sábado, dezembro 16, 2017

Nossas vidas são estradas e escadarias infinitas no filme "El Incidente"


Será que na realidade somos como pobres hamsters prisioneiros de uma roda que gira eternamente sem nos darmos conta da nossa terrível situação?  Será que repetimos sempre os mesmos gestos, em um mesmo cenário, sempre com os mesmos efeitos e as mesmas consequências? Poderia ser essa a definição de loucura: tentar resultados diferentes repetindo a mesma rotina? Duas estórias paralelas com personagens presos em loops espaço-tempo eternos – um grupo em uma escadaria e uma família prisioneira em uma estrada infinita na qual o sol nunca se põe. Esse é o filme mexicano “El Incidente” (2014) do jovem diretor Isaac Ezban. Uma ambiciosa ficção científica metafísica que aproxima as geometrias impossíveis de M.C. Escher com o universo conspiratória de Philip K. Dick, procurando aproximar a hipótese da existência dos mundos paralelos da cosmogonia dos diversos “céus” dos antigos gnósticos.

O surpreendente filme mexicano El Incidente, do jovem diretor Isaac Ezban, tenta responder essas questões através de uma ficção científica metafísica que mistura o pesadelo conspiratório de Philip K. Dick com o tempo/espaço impossível das gravuras do artista holandês M.C. Escher.

A estrutura temporal e espacial que nos cerca seria composta por realidades alternadas que são habitadas por personagens aprisionadas em um loop eterno, condenadas a transitar o mesmo espaço ad infinitum sem a possibilidade de encontrar uma saída.

Filmes sobre protagonistas prisioneiros em loops espaço-temporais são comuns no cinema, desde O Destino se Repete (1947): 12:01 PM (1990), Feitiço do Tempo (1993), Inferno na Estrada (1997), Primer (2004), Crimes Temporais (2007) ou Triângulo do Medo (2009). A diferença é que El Incidente faz uma abordagem através de uma cosmogonia gnóstica: uma certa concepção de que as energias que alimentam e põem em funcionamento esse mundo provêm de diversas realidades alternativas com protagonistas prisioneiros que sofrem ou têm prazeres. Mas de toda forma resistem. Infernos sem saída que geram energia que alimentam o nosso cotidiano.

Dessa maneira, El Incidente está muito mais próximo do universo conspiratório de Matrix do que dos habituais filmes sobre eterno retornos temporais.

Ao mesmo tempo El Incidente é uma alegoria sobre as dinâmicas sociais que aprendemos desde que somos criança e continuamos a repetir como adultos. O aspecto fatalista da existência como repetição. E o que é pior: e sempre esperamos pelo novo, apesar de repetirmos pensamentos e atitudes, muitas vezes da pior maneira possível.


É um filme ambicioso, que muitas vezes faz lembrar o teatro do absurdo de Esperando Godot de Samuel Beckett ou a peça de Sartre Entre Quatro Paredes – três personagens morrem e chegam a um Inferno sem demônios ou fornalhas: apenas quatro paredes que os condenam a conviverem por toda a eternidade confinados naquela sala.

Algumas vezes o roteiro se perde com ideias muito gerais, enxurradas de alusões como gravuras de Escher, o livro de K. Dick Time Out of Join (1959) e explicações abruptas. Parece que o roteiro não consegue conter o fluxo incontrolável de ideias do diretor Isaac Ezban.

Talvez seja o preço a pagar pelo atual cinema mexicano praticamente ter ignorado o gênero sci-fi. Por isso, Ezban parece querer fazer bastante barulho com sua “ficção científica metafísica”, como define. Mas os acertos parecem muito maiores do que as falhas e os exageros.

O Filme


El Incidente divide-se em duas narrativas paralelas que, a princípio, parecem não estar relacionadas. Na primeira estória acompanhamos os dois irmãos Carlos (Humberto Busto) e Oliver (Fernando Alvarez) com sérios problemas financeiros que veem seu apartamento ser invadido por um detetive da polícia corrupto (Marco – Raul Mendez) que tenta extorquí-los.

A segunda segue os passos de uma família que empreende uma viagem de férias: Sandra (Nailea Norvind), acompanhada de seu marido Roberto (Hernán Mendoza) um casal de filhos, pretendem fazer uma viagem de carro até o litoral.


Nas duas estórias ocorre um “incidente”: todos ouvem a certa altura um estrondo de uma grande explosão misteriosa e indeterminada, uma espécie de fratura tempo-espaço que, a partir daquele momento, altera totalmente o destino dos personagens.

