sexta-feira, junho 23, 2017

Revisitando Os Wachowskis: a Semiótica da Matrix


O filme “Matrix” (1999) dos Wachowskis  já foi dissecado e virado do avesso pela filosofia, misticisismo, esoterismo, religião, inspirando até a Física sobre a possibilidade de o Universo ser, afinal, uma gigantesca simulação computadorizada finita. Mas muito pouco ainda se falou sobre o ponto de vista da Semiótica. O que é surpreendente, já que Matrix parte de um pressuposto da ciência dos signos: não percebemos o real, mas signos mentais da realidade. “Matrix” foi muito mais do que mais uma ficção científica distópica. Na verdade os Wachowskis propuseram aos espectadores um enigma, uma “narrativa em abismo”: a emoção e empatia do público com o drama da Resistência na luta contra as máquinas é tirada da própria experiência do espectador com o seu mundo atual: já vivemos situações análogas, quando olhamos para o mundo real e o avaliamos não a partir dele mesmo, mas a partir dos signos que já foram feitos anteriormente desse próprio mundo. “Speed Racer” (2008), produção posterior à Trilogia Matrix, apenas confirmou esse propósito da dupla de diretores.

Muito já se falou, discutiu e escreveu sobre o filme dos Wachowskis, Matrix, de 1999. Coincidindo com o final do século XX, esse filme representou o ápice do Gnosticismo Pop com o subgênero CosmoGnóstico – ao lado de Clube da Luta, eXistenZ, 13o Andar (todos lançados no mesmo ano), foi o auge de narrativas que especificamente questionavam o modo como compreendemos e operamos a realidade.

A partir de Amnésia (2000) e Vanilla Sky (2001), o século XXI tendeu para narrativas PsicoGnósticas e CronoGnósticas – o questionamento agora passa para as realidades interiores (mentais, psíquicas etc.), tão mortais e perigosas como as matrix tecnológicas.

Matrix já foi analisado pelos pontos de vista filosófico, místico, religioso, esotérico, neoplatônico e até da Física – é plausível pensar a realidade como uma Matrix? Poderia o universo ser concebido como um gigantesco game de computador ou uma simulação computacional finita? – sobre isso clique aqui.

Surpreendentemente, poucas análises do ponto de vista da Semiótica se aventuraram em discutir o filme, apesar na narrativa partir de um pressuposto bem ao gosto da ciência dos signos: o que percebemos através dos nosso cinco sentidos não é a realidade, mas signos do que entendemos por “realidade”.

"Não existe a colher. Só você"

O signo da realidade


Se duas pessoas olham para uma cadeira, cada uma criará um “interpretante” (a imagem mental ou signo) diferente. Imagens mentais criadas a partir dos pontos de vistas originados dos espaços distintos de onde cada um observa o objeto. Se isso for verdade, a realidade seria uma “ilusão consensual” – ambos têm que admitir que estão diante de um objeto, mesmo criando interpretante diferentes. Portanto, a “ilusão consensual” será a Gestalt do signo /cadeira/.

Esse sentido da realidade como fosse “ilusão consensual” é corroborado com a análise que Slavoj Zizek faz de filmes CosmoGnósticos como Show de Truman e Matrix: e se a própria vida social real de alguma forma adquirir traços de uma farsa encenada, com nossos vizinhos e conhecidos participando como figurantes em uma grande ilusão consensual? – leia ZIZEK, Slajov. “Matrix: ou os dois lados da perversão” In: IRWIN, William (org.) Matrix – Bem vindo ao deserto do real, Madras, 2002.

Esse humilde blogueiro crê que Matrix foi supervalorizado em seu aspecto metafísico no qual toda a realidade seria colocada sob suspeita (tudo é gerado pela Matrix!) – se tudo é Matrix, nada é Matrix.

Slajov Zizek: "E se a própria vida social for uma farsa?"

