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quarta-feira, maio 17, 2017

A obsessão pela felicidade: em defesa da melancolia


Neste momento a sociedade reúne todo um arsenal médico-terapêutico-psicológico-farmacêutico para extirpar o mal que atormenta milhares de almas: a melancolia e a depressão. O professor de literatura inglesa da Wake Forest University Erik Wilson vê na obsessão pela busca da felicidade na atual sociedade de consumo como uma desconsideração medrosa do valor da tristeza: a agitação da alma que se transforma no impulso vital de toda cultura próspera. Se o Prozac existisse desde séculos atrás, certamente não veríamos hoje muitas obras primas nos campos da literatura, pintura e ciências. Esse é o tema do recente livro de Wilson “Against Happiness: in praise of melancholy”

quarta-feira, maio 15, 2013

O gnosticismo pop está à frente dos gnósticos?


Vinicius Aldino, instrutor gnóstico (?), fala em uma emissora de TV no Rio Branco, Acre, sobre gnosis e o workshop “Meditação e Qualidade de Vida”. Para esse blog, acostumado com as representações da gnose e do Gnosticismo nos chamados filmes gnósticos como momentos radicais de iluminação espiritual que levam ao questionamento não só do status quo mas também daquilo que entendemos como “realidade”, surpreendeu a fala de Aldino: a meditação, como ferramenta para alcançar a gnosis e, ao mesmo tempo, melhora da concentração e eficiência profissional e dos afazeres do dia-a-dia, o que contraria toda uma filosofia historicamente herética, perigosamente aproximando-se das técnicas terapêuticas de autoajuda. Será que, paradoxalmente, o gnosticismo pop está à frente da própria prática gnóstica atual? Ou será que estamos enganados e Aldino pretende, na verdade, colocar um “Cavalo de Tróia” no interior do imaginário das técnicas de autoajuda?

Para aqueles que pesquisam o renascimento atual do Gnosticismo na cultura pop, como faz esse blog particularmente com o Cinema, a gnose dos protagonistas das narrativas ficcionais e toda a mobilização de simbologias e temas do esoterismo e hermetismo em filmes são encarados como decisivos momentos de autoconsciência e iluminação espiritual que desafiam sistemas opressores e explodem com aquilo que chamamos de “realidade”. Momentos de virada e transformação não só de personagens na ficção, mas, potencialmente, com os próprios espectadores desses filmes gnósticos. Apesar de serem filmes comerciais dentro dos preceitos dos gêneros hollywoodianos, eles virtualmente podem incutir a desconfiança em relação a instituições, expressar o mal estar da nossa cultura e a crítica.

Paradoxalmente, parece que esse renascimento pop do Gnosticismo apresenta um ímpeto mais transgressivo (e por isso fiel à sua história como tradição filosófica herética) do que o dos próprios gnósticos.

Pois nesta semana recebi um link com uma entrevista dada por Vinicius Aldino para uma emissora de TV em Rio Branco, no estado do Acre - veja o vídeo abaixo. O gancho da entrevista era um workshop que Aldino daria no Sesc local sobre técnicas de relaxamento e meditação. A introdução da entrevista feita pela apresentadora era essa: “saiba como melhorar a qualidade de vida sem gastar dinheiro. Quem explica como é Vinicius Aldino, instrutor gnóstico (?)”.

quinta-feira, outubro 04, 2012

Em busca do Cinema Acontecimento

Uma época em que o cinema não era apenas entretenimento, mas um acontecimento capaz de transformar vidas. Do início do cinema lembramos principalmente dos Irmãos Lumière e de Meliés. Mas poucos pesquisadores dão espaço para relatos sobre uma produção cinematográfica norte-americana do começo do século XX que tematizava os conflitos capital-trabalho, o sindicalismo e a dura vida de imigrantes e trabalhadores em fábricas e minas. O maravilhamento do primeiro público do cinema formado pelos estratos inferiores da sociedade ao se ver representado na tela transformava as primeiras salas de cinema em eletrizantes acontecimentos de participação e interatividade. Logo esses verdadeiros filmes-acontecimentos foram reprimidos e enquadrados por Hollywood e, a partir de 1924, considerados "anti-americanos" (comunistas) pelo Bureau of Investigation de Edgar Hoover. Desses primeiros tempos ficou o desejo da ruptura da ordem e da rotina que nos acompanha a cada ida ao cinema, o anseio pelo Acontecimento. 

Para a maioria dos espectadores, ir ao cinema não é uma atividade que esteja associada ao perigo e comportamentos transgressivos. Tido como um local onde fantasias podem ser vividas e tudo pode acontecer em um universo ficional, está mais comumente associado ao entretenimento ou, no mínimo, a uma fuga dos problemas ou do esquecimento momentâneo dos aborrecimentos do dia-a-dia.

Mas nem sempre foi assim ou, talvez, nunca tenha sido. De um lado há uma história descrita por pesquisadores que localiza no chamado primeiro cinema um tipo de experiência estética que não se resumia unicamente a uma forma de entretenimento: pelo contrário, era uma forma de experiência que poderia transformar vidas; de outro, pesquisas críticas que descrevem o cinema e a própria experiência estética como uma arena de tumulto e contenção, quebras e retornos à ordem, crítica e reação. Para esses pesquisadores, desde o primeiro cinema e a posterior industrialização, enquadramento e controle, o cinema traria ainda dentro de si a potencialidade em transcender a si mesmo, mudar vidas de espectadores, transformar a experiência estética em um acontecimento.

sexta-feira, março 09, 2012

Resposta ao Post "A Dialética Negativa: Theodor Adorno Gnóstico"

Por Douglas A. Remonatto 
Uma resposta de Douglas Remonatto (mestrando em Filosofia pela Universidade de Lisboa) à postagem anterior "Dialética Negativa  Theodor Adorno Gnóstico": Se Adorno revela-se gnóstico em sua Negative Dialektik (1966), mais gnóstico ainda é Hegel. Este esquema especulativo apresentado por Hegel é de origem claramente gnóstica, análoga à peregrinação pela qual a centelha alienada (pneuma) dos gnósticos regressa de seu exílio no cosmo à plenitude original (pleroma) via a um autoconhecimento essencialista e absoluto (gnosis)                                     
Se para Adorno a dialética positiva de Hegel erra ao abandonar a realidade concreta, ignorando a experiência do particular em prol de uma busca por transcendência através da “síntese do Espírito Absoluto”, para Hegel não buscar nada além da experiência pessoal é iludir-se com fragmentos do processo teleológico, sem nunca ter a possibilidade de contemplar o processo como um todo, nos privando assim de autodescobrirmos nossa essencialidade. 


