente coletivo histórico, Doria Jr. nesses pouco mais de cinco meses seguiu o roteiro clássico do assalto nazifascista ao poder e declaração de guerra à sociedade.

Alguns “clichês” desse roteiro:

(a) Arte degenerada


Assim como o regime nazista tachou toda a arte moderna de “degenerada” e de natureza “judia-bolchevique” banindo-a da Alemanha e limitando sua exposição em lugares restritos (a “Mostra Arte Degenerada”), o programa Cidade Linda seguiu o mesmo ímpeto – o prefeito apagou, pessoalmente fantasiado como gari, grafites e pichações do imenso painel na avenida 23 de Maio.

“Pintei com enorme prazer”, desafiou Doria Jr., enquanto falava em restringir os grafites a lugares pré-definidos e isolados. Afastar os grafites do ambiente urbano e restringi-los a guetos é a própria repetição do conceito de “embelezamento do mundo” por meio de assepsias e “soluções finais”.

(b) Humilhação


O vídeo da humilhante demissão da secretaria Soninha mostra como o prefeito está organicamente ligado à vida psíquica da “locomotiva da nação”: humilhação é o cotidiano de estagiários, trainees e demais aspirantes a um lugar ao Sol na profissão. É aceita como uma espécie de síndrome de Estocolmo – “esporros e gritos são para o meu bem... aprendo com eles”.

Mais tarde, se chegar lá em cima, de forma reflexa vai descontar seu ressentimento dos estagiários e trainees da vez. Theodor Adorno chamava esse fenômeno de “correia de transmissão”, a dinâmica psíquica da chamada personalidade autoritária – “aquele que é duro contra si mesmo adquire o direito de sê-lo com os demais”.

Personalidades autoritárias ficam eufóricas com coisas como “Operação Cracolândia” – é a versão standard da “solução final” de Auschwitz e Treblinka. Será que o inacreditável vídeo de imolação da Soninha foi a preparação subliminar para a “megaoperação de combate às drogas” na Cracolândia?

(c) Arquitetura da destruição


Em postagem anterior esse humilde blogueiro apontava a semelhança entre a concepção urbanística do projeto “Nova Berlim” de Hitler e Albert Speer com o projeto Nova Luz, motivação de especulação imobiliária da megaoperação na Cracolândia - clique aqui.

Faz parte desse roteiro a política de terra arrasada ou Problema-Reação-Solução (P-R-S), técnica de engenharia de opinião pública no qual problemas são fabricados (false flags, não-acontecimentos, factoides etc.) para estimular uma crise que faça o público gritar: “Algo precisa ser feito!”.

Do incêndio no Reichstag em 1933 (evento crucial para o estabelecimento da Alemanha nazista) à tragédia humana da megaoperação Cracolândia, como sempre cria-se a terra arrasada para se impor a conveniente solução.

No documentário Arquitetura da Destruição (Peter Cohen, 1989), vemos Hitler e Speer chamando isso de “princípio das ruínas” – as ruínas de uma Alemanha arrasada pela guerra inspirariam as gerações futuras... e parece que eles tinham razão.


(d) “Quando ouço falar em cultura saco o meu revólver”  

              
Frase de uma peça antinazista de Hanns Jost de 1933 (ano que os nazistas assumiram o poder) e depois atribuída ao chefe da Gestapo Herman Göring, a cultura sempre levantou suspeitas para a personalidade autoritária – dos fantasmas de artistas comunistas e petistas se lambuzando de dinheiro com a Lei Rouanet ao terror pelos “pancadões funk” como fenômeno policial numa cidade ocupada por “lixo humano”, como descreveu certa vez Doria Jr.

Mais do que destempero emocional sintoma das pressões do insone prefeito, as ameaças do secretário da Cultura Sturm contra agentes culturais de um bairro periférico (“Vou quebrar sua cara!”) é uma pequena amostra de como a Cultura é encarada nesse roteiro nazifascista: um objeto suspeito de repressão policial.    

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