O “assassinato do real”


Ora, na época os irmãos Wachowski convidaram o pensador francês Jean Baudrillard (1929-2007 - o maior teórico da simulação) para assessorar o roteiro do filme. Como um bom intelectual francês, declinou do convite vindo de uma produção hollywoodiana – sobre isso clique aqui.

Baudrillard foi um pesquisador que teorizava, principalmente, o que chamava de “crime perfeito” ou “assassinato do real” – o real substituído pelo simulacro, transformando-se em hiper-realidade. E isso não era nenhuma especulação filosófica, mística ou esotérica: esse “crime” já estaria  entre nós através dos não-acontecimentos, mídia, Las Vegas, Hollywood etc. Toda uma virtualidade que já molda a realidade do nosso cotidiano.

A pretensão dos Wachowskis em Matrix, mais tarde confirmado com o filme Speed Racer (2008), era justamente construir fábulas dessa destruição do real pela hiper-realidade – em Matrix, um mundo virtual que aprisiona corpo e mente da humanidade; e em Speed Racer, herói do mundo da ficção (desenhos animados japoneses) transposto para a tela em live action como fosse uma animação 3D, resultando numa explosiva hiper-realidade, quase uma estética em “realidade aumentada”.

"Speed Racer" (2008)

Matrix constrói uma verdadeira semiótica da percepção: por que Neo e toda a humanidade que restou, escravizada pelas máquinas para suprir de energia todo o sistema, percebia o seu mundo como “real”? A mesma pergunta poderia ser feita a Truman, prisioneiro do gigantesco reality show de Seaheaven.

Semiótica da percepção em Matrix


Na semiótica de Charles S. Peirce (1839-1914), percepção e a abstração do mundo pelos signos funcionaria através de uma tricotomia: primeiridade (o fluxo sinestésico, a percepção direta das qualidades do mundo: cores, textura, dimensão, escala, tonalidades, forma etc.); segundidade (a criação do signo que nomeia essas percepções: agradável/desagradável, prazer/dor, perto/longe etc.); e terceiridade (a interpretação do mundo através de justaposições, metáforas, analogias etc.).

 O contraste visual através da fotografia, matiz e resolução que o filme faz entre o mundo virtual e o “deserto do real” é essencial para compreendermos esse plano da primeiridade – na Matrix, fica evidente que a matiz dominante é o verde. O que é um elemento de sinalização para o espectador (a Matrix é mortal): na psicologia das cores essa cor é dotada de um simbolismo ambíguo – dependendo do contexto, pode simbolizar relaxamento, natureza, pureza; mas, por outro lado, perigo, veneno, contaminação.


Outro detalhe da fotografia é a “limpeza” das texturas: Morpheus, Trinity, Cypher e toda a trupe da nave da Resistência, dentro da Matrix, parecem suas versões melhoradas – pele mais lisa, cabelos mais compostos, o elegante figurino (overcoats pretos de couro, blasers de bom corte, gravata (verde), óculos escuros, roupa colant de couro preto).

Nas ruas e interiores, calçadas, paredes, tetos são cleans. Em nível de segundidade, os signos são claros: remetem aos cânones da estética do gênero fílmico noir, ciberpunk, animes japonesas e das HQs Marvel e DC Comics.

Ao contrário, no “deserto do real”, fora da Matrix, vemos versões visualmente “pioradas” dos protagonistas na qual a fotografia salienta a textura das roupas e rostos mais duras e imperfeitas.

O que é a Matrix?

A questão “o que é a Matrix?” necessariamente passa pela questão que também está em Show de Truman: por que Truman ou a humanidade em Matrix acreditavam que o mundo em que viviam era real? Se um dia acordássemos e víssemos um mundo em estética noir-cyberpunk-HQ e no espelho olhássemos para uma versão melhorada e ficcional de nós mesmos, acharíamos tudo muito estranho. Seriam como “anomalias”.