E se Adorno revela-se gnóstico em sua Negative Dialektik (1966), mais gnóstico ainda é Hegel cujo pensamento filosófico tem por base o processo pelo qual, de uma situação alienada, o espirito passa a se encontrar em si mesmo através do conhecimento de sua verdadeira natureza absoluta. Este esquema especulativo apresentado por Hegel é de origem claramente gnóstica, análoga à peregrinação pela qual a centelha alienada (pneuma) dos gnósticos regressa de seu exílio no cosmo à plenitude original (pleroma) via a um autoconhecimento essencialista e absoluto (gnosis). 

quinta-feira, março 08, 2012

"A Dialética Negativa": Theodor Adorno Gnóstico (atualizado)

Ao ler dois tópicos do livro “Dialética Negativa” de Theodor Adorno ("Experiência Metafísica e Felicidade"e "Niilismo") encontramos uma crítica à religiosidade vulgar, aquela que iguala o impulso por transcendência à busca do chamado "sentido para a vida". Para Adorno, se manifestamos a dúvida se a vida poderia ser dotada de sentido é porque a existência não tem sentido mesmo: através dessa “via negativa” ele identifica nessa religiosidade vulgar um movimento que apenas reforça a Totalidade que cria em nós o mal estar e o desespero que nos faz em vão buscar um sentido para a dor. Mas Adorno surpreendentemente busca uma alternativa de libertação: o niilismo gnóstico e elege Marcel Proust como o exemplo para o seu projeto da "Dialética Negativa".

"O Todo é a Verdade" (Hegel)
"O Todo é o Falso" (Adorno)

Considerada a obra de maior envergadura do filósofo e expoente da chamada Escola de Frankfurt, Theodor Adorno, “A Dialética Negativa” (1966) é não somente um acerto de contas com o hegelianismo no último livro da sua vida. É também uma supreendente busca de esperança de saída após obras apocalíticas como “A Dialética do Esclarecimento” e todos os estudos em torno do conceito de Indústria Cultural que apontavam para cenários monolíticos de dominação do Capitalismo Tardio.

Através da “via negativa” Adorno vai buscar a alternativa na “metafísica em queda”, ou seja, ao invés de buscar a transcendência no Absoluto, ele vai encontrar a Verdade no particular, no precário, no singular, na experiência irreprodutível. Isto é, em tudo aquilo que a filosofia Ocidental liquidou em nome das abstrações (Logos, Deus, Mercadoria e Capital) e dos conceitos.

sábado, novembro 26, 2011

Alquimia e Morte em "Perfume: a História de um Assassino"

Considerado inadaptável à linguagem cinematográfica, o livro “Das Parfum” de Patrick Süskind foi finalmente roteirizado para o cinema em 2006. O resultado  foi o filme “Perfume: a História de um Assassino” (Das Parfum) pelo diretor Tom Tykwer de “Corra, Lola, Corra” (1998). O filme narra como a busca alquímica da quintessência dos perfumes (a soma das flagrâncias das mais belas mulheres do mundo) pode resultar em uma série de assassinatos. O anseio pela experiência do sublime e do espiritual pode se converter no seu oposto: a morte e o horror.

“Perfume: a história de um assassino” é um filme baseado no livro "Perfume" de Patrick Süskind de 1985. Vendeu mais de 15 milhões de cópias e foi traduzido para quarenta línguas. Süskind acreditava que somente dois diretores de cinema poderiam fazer justiça ao seu livro: Stanley Kubrick e Milos Forman. Mas o livro foi considerado inadaptável para a linguagem cinematográfica. No depoimento do roteirista do filme Bernd Eichinger: “o protagonista da estória não se expressa. Um escritor pode usar a narrativa para compensar isso; mas não é possível em um filme. O espectador só pode ter algum sentimento por um personagem se ele fala.”


Isso porque o protagonista (Jean-Baptiste Grenouille) é a própria encarnação do Absoluto no sentido metafísico.



Jean-Baptiste nasceu com um poder espacial: o sentido do olfato apuradíssimo, capaz de distinguir flagrâncias as mais refinadas e etérias em meio ao caos de percepções do cotidiano. Ele tinha um olfato extremamente desenvolvido, o que lhe permitia reconhecer os odores mais imperceptíveis. Conseguia cheirá–los por mais longe que estivessem e armazenava–os todos em sua memória, também excepcional para relembrar aromas. Nascido em um fétido mercado de peixes de Paris e jogado pela mãe, ainda recém-nascido, no meio de vísceras e escamas apodrecidas, o poder do protagonista é dotado de um simbolismo: a necessidade da transcendência do humano em meio ao caos disforme da matéria bruta.

terça-feira, novembro 30, 2010

Um Método Gnóstico para Preparação de Aulas e Apresentações: Bicicleta e Estados Alterados de Consciência

Deslocar-me de bicicleta para os locais das minhas atividades como docente (aulas ou apresentações) acabou despertando um interesse especial para um fenômeno: "insights", intuições ou "iluminações" que surgem do nada à mente silenciada pelo movimento repetitivo das pedaladas que, tal como um mantra, parece induzir a um particular estado de suspensão físico e mental.


Rumava de bicicleta para a Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, onde apresentaria o tema “Cartografias e Topografias da Mente” no VI Encontro Científico. Os conteúdos principais da apresentação já estavam prontos, através de uma postagem para esse humilde blog (veja links abaixo). Mas ainda não tinha um “gancho”, um bom início que convidasse os ouvintes à reflexão, e ainda não tinha um “grand finale”, um fechamento ou uma amarração bem clara para os conceitos.

terça-feira, outubro 26, 2010

A Experiência Cinematográfica pode ser Transcendente?

Aproximar o conceito de “transcendência” de Theodor Adorno (a experiência da alteridade, do “inteiramente outro”) com a experiência de transcendência como evento espiritual ou místico decorrente de um estado alterado de consciência é o desafio para a pesquisa atual sobre as conexões entre o Cinema e o Audiovisual com o Sagrado e Religioso. Se, como em toda obra de arte, o cinema busca ultrapassar a si mesmo ("transcendência"), talvez aí esteja uma explicação para o crescente interesse dos roteiros fílmicos pelo fantástico, o espiritual, o sincrônico, o místico e o gnóstico.

