terça-feira, outubro 17, 2017

A Caverna de Platão vai ao espaço em "Órbita 9"


Um thriller romântico que simula ser um thriller de ficção científica. Num futuro onde a única esperança para os humanos é colonizar um planeta distante para fugir da Terra esgotada em seus recursos naturais e climáticos, uma astronauta solitária espera a chegada de um técnico que consertará o sistema de ventilação da nave ameaçada de esgotar o estoque de oxigênio. Será o primeiro ser humano que verá em toda a sua vida, reclusa naquela nave desde que nasceu. Esse é o filme espanhol “Órbita 9” (2017) que logo no início do filme revela para o espectador o segredo que envolve o Projeto de colonização, sugerindo uma espécie de “Show de Truman” sci-fi com alusões à Alegoria da Caverna de Platão. Mas na medida em que a narrativa avança passa a hibridar gêneros, pondo o foco em uma simples história de amor impossível. Mesmo assim, “Órbita 9” suscita outros temas como bioética e clonagem.

Para muitos críticos, falar em cinema de ficção científica hispano-americano é um oximoro. Filmes do gênero (pelos menos os bons) são avis rara e contam-se nos dedos, pelo menos da produções que esse humilde blogueiro recorde: Moebius (Argentina, 1996), 2033 (México, 2009), curta Cybraceros (México, 1997), Sleep Dealer (México, 2008), La Hora Fria (Espanha, 2006), série 3% (Brasil, 2016) entre alguns que valem à pena ser citados.

Talvez por que a nossa cultura e organização social estejam mais próximos do realismo fantástico, do terror, do thriller policial e do drama social do que de um gênero que gire em torno do futuro e alta tecnologia.

Mas nas oportunidades em que aborda o gênero, apresenta uma percepção de futuro desgastada (“hipo-utópica”) no qual o amanhã parece mais o presente, apenas de forma exagerada, hiperbólica e bem carregado nas tintas. Como, por exemplo, na série 3% na qual vemos um Brasil “futurista” no qual uma elite meritocrática convive com a desigualdade, miséria e o crime organizado – basta ler os jornais para perceber que parece bastante com o presente.

Uma novidade é o sci-fi espanhol Órbita 9 (2017): rodado nas cidades de Medellín e Bogotá na Colômbia (no qual o contraste entre as favelas nos morros dessas cidades e um projeto militar de alta tecnologia envolvendo viagens espaciais dá a pitada hipo-utópica), também acrescente um curioso tom narrativo – simula um thriller de ficção científica mas na verdade nos entrega um thriller romântico.

Emula um estética futurista neonoir que nos faz lembrar alguns aspectos do clássico Blade Runner (1982) de Ridley Scott. Mas à medida que avança muda abruptamente o foco para se tornar uma simples estória de amor impossível como uma espécie de Romeo e Julieta high tech.


Um curioso filme híbrido que vai deixando pelo caminho temas importantes (bioética, clonagem, imigração espacial etc.) e suscita até temas filosóficos como a alegoria da Caverna de Platão, reality show científico e o relativismo da nossa percepção da realidade. Mas sem aprofundar-se, parecendo que esses temas são como iscas, migalhas de pão deixadas pelo caminho para seguirmos até vermos um velho e batido drama de um romance que é impedido pelos desígnios da Ciência.

Como um cientista pode querer se apaixonar pela cobaia de um experimento que, se for bem sucedido, poderá salvar a humanidade da própria extinção?

O Filme


 Acompanhamos Helena (Clara Lago) em uma nave espacial a caminho de um planeta chamado Celeste. Ela está naquela nave desde que nasceu como parte de um projeto para abandonar o planeta Terra, próximo a uma definitiva catástrofe climática, ambiental e humana com o esgotamento de todos os recursos e superpopulação. A colonização de outros planetas passou a ser uma questão de sobrevivência.

Os últimos três anos Helena passou solitária e acompanhada unicamente por uma inteligência artificial chamada Rebecca. Aparentemente ocorreu uma falha no sistema de ventilação da nave, provocando a visita de um técnico chamado Álex (Álex Gonzáles), o primeiro ser humano que Helena tem contato depois de anos.

Depois de começo ascético no qual se limita a seguir a rotina de Helena na nave espacial, a visita do técnico e o inevitável amor por Álex (é o primeiro ser humano que conhece), o diretor Hatem Kraiche entrega muito rapidamente o segredo que envolve o chamado Projeto Órbita que envolve a colonização do planeta Celeste.


