quinta-feira, setembro 21, 2017

Curta da Semana: "State of Emergency Motherfucker!" - distraídos venceremos!


Um fantasma ronda o Poder e o Estado. O fantasma da apatia e indiferença das massas para o quê quer eles façam ou planejem. Não por serem “alienadas”. Mas simplesmente porque as pessoas estão absorvidas pela absoluta banalidade da vida. Dois jovens muçulmanos comem kebab em uma lanchonete, concentrados num hilariante relato de uma aventura amorosa do Dia dos Namorados. Absolutamente distraídos e indiferentes à chegada de policiais que os abordam como os suspeitos de sempre, com ações cada vez mais invasivas e violentas. O que se segue é uma narrativa de humor surreal e absurdo: a contradição entre uma animada conversa sobre façanhas amorosas e a violência policial que não consegue quebrar a atenção daqueles jovens adolescentes. Esse é o curta State of Emergency Motherfucker! (Etat D’Alert Sa Mere!, 2017) do belga Sebastién Petretti.

Sob o rescaldo dos recentes atentados terroristas em Paris e Bruxelas, o diretor belga Sebastién Petretti teve o insight de fazer o curta State of Emergency Motherfucker! (Etat D’Alert Sa Mere!, 2017): como constante estado de emergência antiterror na Europa estigmatiza principalmente os imigrantes de origem muçulmana. Que para a polícia passam a ser os suspeitos de sempre, além vítimas da violência e preconceito nas suas vidas cotidianas.

Essa dualidade entre o dia-a-dia dos imigrantes (trabalho, diversão e lazer) e o constante estado de emergência das autoridades que os coloca sempre como os principais suspeitos é explorada de forma ao mesmo tempo cômica e violenta.

Samy e Mehdi são dois adolescentes muçulmanos que se encontram em uma lanchonete para comer kebabs. Mas principalmente para ouvir o relato de Samy sobre suas façanhas amorosas no Dia dos Namorados. E nada vai interromper a oportunidade dele contar uma boa história.

 A questão tanto para o seu amigo Mehdi como para o espectador é a resposta para a seguinte pergunta de conotação bem machista: e aí, comeu?

Mas Samy arrasta a história para entrar em detalhes, adicionando comentários e transformando a sua aventura afetiva em um conto épico.


Por si só a discussão entre os dois amigos é hilariante, até o momento em que policiais entram no local e pedem os documentos de identidades dos rapazes. Mas nada os distrai da conversa, que continua enquanto os policiais se preparam para dar uma enquadrada nos adolescentes.

Todo o curta se sustenta nesse ar blasé e indiferença dos protagonistas, imersos no relato de um Dia dos Namorados, e a ação dos policiais que progressivamente se torna cada vez mais invasiva, abusiva e violenta. A contradição entre uma conversa frívola travada em meio a violência pesada dos policiais contra os jovens. E eles não estão nem aí – nada interrompe o relato, levando a narrativa ao surrealismo e absurdo.

O curta consegue abordar um tema muito sério de forma divertida e engraçada, satirizando a expectativa de violência de uma minoria socialmente estigmatizada – uma perseguição tão cotidiana que é absorvida na rotina desse grupo social.

Porém, outro detalhe interessante é a figuração dos policiais: sua violência parece também ser ritual e rotineira. Há uma indiferença e tédio: prender os suspeitos de sempre para encaminhá-los “aos costumes”. Lembrando a sequência final do filme Casablanca (1942) onde o chefe de polícia ordenava por pura formalidade aos seus subordinados: “detenham os suspeitos de sempre...”.


A apatia das massas e o fim do social


A incrível indiferença dos jovens muçulmanos, absorvidos pelo relato da aventura romântica num Dia dos Namorados, suscita como uma metáfora uma das principais teses niilistas do pensador francês Jean Baudrillard (1929-2007): a morte do social e a ameaça do desaparecimento do Poder e da política.

No seu pequeno livro À Sombra das Maiorias Silenciosas, O Fim do Social e o Surgimento das Massas (Brasiliense, 1985), Baudrillard falava do “fim do social” não como uma trapaça do Poder para alienar as pessoas mas como uma espécie de “astúcia” das massas – o silêncio e indiferença pela absorção das pessoas pela absoluta banalidade da vida: cuidar dos filhos, namorar, picuinhas com vizinhos, pagar as contas, etc. A gestão da rotina e do que vai fazer no dia seguinte.

Baudrillard entendia por “astúcia” uma irônica rebelião das massas contra o Poder e o Estado: pela absoluta indiferença. E seria exatamente disso que a Política e o Poder têm mais medo: o fim da política por dissuasão e indiferença. Uma realidade bem diferente da alienação – um conceito que ainda subentende-se a existência algum sentido social que estaria sendo sequestrado por alguma ação política: censura, manipulação etc.

Assim como os jovens no curta, simplesmente a indiferença faria a sociedade pular fora do jogo do Poder – eleições, representação etc. Por isso a ansiedade atual do Poder exigir a participação da sociedade no jogo parlamentar e democrático: vote! Participe! Informe-se!

O Poder teme o “silêncio” das massas. Por isso as pesquisa, faz enquetes com elas, de todas as formas tenta faze-las falarem. Para Baudrillard o “fim” do social representaria uma irônica destruição do Poder pela sua absoluta inutilidade.


É o que o pensador francês chamava de “estratégias fatais” – as irônicas estratégias do objeto que resiste a qualquer tentativa de atribuição de sentido e lógica. Assim como o paradoxo da mecânica quântica no qual a nuvem de probabilidades no entorno do núcleo impede que o observador tenha uma figuração “real” do mundo microfísico.

Porém, o mais importante nessa provocativa tese é que o Poder tem consciência da sua própria inutilidade. É quando ele passa para o estágio da simulação: através da propaganda e meios de comunicação simula ter algum sentido e propósito – eleições, novos governos e golpes políticos se sucedem como uma monótona narrativa para as massas, mais preocupadas com seus afazeres do que com o show diariamente mostrado pelos telejornais.

Por isso o título do curta é bem exato: “estamos num estado de emergência, filho da puta!” como uma exortação para alguém que não está nem aí para a suposta gravidade política de uma situação.

Aliás, aos poucos o próprio Poder é progressivamente absorvido pela apatia das massas. Isso é mostrado no curta quando percebemos como os próprios policiais vão sendo absorvidos pela rotina burocrática: a tortura de suspeitos muçulmanos como mais um trabalho sem sentido e entediante.

State of Emergency Motherfucker! é talvez o curta mais político já visto por esse humilde blogueiro. Ironicamente, pelo seu argumento apolítico (e, por isso, anárquico) por trás da denúncia da estigmatização das minorias no atual estágio da guerra antiterror internacional.



Ficha Técnica

Título: State of Emergency Motherfucker! (Etat D’Alert Sa Mere!)
Diretor: Sebastién Petretti
Roteiro: Sebastién Petretti
Elenco:  Yassine Fadel, Illias Bouanane
Produção: Lovo Films, Abyssal Process, WFA Pictures, Squarefish
Distribuição: Vimeo
Ano: 2017
País: Bélgica

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