Quando Adorno apontava para a alteridade e transcendência contidas na arte, ele aproximava-se da temática central da Teologia Negativa: a busca do “inteiramente outro”, do “plenamente diferente”, do “diferente por excelência”, ou seja, aquilo que está além da representação. Adorno pensava o conceito de transcendência não no sentido religioso como epifania ou experiência mística de fato, de uma forma positiva. 

segunda-feira, abril 19, 2010

Reunião do Grupo de Pesquisas da UAM discute relações entre Gnosticismo e Cinema

No seminário avançado na última reunião do Grupo de Pesquisas sobre Religião e Sagrado no Cinema e Audiovisual da Universidade Anhembi Morumbi (UAM) aprofundou-se as discussões em torno da recorrência de elementos gnósticos na recente produção cinematográfica. Foi abordado desde a natureza do Sagrado na experiência da gnose presente nas narrativas fílmicas até a experiência tecnognóstica propiciada pela introdução do 3D no dispositivo cinematográfico.

Dando continuidade aos seminários avançados do grupo de pesquisas sobre Religião e o Sagrado no Cinema e Audiovisual da Universidade Anhembi Morumbi, apresentei os resultados das minhas pesquisas sobre Cinema e Gnosticismo. Participaram das intensas discussões do seminário na tarde do último sábado (17/04) o Prof. Dr. Luiz Vadico (professor do Mestrado da UAM), a Profa. Ilca Moya da UAM e Geraldo de Lima (Mestre pela UAM).

A apresentação se iniciou com a minha proposta sobre a busca pela “Negatividade do Sagrado”, já discutido em postagens anteriores neste blog (clique aqui para ler sobre o conceito de “negatividade do sagrado”). A partir da tese de doutorado de Eduardo Losso “Teologia Negativa e Adorno – a secularização da mística na arte moderna” (Faculdade de Letras da Universidade federal do RJ) onde se discute as diferenças entre Teologia Positiva, Teologia Negativa e Metafísica dentro do pensamento de Theodor Adorno, procurei traçar o gnosticismo como uma Teologia Negativa ou herética e como essa natureza se manifesta no filme gnóstico.

O primeiro aspecto é a diferença entre gnose e auto-conhecimento (tal como preconizado pela literatura de auto-ajuda) nos filmes gnósticos. Embora possamos qualificar a gnose como uma “reforma íntima” do protagonista, não se confunde com o auto-conhecimento. Enquanto a gnose se origina na Teologia Negativa (onde o indivíduo não se submete à Totalidade mas rompe com essa ordem criada pelo Demiurgo), ao contrário, o auto-conhecimento busca inserir o indivíduo numa totalidade racionalizante e confortadora (seja religiosa ou científica). Essa é a Teologia Positiva onde a verdade está na Totalidade e não na existência individual. Por isso, esse discurso da auto-ajuda ou New Age (“Somos todos um”) se converteria numa falsa experiência do sagrado, porque totalitária: o sagrado como uma percepção intuitiva do Todo. Diferente desse ideário, a gnose é a percepção intuitiva de uma ausência de sentido no Todo, porque constructu arbitrário e corrompido de um Demiurgo (o reality show de Show de Truman ou o mundo virtual da Matrix).

O segundo aspecto está na construção narrativa dos filmes gnósticos onde não há restabelecimento da ordem: nos filmes gnósticos o protagonista não é punido pela transgressão da ordem. Ao contrário das exigências decorrentes dos gêneros comerciais onde o clichê de quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem é dominante, no filme gnóstico a quebra da ordem não é punida, isto é, não há um restabelecimento da ordem (seja social, política, institucional, familiar, moral ou pessoal) com a punição das pretensões de ruptura das ilusões da realidade material.

Filmes 3D, Imersão e estado de suspensão gnóstica

Vadico propôs se os recursos digitais e do 3D no cinema estariam introduzindo não apenas a alteração da relação do público com o filme (de espectador passivo a uma relação de jogo) mas de criar uma experiência gnóstica de transcendência do corpo ao simular uma situação de imersão. Teríamos, dessa forma, a alteração não apenas da recepção como também do próprio dispositivo cinematográfico.

Para mim, essa aproximação das inovações tecnológicas do dispositivo cinematográfico e uma experiência espiritual tecnognóstica lembra o estado de “suspensão” de Basilides (filósofo gnóstico de Alexandria - 117-138 DC- possivelmente originário de Antioquia). Para ele, a gnose somente poderia ser buscada por um específico estado alterado de consciência: o silêncio, o esvaziamento da mente de todo ou qualquer pensamento pois a linguagem e o conhecimento são fontes de erro (Deus é inapreensível e icogniscível) e o estado mental de suspensão. Essa hipótese tecnognóstica no dispositivo cinematográfico mostrou-se interessante nas discussões, pois se associou ao personagem gnóstico do Viajante. A simulação de imersão do espactador no filme lembra um estado de suspensão (entre o corpo físico e a narrativa fílmica, isto é, o espectador tem a sensação de estar sendo impelido para uma outra dimensão sensorial mas, ao mesmo tempo, sabe estar em uma situação ficcional).

Como vimos em postagens anterioras desse blog a respeito dos protagonistas nos filmes gnósticos (clique aqui para ler), essas são características do personagem Viajante e o tema é “O Jogo”. Se a experiência de imersão do 3 D cria uma relação de jogo entre espectador e narrativa fílmica, estaríamos diante de uma tendência onde o filme gnóstico (como Avatar, por exemplo) estaria explorando a recorrência de elementos do gnosticismo não apenas na narrativa, mas, inclusive, na relação do público com o dispositivo ao simular estados alterados de consciência tecnognósticas.

Isso suscitou outra questão: qual o sentido dessa experiência “tecnognóstica”? É uma verdadeira experiência de gnose ou de sagrado? Isso levou a lembrar das críticas de autores como Erick Felinto e Theodore Roszak (veja de Felinto o livro “Religião das Máquinas” e de Roszak o livro , “From Satori to Silicon Valley: San Francisco and the American Counterculture”) fazem dessa aproximação paradoxal entre novas tecnologias e o impulso místico do Gnosticismo. Roszak, ironicamente, afirma que a tecnologia seria um “atalho para Satori”, um atalho para mais rapidamente alcançar o descarte da existência física do corpo.