Aparentemente Helena pertence às dez primeiras naves que chegarão ao planeta em uma viagem de 20 anos. Mas o que se supõe está muito longe da realidade: Álex na verdade não veio da Terra para consertar a nave, mas das instalações militares acima dos dez simuladores situados no subsolo da base. Uma experiência de 20 anos para analisar os sinais vitais e comportamentais das cobaias humanas, para atestar a viabilidade de futuras viagens espaciais tão longas.

Cientistas e engenheiros acompanham, tal qual um reality show, uma geração de “astronautas” que nasceram nos simuladores (ou “Órbitas”) e que acreditam estar rumando para as estrelas.

O filme entrega muito rapidamente a viragem da narrativa para depois se concentrar numa estória de amor impossível: de um engenheiro envolvido em um projeto militar secreto pela sua “cobaia” confinada numa ambiente simulado.

Tudo torna-se previsível: Álex vai desafiar todos os protocolos de segurança para resgatar Helena do Projeto Órbita e viver uma estória de amor perseguidos por militares aramados até os dentes e que não hesitarão em matar quem se colocar no caminho.

Uma Caverna de Platão no espaço?


   Ao fazer essa opção, Órbita 9 deixou para trás dois temas muito profundos que facilmente promoveria o filme a uma espécie de Show de Truman espacial com o requinte filosófico de uma alusão à Alegoria da Caverna de Platão. Mais precisamente, no momento em que Helena abandona o simulador/caverna do Projeto Órbita para, pela primeira vez na sua vida, ver o sol, sentir a terra e experimentar os pingos da chuva.

Helena nasceu no simulador e toma toda a percepção que tem do interior da “nave” e do visual do universo que tem das janelas como a própria realidade. Apesar das anomalias como a representação pobre e sem detalhes da visão do espaço através das janelas e a situação inverossímil de um técnico viajar anos da Terra à nave Órbita 9 apenas para consertar o sistema de ventilação.


O relativismo da percepção


De passagem, o filme mostra o relativismo da nossa percepção daquilo que entendemos como real. Assim como o pobre personagem Truman que tomava a gigantesca cenografia de Seaheaven como real (apesar das anomalias óticas como o horizonte muito próximo no mar artificial), da mesma maneira Helena toma como real todo o ilusionismo criado por engenheiros e cientistas do Projeto.

Vemos em cenas que Helena passa os seus momentos de lazer, fora da rotina de manutenção da “nave”, assistindo a filmes antigos. Mais um interessante tema que poderia ser um elemento narrativo: se a percepção humana é relativa, pode ser modelada através dos produtos audiovisuais – o Universo visto pelas janelas da nave simulada seriam legitimadas pelos sci-fis dos próprios acervos de filme da “astronauta”.

Algo como o documentário Wolfpack (2015) sobre a inacreditável história de sete irmãos que cresceram presos pelos seus pais em um apartamento em Nova York. Sem sair às ruas, tinham apenas os filmes hollywoodianos, principalmente as produções de Tarantino, como referências do mundo exterior. Passavam os dias reencenando as cenas ficcionais que assistiam. E tomavam como a própria realidade – sobre o filme clique aqui.


Narrativa em abismo


Também muito de passagem, Órbita 9 descreve o impacto de Helena diante do mundo real da superfície, perdendo a oportunidade de aproveitar o impacto perceptivo da personagem como mais um elemento dramático.

Mas o principal foi deixado para atrás: a oportunidade de transformar o mundo virtual criado pelos simuladores nos subsolos como microcosmos  ou alegoria do mundo real da superfície, o que tornaria Órbita 9 em uma excelente ficção científica gnóstica – Helena prisioneira em seu mundo, assim como cientistas e engenheiros na superfície.

Mas apesar de tudo, o filme apresenta uma curiosa metalinguagem ou, mais precisamente, uma narrativa em abismo: é um filme que simula ser do gênero ficção científica sobre uma protagonista prisioneira em uma simulação de uma aventura sci-fi de colonização de outro planeta.

Mas é justamente essa ignorância da protagonista (de forte apelo dramático e gnóstico) em não saber que em toda a sua vida foi uma prisioneira, que o diretor Hatem Kraiche simplesmente tratou de forma rápida e superficial. Transformar tudo em um híbrido de metalinguagem, sci-fi e thriller romântico. Uma pena!

Filme pode ser encontrado em arquivo torrent na Internet.


Ficha Técnica 

Título: Órbita 9
Diretor: Hatem Khraiche
Roteiro: Hatem Khraiche
Elenco:  Clara Lago, Álex González, Andrés Parra, Belén Rueda
Produção: Cactus Flower, Dynamo, Mono Films
Distribuição: Seville International
Ano: 2017
País: Espanha

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