sábado, agosto 19, 2017

Curta da Semana: "Bullet In The Brain" - a gnose durante a morte


Dizem que à beira da morte assistimos a um filme sobre as nossas vidas. O curta “Bullet in The Brain” (2001), adaptação do conto homônimo do escritor norte-americano Tobias Wolff, mostra que talvez isso seja verdade, mas não da forma como imaginamos. Um professor de Literatura cínico e amargo permite que a sua metodologia de crítica profissional se estenda para sua própria vida cotidiana, mesmo no meio de um assalto a um banco e com o cano de um revólver no seu queixo. A velocidade da bala é menor que a velocidade das sinapses cerebrais, o que lhe proporcionará surpreendentes segundos finais: a descoberta de coisas que foram esquecidas na vida e a gnose durante a morte.

O escritor norte-americano Tobias Wolff (1945-) é conhecido pelo seu estilo chamado de “realismo sujo”. Com uma impecável técnica literária, principalmente através dos seus contos, Wolff tem a capacidade de ver na trivialidade da vida, e através dela, aspectos ao mesmo tempo sombrios e sublimes da condição humana.

Algumas obras do escritor foram adaptadas ao cinema como This Boy’s Life (1989) que foi transformada no filme O Despertar de um Homem (1993).

O conto Bullet in The Brain (1995) foi mais uma obra de Wolff adaptada ao audiovisual: o curta homônimo de 2001 dirigido por David Von Ancken.

O conto/curta acompanha um professor de crítica literária chamado Anders que há muito tempo perdeu contato com o amor pelo trabalho – transformou-se num crítico impiedoso, amargo, pomposo, antipático que transforma seus alunos em seres paralisados pelo medo da opinião do seu professor.

Anders transforma o seu pensamento crítico e intolerante num exercício tão repetitivo que se converte em um método que acaba se estendendo para a própria vida cotidiana, o que não será uma boa ideia como demonstra o curta.


De certa forma, o crítico literário Anders lembra o crítico gastronômico da animação da Pixar Ratatouille, Anton Ego: transforma a ausência de empatia e intolerância em exercício profissional. Até que uma experiência impactante abale a couraça crítica. Em Ratatouille, o prato preparado pelo rato “mini-chef” que faz Anton Ego retornar a uma experiência esquecida na infância.

No curta, como o próprio título informa, uma bala na cabeça disparada em um assalto a um banco que fará Anders despertar a memória de uma humanidade esquecida.

O conto/curta retoma um tema gnóstico que sempre esteve latente desde a literatura romântica, passando pela Psicanálise até chegarmos ao cinema atual – a chamada “vida adulta” baseia-se no esquecimento de alguma coisa de verdadeira e autêntica que foi perdida na infância: amor, espontaneidade, alegria, brilho, boa-fé, vitalidade, confiança, viço etc.

Esquecemos de tudo isso sobre camadas e camadas de racionalidade, racionalizações, álibis, autoindulgência e muito ego. Ser adulto é esquecer, como nos mostra o conto/curta Bullet in The Brain.

O conto/curta


O curta começa numa narrativa paralela na qual vemos Anders (Tom Noonan) em sala de aula destilando crítica ferina, amarga e paralisante para seus alunos. Ao mesmo tempo, acompanhamos Anders andando pelas ruas apressado, rumando a uma agência bancaria. Olha para o relógio e percebe que está quase na hora do fechamento da agência.

Percebemos que o protagonista é um cara nada simpático, no mínimo. E nem chega a ser um anti-herói: ele transformou a crítica literária em um método cortante de encarar a vida, e que vai muito além dos livros e textos dos alunos. Transborda para o próprio dia-a-dia.


Na fila do caixa da agência, Anders percebe que está em andamento um assalto – um segurança é arrastado sob a mira de um revólver enquanto outros assaltantes esvaziam as gavetas de dinheiro.

Até mesmo nesse instante de perigo, Anders é irônico é encara tudo como algum tipo de narrativa literária: “Grande roteiro, hein? A austera poesia das classes perigosas!”, ironiza Anders para uma assustada mulher à frente na fila.

Um dos assaltantes (Dean Winters) fica incomodado com o cinismo daquele homem: “isso aqui não é um jogo! Cala a boca”, grita. Coloca o cano do revolver no queixo de Anders e ameaça: “Se voltar a brincar comigo você já era. Capiche!”, ameaça. 

Andlers explode numa risada: “Capiche?! Oh Deus, Capiche?”, ironiza Anders como se a fala do bandido fosse alguma linha de diálogo de má literatura, clichê de alguma pulp fiction sobre mafiosos sicilianos.

O bandido então dispara e a bala atravessa o crânio, saindo por trás da orelha. Mas na verdade, a velocidade da bala é infinitamente menor do que a velocidade das sinapses neuronais – vemos na segunda metade do curta momentos da vida do protagonista que Anders NÃO viu como suas memórias finais: a primeira amante, o suicídio de uma mulher, a sua esposa que acabou se cansando dele pela sua previsibilidade, a filha que sofreu pela sua ausência. Além de também não se lembrar de uma só linha de poemas ou livros que leu tanto de alunos como dos grandes autores.

Parece que a bala passou pela mente e levou como um cometa todas essas memórias. Para apenas ficar as lembranças da infância: o calor, o campo de beisebol, o pasto amarelo, o zumbido dos insetos e a chegada dos amigos e de um primo do Mississipi e a inesperada pureza e música de todos esses momentos.

O método da racionalidade da crítica literária fez o protagonista esquecer de todos esses momentos que são, afinal, a energia que nos torna vivos, dando vitalidade a tudo que fazemos. Anders esqueceu de tudo isso, e tocou a sua vida com cinismo e irônica superficialidade.


Aquilo que esquecemos na infância


Se na infância, o ponto de partida nesse cosmos material, ainda temos em nós o frescor desse élan vital, na vida adulta esquecemos, soterrados por camadas de sedimentos de toda existência “séria”: religião, racionalidade, ego, etc.

O esquecimento que faz perdermos a luz espiritual interior é o tema principal do Gnosticismo. É esse esquecimento que nos torna prisioneiros de si mesmos e desse mundo inautêntico. E a gnose seria o momento de redescoberta daquilo que foi esquecido.

E no caso de Anders, um momento que veio tarde demais, somente nos momentos finais das últimas sinapses cerebrais.

Porém, esse elogio à infância deve evitar a armadilha rosseauniana de encarar o homem como bom por natureza e que depois é corrompido pela civilização.

Não se trata da questão de contrapor o lúdico da criança à “seriedade” do adulto. Trata-se de contrapor a boa-fé da infância (de acreditar naquilo que faz) com o cinismo e distanciamento irônico do adulto que finge acreditar naquilo faz através do cálculo racional dos efeitos e benefícios pessoais.

Se for verdade que nos últimos instantes da nossa existência assistimos a um filme das nossas vidas, certamente esse filme mostra tudo aquilo que esquecemos, os momentos preciosos deixados lá para trás, quando éramos crianças.

Assista ao curta abaixo. O vídeo possui legendas em inglês, mas há opção de legendas em português.


Ficha Técnica

Título: Bullet in The Brain
Diretor: David Von Ancken
Roteiro:  David Von Ancken, Tobias Wolff
Elenco:  Tom Noonan, Dean Winters
Produção: CJ Follini
Distribuição: YouTube
Ano: 2001
País: EUA

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