Lembrei que devemos diferenciar entre duas vertentes históricas do Gnosticismo, a partir do Gnosticismo clássico do início da era cristã: o Gnosticismo Cabalístico e o Gnosticismo Alquímico. Enquanto o primeiro vê a matéria como disforme, caótica e sem vida própria, necessitando ser organizada e vivificada pelo espírito (e, por esse motivo, encarada como grilhões que confinam a plenitude espiritual), no segundo a matéria não deve ser simplesmente descartada, mas redimida (a manipulação alquímica da matéria tem a ver com o próprio refinamento espiritual). Esse tecnognosticismo cinematográfico se enquadraria nessa busca de um atalho para a gnose, de forma rápida, lúdica e irrefletida. Essas formas tecnognósticas levariam a conseqüências como o solipsismo e a uma liquidação do indivíduo no interior de uma totalidade tecnocientífica.

segunda-feira, março 08, 2010

Da Jornada do Herói de Vogler à Jornada do Herói do Filme Gnóstico

A mítica Jornada do Herói descrita por Vogler como a base universal de todo roteiro parece se assemelhar à jornada da narrativa do protagonista do filme gnóstico (Queda, Ascensão, Plenitude). Porém, há uma diferença essencial: a Teologia Negativa

Na semana passada, durante a aula da disciplina Estrutura de Roteiro ministrada por mim no curso de Comunicação (Publicidade e Propaganda) da Universidade Anhembi Morumbi (UAM), discutíamos o personagem mítico do Herói, tal qual descrito por Christopher Vogler no livro Jornada do Escritor. Baseado nas idéias do historiador e pesquisador em Mitologias Joseph Campbell, a Jornada do Herói com toda a galeria de personagens (o Pícaro, a Sombra, o Arauto, o Camaleão etc.) seria, para Voegler, a estrutura narrativa básica de todo ou qualquer roteiro cinema por se basear em um modelo de narrativa mítica presente em todas as culturas e épocas.
O que chama a atenção na descrição de Vogler é o motivo que impulsiona o herói a iniciar a jornada mítica:

“O estímulo para esta jornada é a mudança de algo em seu mundo comum, e ele parte para buscar a restauração deste mundo, ou ele está insatisfeito em seu mundo e parte para provocar uma mudança. Em ambos os casos o motivo da jornada é a falta de alguma coisa. O herói se sente incompleto e vai em busca de sua plenitude. O resultado é a transformação do próprio herói. Mesmo que o ambiente não se altere o herói não o enxerga mais da mesma forma.” VOGLER, Christofer. A Jornada do Escritor)

Para muitos leitores desse Blog ou que acompanham as discussões sobre o filme gnóstico, essa descrição feita por Vogler parece se assemelhar em muito com o protagonista do filme gnóstico. Os estados alterados de consciência dos protagonistas gnósticos (a suspensão do Viajante, a paranóia do Detetive e a melancolia do Estrangeiro) partem também de insatisfações e incompletudes. Todos buscam a plenitude.
Porém, com uma diferença fundamental: a Teologia Negativa. Ou, em termos fílmicos, a ruptura com a ordem ou totalidade. O protagonista gnóstico não só se transforma interiormente como essa renovação implica a ruptura, in totum, com uma percepção ontológica do real.

Uma pequena história da "quebra da ordem"

A história da “quebra da ordem” no cinema é interessante. No chamado “cinema slapstick” (os filmes mudos “de pastelão”), a trajetória do herói o conduz ao clássico happy end anárquico: os heróis vencem os desafios e limitações impostos pelo sistema (social, policial, econômico etc).

Como, por exemplo, no antológico final do filme de Harold Loyd O Homem Mosca (The Safety Last, 1923) onde, após escalar um prédio com as próprias mãos em busca de emprego e casamento, apesar de atrapalhado seguidamente por um policial, vence todos os percalços, chega ao topo e encontra sua noiva para o beijo final.

Aliás a figura do representante da ordem, o policial, é ridicularizada. Desde o grupo The Keystone Cops (um ajuntamento de policiais desajeitados que cada missão se reverte em catástrofes que pervertem a ordem), a figura do policial é ridicularizada e nunca consegue prender ninguém. Os personagens de Chaplin, o Gordo e o Magro, Harold Loyd e, mesmo na fase sonorizada, os Três Patetas, sempre escapam da polícia, denunciando a hipocrisia da Lei a inutilidade em aderir ao sistema.

Com a depressão econômica pós crash da Bolsa de Nova York em 1929 o proletário se retira do cinema para dar lugar às classes médias, exigindo um enquadramento moral e político na produção cinematográfica. Principalmente a partir dos filmes musicais, o esquema passa a ser quebra e retorno da ordem constante nas narrativas. Por exemplo, nos musicais todos começam a cantar e dançar e, de repente, retornam aos seus papéis sociais como se nada tivesse acontecido. Essa autêntica fantasia-clichê se desenvolve, varia e se atualiza ao longo das décadas e gêneros cinematográficos.

Desde os filmes de terror (onde o monstro ou serial killer assassina primeiro jovens que fazem sexo, consomem drogas ou, simplesmente, desobedecem os pais), passando por road movies (como em Sem Destino - Easy Rider, 1969 - ou Thelma e Louise - Thelma e Louise, 1991 - onde os protagonistas morrem após romperem a ordem) até os filmes policiais ou de ação (onde o happy end, diferente dos filmes slapstick, é moralista com o herói restabelecendo a ordem política e social), temos diversas variantes dessa fantasia clichê.

Já os filmes gnósticos apresentam uma peculiar forma de ruptura com a “ordem”: a gnose. Mas essa ruptura não é apenas uma ruptura com a ordem política ou social, mas a ruptura com a própria noção ontológica de realidade. A ruptura com a Totalidade e com racionalizações confortantes que abrigam o indivíduo dentro de um “sentido” ou “propósito”.

Vejamos dois filmes que trabalham com um tema potencialmente gnóstico: o simbolismo do controle remoto como um aparelho que altera ou interfere não apenas na TV mas na própria realidade presentes em A Vida em Preto e Branco (Pleasantville, 1998) e Click (Click, 2006).
Em Click um arquiteto workholic ganha um estranho controle remoto universal que lhe permitirá acelerar ou retroceder as situações de diferentes partes da sua vida. O que poderia dar margens a questionamentos ou, no mínimo, ao medo ou êxtase metafísico ou filosófico, ao contrário, reverte-se num imediato interesse instrumental: acelerar as partes “chatas” da vida (jantar com a família, levar o cão para passear, carícias preliminares com a esposa antes do sexo etc.) para que ele possa se concentrar no trabalho.