Na primeira estória os irmãos reagem, um deles é baleado e fogem através da escadaria do prédio, perseguidos pelo policial. Após o misterioso “incidente”, as escadarias tornam-se infinitas, assim como a escadaria da gravura de Escher de 1951 – ao se chegar no andar térreo, transforma-se no nono andar. Todas as portas dos andares estão fechadas dentro desse loop espacial. E por uma estranha razão os produtos de uma máquina de refrigerantes e comidas são sempre repostos, assim como muitos objetos voltam a aparecer num estranho eterno retorno.

O mesmo ocorre na segunda estória: após o misterioso estrondo, a paisagem da estrada começa a se repetir: a mesma placa, o mesmo posto de gasolina, a mesma loja de conveniências etc. Uma estrada infinita onde sempre é dia e o Sol nunca se põe.

Os anos, décadas se passam com os personagens tendo sustento para viver, comida, água, espaço e companhia. Mas não conseguem sair dessas verdadeiras prisões espaço-temporais.

Passam-se os anos e a única coisa que se modifica são as relações pessoais: alguns personagens caem na decadência absoluta, outros começam a estabelecer estranhos rituais cotidianos e religiosos. Os mais jovens tendem a ser mais estoicos e resistentes, enquanto os mais velhos caem na melancolia, desespero ou puro hedonismo.

Em ambas narrativas os personagens parecem se transformar em espécies de novos Sísifos - aquele personagem mitológico condenado pelos deuses a empurrar perpetuamente montanha acima uma enorme rocha, para a pedra cair e repetir a mesma ação indefinidamente.

O curioso é que apesar do loop infinito, sua qualidades humanas continuam sendo mundanas: não gozam do rejuvenescimento, sofrem com o passar do tempo e, sem encontrarem respostas, são permeados pelo medo e desespero.


A magia do mundo é uma ilusão - aviso de spoilers à frente


Filmado com elegância, Ezban consegue transmitir a sensação claustrofóbica de confinamento, mesmo nos espaços abertos da estrada infinita: a repetição dos espaços, o sol escaldante, o cansaço palpável e o asfalto abrasador que consome todo o ambiente.

O leitor perceberá que Ezban é paciente para reunir as conexões e explicações necessárias. As relações temporais entre as duas narrativas paralelas e as hipóteses e conjecturas vêm abruptamente num inquietante terceiro ato.

O argumento de El Incidente é fatalista e melancólico: pensamos que somos livres e que nossos gestos e escolhas são regidos pelo livre-arbítrio. Porém a realidade não é assim: estamos submersos no presente e nosso estado mental é de semi-adormecimento onde a mente se deixa arrastar em calmantes rituais repetitivos cotidianos e religiosos que nos acalmam e criam uma ilusão de liberdade e controle.


Afinal, toda surpresa e magia do mundo seria nada mais do que uma ilusão criada por outros seres, algum arquiteto superior (um Demiurgo?), unindo universos por pares, fazendo cálculos secretos de correspondências (o hermético Princípio da Correspondência?) que dita nossos destinos e firma nossas sentenças. Pares de universos alternativos em cada qual nosso duplos riem e sofrem produzir energia que mantém todas as dimensões paralelas.

Uma leitura inicial do filme é vê-lo como uma alegoria de uma sociedade baseada na repetição de papéis que levam os adultos à melancolia e fatalismo, enquanto os mais jovens estoicamente tentam resistir a esse destino.

Mas El Incidente vai mais além, mergulhando na cosmogonia gnóstica em uma configuração muito próxima do cosmos como uma Matrix: diversas realidades alternadas (os antigos gnósticos chamavam de “diversos céus”) cujo propósito é nos aprisionar e extrair energia etérea que faz todo o Universo funcionar.

E como nos revela o alucinante terceiro ato final do filme, nem a morte é capaz de nos libertar – além dos “diversos céus” que precisamos atravessar (tendo o cuidado de não cair na armadilha dos loops espaço-temporais como figurados pelo filme) também estamos enredados pela maldição da reencarnação. A atração irresistível em recomeçarmos do zero, no sono do esquecimento, sob a ilusão do livre-arbítrio e imersos em repetitivos rituais diários que mantém um suposto controle sobre nossa existência.


Ficha Técnica 

Título: El Incidente
Diretor: Isaac Ezban
Roteiro: Isaac Ezban
Elenco:  Raul Mendez, Humberto Busto, Hernán Mendonza, Fernando Alvarez, Nailea Norvind
Produção: Morbido Films, Red Elephant
Distribuição: Shoreline Entertainment
Ano: 2014
País: México

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