terça-feira, setembro 05, 2017

Poder, Nietzsche e fast food no filme "Obediência"



O telefone toca e uma estressada gerente de uma lanchonete fast food ouve a voz de um policial avisando que uma atendente da loja roubou dinheiro de uma cliente que veio prestar queixa. Nas próximas horas ela cegamente obedecerá as ordens de um suposto policial ao telefone para além dos limites dos seus valores e consciência. Baseado num caso real absurdo e bizarro em uma lanchonete McDonald’s nos EUA, o filme “Obediência” (“Compliance”, 2012) narra como a tendência humana de ceder à autoridade leva a atitudes tão irracionais como os maiores crimes da História: nós apenas sempre “obedecemos ordens”. Se para Nietzsche a consciência é a principal fonte de enganos como o medo e o espírito gregário, “Obediência” politiza esse insight do pensador alemão: as organizações sociais e corporativas verticalizadas nos tornam ainda mais vulneráveis. Mais uma sugestão do nosso indefectível leitor Felipe Resende.  

O homem é o mais medroso e desprotegido animal da natureza. Por isso necessitou do seu semelhante e fez surgir a consciência de si, a última e derradeira fase da evolução do sistema orgânico. É o que há de menos forte e acabado nesse sistema. Por isso, é a fonte de uma multidão de enganos – o seu espírito gregário e de submissão, para obedecer e fazer obedecer, por exemplo.

Nietzsche (1844-1900) afirmou isso no século XIX na sua obra A Gaia Ciência, bem antes da maior comprovação desse diagnóstico: o holocausto nazista promovido por subordinados imbuídos de autoridade e que apenas “cumpriam ordens” das autoridades superioras.

Mesmo depois da maior evidência empírica da História, pesquisadores ainda procuraram provas “científicas” para que fossem publicadas em anais acadêmicos. Como o famoso e controvertido Experimento Milgram sobre a obediência à autoridade realizado em 1961 pela universidade Yale no qual um avental branco de laboratório, estetoscópio e a prancheta do pesquisador Stanley Milgram conferiram autoridade suficiente para “cobaias” obedecê-lo a administrar choques elétricos em supostas vítimas atrás de uma parede (mesmo ouvindo gritos), apesar do experimento conflitar com a consciência e valores dos participantes.

Mas não é necessário chegar a tanto para sermos nietzschianos. Diariamente, pequenos golpistas, escroques de toda sorte e psicóticos comprovam o diagnóstico do pensador alemão. Talvez, esses membros da escória humana sejam os maiores psicólogos da consciência, explorando centímetro por centímetro nossas fraquezas, medos e ressentimentos.

Esse é o tema do filme Obediência (Compliance, 2012) baseada em um bizarro caso real de 2004 envolvendo uma lanchonete do MacDonald’s localizada em uma cidadezinha rural no estado de Kentucky. Uma gerente recebe o telefonema de um investigador da polícia denunciando que sua empregada roubou uma soma de dinheiro de um cliente.


E isso, em plena sexta-feira à noite, com a lanchonete lotada e desabastecida de picles e bacon. E para piorar, estavam sob a eminência da visita de um “cliente secreto”- um supervisor da rede disfarçado, misturado com o público para checar a qualidade do atendimento. A tempestade perfeita estava formada.

Uma situação na qual todas as fraquezas e vulnerabilidades da consciência humana, tal como descritas por Nietzsche há mais de um século, vêm à tona de forma incontrolável.

Como é impossível uma análise mais aprofundada do filme sem incorrer em spoilers, aconselho aos leitores mais intolerantes a “spoilers alert” a pararem a leitura nesse ponto, assistir ao filme e retomar a postagem.

O Filme – Aviso de Spoilers à frente


O dia de Sandra (Ann Dowd), gerente de uma lanchonete da fictícia rede Chicken Wich de frango frito, já começou conturbado: um funcionário deixou um freezer aberto no dia anterior gerando prejuízo de 15 mil dólares em picles e bacon estragados. É sexta-feira, dia de grande movimento, e um supervisor da rede fará uma visita de inspeção a qualquer momento, disfarçado de cliente.

O telefone toca e uma voz diz ser um policial chamado Daniels (Pat Healy) e pergunta se a loja tem uma atendente loura. “Sim”, Sandra responde. “Chama-se Beacky” (Dreama Walker). Daniels diz que na delegacia está uma cliente da Chicken Wich prestando queixa de que Beacky  roubara dinheiro da sua bolsa e que ele pode vê-la fazendo isso através da câmera de segurança.

Sandra conduz Beacky para um quarto privativo dos empregados enquanto o policial Daniels permanece na linha telefônica. Em seguida, a voz do policial, passo a passo, começa a orientar Sandra a fazer uma revista na atendente: a tirar cada peça de roupa e depois as roupas íntimas da funcionária.

Constrangida e perplexa, Beacky nada sabe sobre o dinheiro e, sem alternativa, obedece as exigências da voz do suposto policial, repetidas pela estressada Sandra – dividida entre os clientes que cada vez mais lotam a lanchonete, a falta de bacon e picles, o fantasma do “cliente secreto”, além de um potencial escândalo policial.