A narrativa se desloca do potencial interesse metafísico ou gnóstico (a realidade como um constructu, uma artificial sucessão de imagens holográficas) para um viés moralista, onde o protagonista será punido por romper com os valores familiares.
Ao contrário, em A Vida em Preto e Branco, outro estranho controle remoto ganho de um não menos estranho técnico de TV, fará dois jovens serem tragados para o interior de uma série televisiva dos anos 50. Essa jornada fará os jovens heróis questionar não só os valores do mundo em preto e branco da década de 50, como os valores da atualidade deles (os anos 90). Os seus questionamentos serão marcados por uma forte simbologia e iconografia de origem bíblica do Velho Testamento (Paraíso, maçã, dilúvio, arbustos incandescentes etc.).

É a partir desse estado alterado de consciência iniciado pelo controle remoto, que os heróis vislumbram uma outra realidade que transcende aquela da tela de TV ou da realidade dos jovens da década de 90 dominado pelas imagens da MTV.

Assim como a mítica jornada do herói descrita por Voegler, os protagonistas realizam uma transformação íntima. Porém, isso implica em ruptura e transcendência (ou “quebrada ordem”, em termos fílmicos). A totalidade seja social ou divina/cósmica é negada: nem a ilusão e muito menos a ilusão de realidade, mas a busca de um terceiro elemento para além das oposições ou dualidades que esse cosmos nos impõe.

Tal qual a Teologia Negativa que revela a existência de Deus a partir da sua negação (ou da impossibilidade da linguagem expressar a sua existência) e, como pretende Theodor Adorno com a sua dialética negativa ("Dialética Negativa é Teologia Negativa", afirmava), revelar a falsidade do Todo buscando a transcendência no particular ou individual, o filme gnóstico busca a partir da negação (ás vezes niilista) da ordem de uma totalidade (social, divina, religiosa) a plenitude última que seria a superação dos termos do cosmos material presente.

A "transformação" do herói ao final da jornada mítica como descrita por Vogler é ainda marcada pela positividade: é muito menos uma transformação e muito mais uma adaptação íntima a uma totalidade que o envolve. A penalidade seria a da morte trágica, como ao final do filme Thelma e Louise.

domingo, fevereiro 28, 2010

Gnose e estados alterados de consciência em filmes

Melhor que qualquer outro meio artístico, o cinema dilui as fronteiras entre o mito e a realidade. É partindo dessa idéia que o livro The Secret Life of Movies - Schizophrenic and Shamanic Journeys in American Cinema de Jason Horsley explora não apenas o reino do insconsciente social mas, principalmente, a potencialidade desse meio proporcionar a experiência da gnose.

Este livro examina cineastas e filmes que se centram em torno de temas da alienação esquizofrênica, paranóia, discriminação, fantasia, sonhos, a demência e a violência. A perda da identidade individual, tal como refletida nos filmes, é investigada, assim como a potencial "viagem xamânica" ou a gnose inerente ao tema.

No programa radiofônico norte-americano Aeon Byte Gnostic Radio Show (veja o link na nossa lista de blogs recomendados), Jason Horsley foi entrevistado e fez a seguinte observação sobre o gnosticismo no cinema:

Se a vida imita a arte, o meio mais popular para a arte nos dias de hoje expõe uma civilização que se tornou cada vez mais fragmentada, sem contato com realidades mais profundas, e lutando para encontrar individuação. Além do aparente aumento de filmes com temática gnóstica, os grandes filmes culturais, atores e diretores de nossa era levantam um espelho para a humanidade expondo uma luta desesperada pela sobrevivência em um mundo pós-moderno, a paranóia que envolve as conquistas modernas e instituições, e o medo pela existência de um universo vazio governado por poderes das trevas. No entanto, o espelho também lança a possibilidade de uma iniciação alquímica que inicie uma viagem de regresso do homem à sua origem espiritual, escondida no meio da aridez das narrativas esquizofrênicas. Desde o niilismo de Hitchcock ao Logos existencial de 'The Matrix', da desolação do cinema western at até as entregas sombrias de Johnny Depp, buscamos essa centelha de redenção e gnose em suas mensagens junguianas.


O livro de Horsley corrobora com nossas pesquisas sobre a recorrência dos temas e simbolismos gnósticos no cinema. A gnose como uma abertura para uma realidade transcendente por meio de estados alterados de consciência (suspensão, melancolia e paranóia, como descreveram os grandes pensadores gnósticos do início da era cristã como Basilides, Mani e Valentim) é descrita por ele nos termos de uma jornada xamânica. Levanta um importante aspecto sobre a experiência do sagrado tal qual dessenvolvemos nos termos de uma Teologia Negativa: o sagrado é uma experiência alquímica que se inicia no mal estar e na dor que a Totalidade impinge ao indivíduo. Ao invés de negada (terapeutizada ou racionalizada) ela deve ser aprofundada ao ponto que se torne num estado alterado de consciência, a abertura para a gnose e a transcendência. Como salienta Horsley em seu livro, o cinema é o principal meio artístico para expressar essa experiência.

Jason Horsley foi por muito tempo crítico de cinema. Além disso é autor de um romance, roteiros e vários livros de não-ficção sobre o cinema moderno. Seus projetos incluem a produção dos filmes The God Game, Beauty Fool e Being The One. De origem inglesa, vive atualmente no Canadá.

sábado, fevereiro 20, 2010

Em busca da Negativade do Sagrado

Devemos buscar na experiência fílmica os momentos onde a narrativa não retorna à ordem, onde os conflitos não são conciliados, onde as sequências finais do filme não se integrem a uma totalidade (retorno à ordem), mas deixe ao espectador o vazio cognitivo, a ambigüidade.


Para esse blog o conceito de sagrado deve ser buscado a partir do referencial de uma Teologia Negativa. Por que?

Assistimos neste início de século a uma onda de filmes documentários ou ficcionais que falam em nome de uma experiência sagrada, jornada espirituais de auto-conhecimento etc. que ou vão de encontro ao universo da auto-ajuda e do espiritualismo new age ou, mais filosoficamente elaborados, falam de uma unificação entre Ciência e Religião e a unificação de todos os dualismos presentes nos discursos religiosos ou científicos.

O problema é que tanto essa concepção do sagrado associado ao espiritualismo como o discurso da crítica aos dualismos da Ciência e Religião partem de uma mesma matriz teológica: a Teologia Positiva. Ao contrário da Metafísica, a Teologia, como sabemos, acredita na realidade transcendente como já existente. E este transmundo sagrado ou divino só pode ser uma totalidade, que antecede a existência individual. Enquanto esta possui uma existência descontínua marcada pela morte, aquela é eterna, e, por isso, verdadeira.