Em Show de Truman, o protagonista acostumou-se com as anomalias porque, afinal, praticamente nasceu no reality show da cidade-estúdio Seaheaven – anomalia ótica (o horizonte do mar de Seaheaven parece muito mais próximo do que o do mundo real); anomalia estética (tudo é clean, em tons pasteis e superfícies suaves); anomalia narrativa (de repente, alguém fazia um merchandising diante de Truman) etc.


Em Matrix, a anomalia da primeiridade é um mundo “real” que parece ser cópia da cópia da imagerie da cultura pop – a Matrix construída pelas máquinas para os humanos parece um gigantesco museu pulp fiction, um parque temático da Gotham City das HQs, assim como uma Disneylândia em estilo underground.

Da cultura pop chega até à história da arte: a sequência em que vemos Neo/Anderson em seu escritório de trabalho na Matrix é alusivo aos visual hiper-real dos quadros do pintor norte-americano Edward Hopper - veja imagens acima.

Aqui chegamos à terceiridade: os humanos aceitam o real a partir da analogia e justaposição daquele mundo com suas memórias atávicas da antiga indústria do entretenimento do mundo humano que despareceu. Por isso o simulacro (cópia da cópia, signo de outro signo) substitui o real: temos, portanto, o hiper-real.

Mais tarde, Vanilla Sky (2001) exploraria esse argumento: o protagonista David Aymes (Tom Cruise) vive em um sonho lúcido construído por uma empresa a partir das lembranças afetivas da cultura pop que sua mente guardava – capas de discos, vídeo-clips etc.

Dessa maneira, o principal objetivo dos irmãs Wachowski naquele época foi criar no espectador de Matrix um nível meta da própria cultura pop das memórias do público – para nós, a Matrix é, de fato, ficcional porque nos faz lembrar centenas de referencias dos mundos ficcionais criados pela indústria do entretenimento.

Campos do Jordão: uma Matrix brasileira?

Narrativa em abismo


Em outras palavras, os Wachowskis criaram uma espécie de narrativa em abismo: o espectador vê uma Matrix reconhecendo signos (ou simulacros) da própria Matrix que vive no real ao consumir a cultura pop.

A emoção e empatia do público com o drama da Resistência na luta contra as máquinas é tirada da própria experiência do espectador com o seu mundo atual: já vivemos situações análogas, quando olhamos para o mundo real e o avaliamos a partir dos signos que já foram feitos anteriormente desse próprio mundo.

Por exemplo, quando entramos numa cidade como Campos do Jordão, vemos uma cenografia construída a partir das imagens publicitárias sobre a imagerie europeia, e não a partir da Europa real. Assim como numa feira livre vemos uma maçã tão vermelha e suculenta que achamos que é de plástico. Duvidamos da sua “realidade” e temos a compulsão de apertá-la para nos certificar. Tomamos a maçã não a partir dela mesma, mas a partir de imagens já feitas anteriormente da própria existência da fruta.

Nesse sentido, Matrix supera as narrativas distópicas como 1984, Farenheit 451, THX 1138 ou Rollerball. Ao contrário, Matrix é um filme hipo-utópico – filmes que projetam de forma surrealista e expressionista no futuro mazelas já existentes no presente.

Os Wachowskis queriam nos fazer refletir sobre a possibilidade de a Matrix já estar entre nós. Mais tarde, com o filme Speed Racer, a dupla de diretores colou finalmente o futuro no presente, a realidade na ficção: o herói de uma animação japonesa se materializando em um filme no qual efeitos digitais se fundem com performances em live action.


Ficha Técnica

Título: Matrix
Diretor: Irmãos Wachowski
Roteiro:  Irmãos Wachowski
Elenco:  Keanu Reeves, Laurence Fishburne, Carrie-Anne Moss, Hugo Weaving
Produção: Warner Bros, Village Roadshow Pictures
Distribuição: Warner Bros
Ano: 1999
País: EUA

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