A voz do policial Daniels é ao mesmo tempo calma e determinada, sem deixar de fazer elogios à postura “profissional” de Sandra ao telefone e como está conduzindo aquele delicado caso.  O que cria entre ela e a voz ao telefone uma estranha variação da chamada “síndrome de Estocolmo”.


As exigências tornam-se cada vez mais invasivas, chegando à necessidade de revistar “as partes de baixo” da pobre Beacky já completamente nua e vestida apenas com um avental.

Em um ponto ainda recente da narrativa, Obediência revela que na verdade o “oficial Daniels” não é um policial, mas uma cara comum e de voz mansa que mantém a ligação enquanto tranquilamente faz um sanduíche na mesa de uma cozinha. Não há nenhuma sugestão que esteja sexualmente excitado divertindo-se em alguma espécie de jogo erótico sadomasoquista. Daniels parece apenas se divertir em perceber como as pessoas obedecem cegamente suas ordens.

Enquanto tranquilamente sai para fora para fumar um cigarro, Daniels constrói apenas com o seu tom de voz monocórdico e insistente um cenário imaginário no qual seus colegas policiais já estão revistado a casa de Beacky e o irmão dela também está envolvido.

As sequências de invasiva humilhação, chegando ao abuso sexual, são sempre comandadas pela voz de Daniels, sempre impondo sua autoridade de um suposto policial.

O filme foi baseado em uma caso real em 2004 de uma gerente de MacDonald’s que caiu na isca de um psicótico que tinha uma estranha necessidade de fazer as pessoas cometerem crimes de abusos somente obedecendo aos seus caprichos, sempre ocultados por trás de um personagem supostamente investida de autoridade.  Mas o pior de tudo é que não foi um caso isolado: o autor repetiu o trote outras 70 vezes em diversos pontos dos EUA.


Organização vertical nos torna vulneráveis


Duas coisas chamam a atenção na construção narrativa de Obediência: primeiro, como as técnicas vocais e recursos retóricos e entonações como uma narrativa radiofônica podem ser mais envolventes do que as imagens – a capacidade de visualizar os eventos em nossas mentes que tornam-se mais vívidos do que qualquer filme ou vídeo.

E segundo, como as primeira sequências do filme constrói a paisagem humana de pessoas comuns em um trabalho entediante, submetidos a uma rotina altamente hierarquizada (gerentes e supervisores em uma rede de fast food) submetida à pressão por desempenho.

Em outras palavras, a rotina do trabalho precarizado – são insistentes os closes na sujeira e gordura nos equipamentos e mesas da cozinha da lanchonete, e a aparência gordurosa e pouco saudável dos alimentos manipulados de qualquer jeito por empregados.

A gerente Sandra, sob pressão e responsável pelo desempenho de um grupo de empregados desinteressados e entediados, é a vítima perfeita do psicótico Daniels. Ele sabe que Sandra está costumada a obedecer irrefletidamente ordens e fazer os seus subordinados também obedecerem.  

Por isso, assistindo ao filme, a situação para nós parece totalmente irracional: como alguém obedeceria ordens de uma voz pelo telefone, executando procedimentos que claramente entram em conflito com seus próprios valores e consciência? Como ainda foi possível essa bizarra situação ser repetida outras 70 vezes?


Politizando Nietzsche


Claramente, é o Experimento Milgram na prática, fora dos laboratórios de psicologia da Universidade de Yale.

Certamente, na atualidade os melhores conhecedores das mazelas emocionais humanas são os psicóticos, escroques, estelionatários e pequenos golpistas. São os mais nietzschianos dos humanos, capazes de entender a combinação do medo e o espírito gregário em obedecer a autoridade do mais forte. E às vezes, a ambição do dinheiro fácil, como secreta vingança do ressentido contra o mais forte.

Mas o filme Obediência, por assim dizer, politiza Nietzsche: se o pensador alemão via esse espírito gregário como uma insuficiência humana decorrente de um incipiente estágio evolutivo orgânico, no filme as razões são sociais e da própria organização do trabalho: nos ambientes corporativos nos quais o trabalho alienante e repetitivo combinado com a cega obediência verticalizada é o cenário de vulnerabilidade psicológica perfeita para os planos de um psicótico.

E só para constar: na vida real, a atendente ganhou cerca de 6 milhões de dólares de indenização. A gerente foi demitida, mas processou a empresa e também recebeu uma indenização milionária.

E o psicótico do trote foi absolvido – alegou não ter cometido crime algum e  obedeceu quem quis. Como estava ao telefone não poderia ver o que ocorria. Portanto, não poderia ser responsabilizado.

 Esses verdadeiros atentados terroristas psíquicos talvez sejam, ironicamente, o gesto mais revolucionário da sociedade contemporânea: revelam de maneira nua e crua a miséria humana em uma organização social que nos torna ainda mais vulneráveis.


Ficha Técnica

Título: Obediência (Compliance)
Diretor: Craig Zobel
Roteiro: Craig Zobel
Elenco:  Ann Dowd, Dreama Walker, Pat Healy, Philip Etinger
Produção: Bad Cop Bad Cop Film Productions, Dogfish Pictures
Distribuição: Magnolia Pictures
Ano: 2012
País: EUA

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