Diferente disso, a metafísica traria potenciais elementos negativos para a formação de uma Teologia negativa. Vejamos essa distinção entre Metafísica e Teologia feita por Eduardo Losso a partir de um texto de Adorno:
“A diferença entre a metafísica e a religião consiste no fato de aquela não se dirigir a um deus pessoal ou a um elemento transcendente existente. Não é uma ciência, antes, procura pensar algo “atrás do mundo”, ou um outro mundo oculto, acentuando a diferença entre essência e aparência. Se a religião possui uma essência divina e absoluta, a metafísica pensa no problema da relação entre esse sentido anterior , dessa essencialidade com o mundo da aparência. (...) A metafísica não postula a divindade e não dá a ela uma forma determinada como os teólogos.(...) Adorno não disfarça uma defesa da metafísica, precisamente nesse aspecto, ao afirmar que ela possui a qualidade de não se contentar com o que é, nem dizer que o que não é existe. Se religiosos precisam da segurança de afirmar a existência do não-existente, o metafísico, bem mais realista e idealista, recusando por isso mesmo ilusões, deseja o não-existente sem afirmá-lo.” (LOSSO, Eduardo Guerreiro B. Teologia Negativa e Adorno – A secularização da mística na arte moderna. Tese Doutorado Faculdade de Letras da UFRJ, 2007, p.112-3)


“Desejar o não-existente sem afirmá-lo” é, talvez, a essência da Teologia Negativa que se contrapõe à positividade tanto da teologia quanto do sagrado.
A Positividade tanto da ciência como da religião partem de uma ordem supra (a totalidade divina ou natural) já existente, cabendo à ciência (por meio do método) reconstituí-la ou a religião (por meio da fé) possibilitar a experiência do sagrado. Nesse sentido, o Sagrado passa a significar uma experiência mística ou de fé que se apodera do indivíduo, fazendo-o vislumbrar sua conexão com o Todo ou a Verdade.

Ao contrário, ao “desejar o não-existente sem afirmá-lo”, temos uma reversão tanto da metafísica quanto da teologia, a negação da totalidade diante da experiência concreta do indivíduo. A experiência negativa do sagrado passa a ser não a anulação do indivíduo ao conectar-se com um Todo (“somos todos um”, slogan totalitário da espiritualidade New Age), mas, diferente disso, somente pode ser a experiência dolorosa de ruptura com uma totalidade falsa e inautêntica. Enquanto a religião transmite uma suposta segurança de que estamos amparados por uma totalidade que nos consola, a negatividade sagrada eleva ao nível do conceito o mal estar e a dor do indivíduo integrado forçosamente a totalidades ou sistemas (social, político, religioso, metafísico etc.).

Buscar a negatividade da experiência do Sagrado é buscar esses momentos onde o indivíduo eleva o mal-estar no mundo ao nível do conceito (gnose?). Vanish points, momentos em que pressentimos a inexistência dessa totalidade simultaneamente autoritária e confortadora. Esses momentos são aqueles de ruptura e transformação originados em estados alterados de consciência: suspensão, paranóia ou melancolia. Enquanto a consciência moral positiva, a religião ou simplesmente o bom senso qualificam a dor individual como limitações de potenciais, erros, pecados, fraquezas, é precisamente aí, no aparente niilismo, na negação de todo e qualquer sentido totalizante que reside a verdadeira experiência transcendente. Lá onde tudo parece indicar precariedade, insuficiência está a verdadeira transcendência onde o espírito anseia elevar sua existência física a uma supra-realidade ainda não existente.

A experiência do sagrado, nesse sentido, é muito mais o desejo individual por transcendência do que a transcendência já existente, elevação para uma dimensão já pré-existente ao indivíduo. Assim como a Teologia negativa afirma a existência de Deus pela sua negação (“Se Deus está ausente é porque é necessário que exista; se ele não existisse não poderia estar ausente”), a negatividade do sagrado nega uma transcendência já existente em nome do desejo por uma supra-existência que ainda não existe.

O discurso do sagrado que invade a produção audiovisual e cinematográfica atual confunde imanência com transcendência. Produções como “Somos Todos Um”, “Quem Somos Nós” vendem uma suposta transcendência ao falar de busca de um propósito, sentido para a vida, conexão com um todo, consciência cósmica. Essa abstração somente pode ser a das totalidades bem conhecidas (mercado, sociedade, corporação etc.) às quais o indivíduo deve se integrar forçosamente, superando seus “medos” e “limitações”. É aí que reside o aspecto crítico da negatividade do sagrado: o desejo por transcendência só pode significar a ruptura com essas totalidades.

Por isso devemos buscar na experiência fílmica os momentos onde a narrativa não retorna à ordem, onde os conflitos não são conciliados, onde as sequências finais do filme não se integrem a uma totalidade (retorno à ordem), mas deixe ao espectador o vazio cognitivo, a ambigüidade. Onde a experiência de retorno à realidade após serem acesas as luzes da sala de exibição não seja de reconfortadora harmonia após ver protagonistas que abandonaram o desejável pelo possível, justificando a resignação individual em relação à vida. Momentos onde o mal-estar individual em relação ao mundo seja elevado ao conceito e se expresse por meio das alterações de consciência (suspensão, paranóia e melancolia) que vislumbre a possibilidade de uma existência inteiramente outra, o desejo pela transcendência.

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terça-feira, fevereiro 16, 2010

Perfume: o assassinato do indivíduo pelo Sagrado

Perfume: a História de um Assassino (Das Parfum, 2006) supera as dificuldades de adaptação do livro à linguagem cinematográfica e faz uma fábula da condição do indivíduo diante de uma suposta experiência do Sagrado que liquida o individual em nome de um Absoluto.

“Perfume: a história de um assassino” é um filme baseado no livro Perfume de Patrick Süskind de 1985. Vendeu mais de 15 milhões de cópias e foi traduzido para quarenta línguas. Süskind acreditava que somente dois diretores de cinema poderiam fazer justiça a seu filme: Stanley Kubrick e Milos Forman. Mas o livro foi considerado inadaptável para a linguagem cinematográfica. No depoimento do roteirista do filme Bernd Eichinger: “o protagonista da estória não se expressa. Um escritor pode usar a narrativa para compensar isso; mas não é possível em um filme. O espectador só pode ter algum sentimento por um personagem se ele fala.”

Isso porque o protagonista (Jean-Baptiste Grenouille) é a própria encarnação do Absoluto no sentido metafísico.

Jean-Baptiste nasceu com um poder espacial: o sentido do olfato apuradíssimo, capaz de distinguir flagrâncias as mais refinadas e etérias em meio ao caos de percepções do cotidiano. Ele tinha um olfato extremamente desenvolvido, o que lhe permitia reconhecer os odores mais imperceptíveis. Conseguia cheirá–los por mais longe que estivessem e armazenava–os todos em sua memória, também excepcional para relembrar aromas. Nascido em um fétido mercado de peixes de Paris e jogado pela mãe, ainda recém-nascido, no meio de vísceras e escamas apodrecidas, o poder do protagonista é dotado de um simbolismo: a necessidade da transcendência do humano em meio ao caos disforme da matéria bruta.

Embora o filme tenha a alquimia como o pano de fundo dos processos de destilação para as descobertas das essências dos perfumes, não parece ser esse o tema do filme. A Alquimia busca não apenas transcender a matéria, mas redimi-la. Buscar no material a quintessência que refina o espírito. Ao contrário, a ambição de Jean-Baptiste é buscar preservar a flagrância para além da destilação. Aprender a preservar a flagrância para nunca mais perder tal sublime beleza. Ganancioso, seu objetivo era o de possuir tudo o que o mundo lhe pudesse oferecer no que diz respeito a odores.

Para ele, não importava os indivíduos, reduzidos a meros recipientes de algo mais refinado: a flagrância. De pesquisador torna-se um assassino em série, obcecado pela busca da flagrância que seria a síntese sublime e espiritual de todos os odores das mais belas mulheres do mundo. Ao contrário da Alquimia, sua experiência de Sagrado advém de uma Teologia Positiva. Jean-Baptiste está mais próximo da Ciência moderna e do racionalismo do que do misticismo alquímico. O assassinato ritual das vítimas corresponde à liquidação do indivíduo ou da parte pela Totalidade no racionalismo. O sacrifício de meros espécimes para se confirmar a Verdade que está no Todo. Em síntese: Jean-Baptiste Grenouille é o arauto dos novos tempos que estão por vir, os tempos atuais do racionalismo científico onde o indivíduo é esvaziado de sentido para se encaixar dentro de uma ordem totalitária.

A morte do perfumeiro Baldinni (Dustin Hoffman) é simbólica no filme: representa o fim de uma era em que os processos alquímicos implicavam em humildade e ética, para serem superados pela fúria faustiana de Jean-Baptiste onde os fins justificam os meios.

A sequência final da execução de Jean-Baptiste é emblemática. Caminhando para o cadafalso, secretamente trazia em seu bolso o frasco com o perfume resultante da busca da sua vida: a quintessência do odor dos corpos de todas as belas mulheres. Através de um lenço, espalha a flagrância por toda a praça onde se concentrava a multidão sedenta por assistir o espetáculo da execução do assassino. Inebriados pela flagrância sagrada, todos vêem Jean-Baptiste como um anjo, clamam pela sua inocência e a praça inteira converte-se numa imensa orgia. Os planos gerais que mostram centenas de corpos nus participando da frenética orgia são simbólicos: os corpos individuais se anulam dentro de um imenso conjunto de corpos comandado pelo perfume, síntese resultante de uma série de assassinatos.

Essa opressão da parte pelo todo lembra a irônica pergunta de Baudrillard: em meio a uma orgia um homem pergunta para uma mulher “O que você vai fazer depois da orgia?”

Essa experiência de um certo tipo de Sagrado (uma concepção de Sagrado proveniente de uma Teologia Positiva como a experiência da conexão de uma parte a um Todo, negando toda e qualquer experiência individual como caminho para transcendência) poderia trazer um poder infinito para Jean-Baptiste: todos os reinos e países cairiam de joelhos diante dele, confundindo-o com um enviado de Deus e a experiência de sua flagrância como a verdadeira experiência do Sagrado.

Mas ele descobre que jamais será amado por isso. Submetido a vida inteira a uma auto-anulação, confinado a uma existência suprimida, miserável, onde seus desejos individuais nada representavam diante da ambição sagrada pela utopia dos odores, ao final manda tudo para o inferno. Retorna ao local onde nasceu (o mercado de peixes) e lá se deixa ser destroçado pela massa de mendigos: joga todo o recipiente do sagrado perfume sobre si, atraindo a fúria do extase de todos ao redor. Todos se jogam sobre ele, tentando arrancar a todo custo um pouco da flagrância sagrada. Final simbólico: diante do vazio da abstração dessa experiência sagrada (não há amor ou concreticidade, apenas a anonimata Totalidade) a metafísica entra em queda – o Todo é absorvido pelas partes, a entidade abstrata é destruída pela concreção. E nada mais simbólico do que tudo esse desfecho acontecer num fétido mercado de peixes: a vingança do físico, do vital contra uma totalidade abstrata.

O verdadeiro tema do filme não é a utopia dos odores ou a dimensão sagrada por trás da sensibilidade olfativa. Apesar de Jean-Baptiste ser movido por um talento instintivo e selvagem, a ambição fáustica pelo poder faz ele entrar no lado escuro do movimento da razão e do conceito: quanto mais tenta apreender o objeto mais o destrói. De Marquês de Sade a Adorno e Horkheimer essa é a Dialética do Esclarecimento: o movimento cada vez mais abstrato do conceito conduz à frieza progressiva do sujeito que vê nos objetos simples espécimes que devem comprovar uma verdade universal. A liquidação do objeto é o sacrifício necessário dentro desse ritual da adoração de uma entidade sagrada secularizada em conhecimento abstrato.

Esse é o verdadeiro tema do filme “Perfume”: no século XVIII Jean-Baptiste é o arauto dos novos tempos – a dialética do esclarecimento presentes tanto na religião como na ciência.

Ficha Técnica:

  • Direção: Tom Tykwer.
  • Roteiro: Andrew Birkin, Tom Tykwer, Bernd Eichinger.
  • Produção: Bernd Eichinger.
  • Edição: Alexander Berner.
  • Música: Johnny Klimek, Reinhold Heil e Tom Tykwer.
  • Elenco: Alan Rickman (Antoine Richis), Ben Whishaw (Jean-Baptiste Grenouille), Dustin Hoffman (Giuseppe Baldini), John Hurt (Narrador), Karoline Herfurth, Michael Smiley (Porter), Perry Millward (Marcel), Rachel Hurd-Wood (Laura Richis), Ramón Pujol (Lucien).
  • Distribuidora: Paris Filmes
  • Ano: 2006
  • País: Alemanha, França, Espanha, EUA.

Trailer do filme Perfume: a História de um Assassino

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

"Somos Todos Um": o totalitarismo por trás do humanismo New Age

Somos Todos Um (One: The Movie, 2005) sob a aparência humanista do Espiritualismo, New Age e Auto-Conhecimento perpetua a liquidação do indivíduo lá onde pretende acabar com todos os dualismos.
“Se o sentido da vida existisse não estaríamos formulando essa pergunta”(T. Adorno)
“Às 6:45 A.M. em 13 de Abril de 2002 um pai de meia idade de três filhos do centro-oeste dos Estados Unidos desperta de um sono profundo com uma estranha idéia de fazer um filme independente explorando a questão do sentido da vida”. Assim inicia o documentário “Somos Todos Um”. Com o apoio da esposa Diane e a e a participação de alguns amigos, Ward Powers organizou um questionário com "as maiores perguntas relativas à vida, a todo tipo de pessoas" (perguntas como “para onde vamos quando morremos?”, Por que estamos aqui? etc.) com o grandioso objetivo de demonstrar a "unicidade da humanidade".

O que começou como brincadeira logo ganhou força, com a participação de líderes religiosos, arquitetos sociais, místicos, monges, ateus, nobres e filósofos, representando uma gama completa de tradições espirituais, num amálgama de opiniões que se fundiam às do povo nas ruas. Todos receberam 20 perguntas sobre questões profundas como o sentido da vida, o conceito de Deus, o motivo do sofrimento e a justificativa da guerra.

A questão que inicia e sustenta todo o documentário (qual o sentido da vida) lembra a fala de Theodor Adorno: “Se o sentido da vida existisse não estaríamos formulando essa pergunta”. Essa resposta de Adorno no seu livro Dialética Negativa é mais do que uma afirmação irônica ou retórica. Há um sério pressuposto crítico nessa afirmação: a imanência desse discurso que pretende se perguntar sobre o sentido da existência. Isto é, essa pergunta não é “desinteressada” ou neutra, mas parte de uma ideologia historicamente determinada. A pergunta já contém em si a resposta que procura.

A questão sobre o sentido da vida parte do pressuposto de todos os discursos totalizantes e totalitários: quem formula a questão ignora o sentido da vida. Sua ignorância decorre do fato de o emissor ser um simples indivíduo, sendo que a verdade lhe escapa, pois está no TODO. Desgraçadamente pelo fato do indivíduo ser uma pequena parte, nunca apreenderá a verdade pois ela está além do particular, está na totalidade. Portanto, essa questão reproduz as velhas dualidades da Teologia, matriz tanto da Religião quando da Ciência: parte/todo, particular/universal, matéria/espírito e assim por diante.

Se a Verdade está no Todo (Absoluto, Espírito, Infinito etc.) o indivíduo só pode ser ignorante por não conseguir apreender as conexões em torno dele. O documentário “Somos Todos Um” bate exaustivamente nessa mesma tecla: a experiência individual é a fonte dos erros e conflitos (medo, egoísmo, materialismo) que impedem a paz mundial e a revelação da Unidade. O pressuposto teológico é que essa insuficiência individual decorre ou pela imersão do espírito na matéria (pecado) ou pela ignorância das conexões do todo, somente esclarecidas por um discurso “técnico” (espiritualista ou científico).

O desprezo pelo indivíduo e o potencial perigosamente totalitário pode ser percebido em frases do documentário como essa: “Qual o sentido da vida? Você começa a lembrar e começa a ver...as nebulosas do pensamento, moléculas e átomos nascendo...essa teia dourada da vida. É silencioso, é eterno, é cintilante. Você e eu não passamos de uma tapeçaria de sonhos.” 

Nessas afirmações parece haver o esforço de construir um novo paradigma de união entre Religião e Ciência que acabaria com todos os dualismos (afinal, o discurso utiliza termos científicos como “nebulosas”, “moléculas” e “átomos” ao lado de termos místicos como “eterno”, “cintilante”), mas o problema é falso. Ciência e Religião secretamente já estão unidas há muito tempo a partir da mesma matriz teológica que liquida a experiência individual como fonte de erro, insuficiência ou pecado.
O momento de verdade

Mas, parafraseando Adorno, em toda ideologia há um momento de verdade. Essa angústia pelo sentido da vida é real. Se a pergunta é formulada é porque a percepção de um sentido desapareceu ou nunca existiu. Tal angústia é um sintoma da dor e do sofrimento que essa totalidade (social, histórica ou espiritual) impõe ao indivíduo, e não o contrário – pelo anseio por uma transcendência à totalidade.

O mal-estar do indivíduo nesse mundo é desprezado por esse discurso espiritualista (na verdade uma teologia secularizada) como medos que limitam o potencial espiritual. É a mensagem de todos os vídeos de auto-ajuda ou espiritualistas: liberte-se de si mesmo e venha para o TODO. Dessa forma é descrito como se inicia uma jornada espiritual pelo padre Thomas Keating, líder do Movimento Interdenominacional para revitalizar a prática contemplativa cristã:
“O início da jornada espiritual é o reconhecimento...não apenas a informação, mas a real convicção interior..de que há uma força superior, ou Deus. Ou, para facilitar ao máximo para todos...de que há um Outro, com "O" maiúsculo. Segundo passo: tentar se tornar o Outro. Ainda com "O" maiúsculo. E finalmente, o reconhecimento de que não há Outro. Você e o Outro são um só. Sempre foram. Sempre serão.Você simplesmente acha que não é.”

À dor e sofrimento concretos nesse mundo, esse discurso oferece a racionalização e o desprezo pela percepção individual: você com sua dor não existem! Venha para o Todo e esqueça seus problemas mesquinhos!

Porém esse todo não é algo tão rarefeito ou metafísico. Tem uma identidade bem concreta: é o meio corporativo por trás da Globalização política e financeira, os principais consumidores interessados por esses tipos de vídeo, para aplicar em estratégias motivacionais em grupos de dirigentes a vendas. Tal como Deepak Chopra (entrevistado em “Somos Todos Um”): de místico e filósofo a um dos principais palestrantes motivacionais em organizações nos EUA.

Somente uma Dialética ou Teologia negativas podem se contrapor a essa teologia secularizada: fazer justiça à verdade da dor e sofrimento do indivíduo ao conseguir inverter o sentido da transcendência – não é do todo para a parte. Ao contrário, é a carne, a parte, o singular que aspiram à transcendência. Ou, como conclui emblematicamente Adorno, “ O que há de doloroso na dialética é a dor em relação a este mundo, elevada ao âmbito do conceito"

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