quarta-feira, outubro 05, 2016

Deus é um homem que enlouqueceu em "On The Silver Globe"


Astronautas chegam a um planeta parecido com a Terra com a missão de povoá-lo e recriar a humanidade a partir do zero. Mas ao invés de se tornarem livres, repetem, numa versão caricata e sombria, as mesmas mazelas que deixaram na Terra: a religião, guerras santas, hierarquias, violência e o hedonismo das drogas alucinógenas. Muitos críticos consideram o filme polonês “On The Silver Globe" ("Na srebrnym globie"1988) um “Star Wars com LSD”. Censurado pelo regime comunista polonês em 1977, o diretor Andrej Zulawski conseguiu finalizá-lo em 1988, mesmo com a filmagem incompleta. Para solucionar o problema, o diretor transformou o filme em um “found footage”. Por isso, as duas horas e meia do filme são para espectadores curiosos e corajosos: Zulawski faz um mergulho caótico e lisérgico no psiquismo de astronautas que tinham tudo para serem livres. Mas apenas contaminaram aquele planeta com a “peste” que trazemos em cada um de nós.

Muito antes da atual onda dos filmes found footage (filmes cuja narrativa se baseiam em um suposto dado como perdido e encontrado) a partir de A Bruxa de Blair, em 1975 o diretor polonês Andrzej Zulawski iniciava a produção do sci fi On The Silver Globe (1988).

Metade da narrativa baseia-se em um vídeo diário de bordo de uma missão enviada a um planeta bastante parecido com a Terra. Depois de algum tempo, o vídeo é enviado de volta para a Terra, enquanto a tripulação ficou no planeta para povoá-lo.

Foram dois anos de produção, filmado em diversas locações como o litoral do Mar Báltico, Deserto de Gobi na Mongólia, nas montanhas do Cáucaso, entre outros locais. Quando 80% do roteiro estava produzido, o Ministério da Cultura polonês sumariamente suspendeu as gravações acreditando que o filme era uma alegoria da situação política no país naquele momento.

Foi ordenado a destruição do material: rolos de filmes, cenários, figurinos, roteiro, tudo! Atores e técnicos conseguiram esconder algum material das filmagens em suas casas, enquanto o diretor fugiu para a França carregando o filme incompleto.


Com o fim do regime comunista, em 1988 Zulawski teve a oportunidade de finalizar o filme. Mas alguns atores e membros da produção já tinham falecido. Com muitos gaps e sequências não concluídas, Zulawski teve uma ideia genial: tratar o próprio filme como um found footage, fazendo comentários nos espaços não conclusos da narrativa – em off, o diretor didaticamente explica como deveria ser a sequência, conseguindo fazer as conexões perdidas na estória.

Sangue, perdas e loucura


Adaptado da chamada “Trilogia Lunar” do escritor polonês Jerzy Zulawski (tio do diretor), o filme foi nomeado pela crítica como um “Star Wars com LSD”. Das quatro horas previstas, ficaram duas horas e meia de uma épica e alucinógena narração de como astronautas, ao tentar povoar um planeta desértico, criam uma nova ordem de rituais, costumes e uma religião que em tudo amplifica o que de pior foi deixado na Terra.

Na medida em que mais e mais crianças nascem e crescem (e, por algum motivo, a atmosfera do planeta faz as crianças crescerem muito mais rápido do que na Terra) as relações entre as pessoas ficam instáveis. Na verdade, confinadas no limiar entre a agressividade e o transe religioso e místico.

Acompanhar a narração de On The Silver Globe requer do espectador muita determinação e espírito de curiosidade – é um filme daqueles que está além da dualidade gostei/não gostei. Decididamente, é um filme estranho, repleto de sangue, perdas, loucura e constantes indagações filosóficas como fosse alguma coisa de Jean-Luc Godard ou Jodorowski elevada ao cubo.


O filme é um verdadeiro desafio imagético, com dezenas de cenas indeléveis, cujas composições visuais são intrigantes, surreais e perturbadoras – como, por exemplo, a sequência de dezenas de homens empalados em altas estacas à beira do mar ou da desolação das sequências filmadas no deserto de Gobi.

Mas On The Silver Globe também é um alerta: para quê  sairmos do nosso planeta para explorar e colonizar o Universo? No final, transformaremos outros mundos em projeções cada vez piores do que deixamos na Terra.

O Filme


Vamos tentar fazer uma compreensível sinopse que ajude aqueles leitores que se aventurem nas duas horas e meia do filme.

Um grupo de astronautas deixa a Terra para povoar novos mundos e encontrar a Liberdade e a Verdade. A nave acaba caindo em um planeta desconhecido com um ecossistema parecido com a Terra. Equipados com uma filmadora, gravam sua chegada ao litoral de um grande mar, ondem constroem uma vila.

Depois de muitos anos, o último remanescente da tripulação é Jerzy que testemunha o crescimento de uma nova sociedade baseada em contos míticos sobre uma expedição que veio da Terra e deu origem a tudo. Jerzy é nomeado como “O Ancião”: é considerado por todos uma espécie de Semi-Deus – tratam-no como o sábio demiurgo que tudo fez.


Antes de morrer, Jerzy consegue enviar o velho vídeo gravado pela sua tripulação para a Terra por meio de um foguete.

Outro astronauta chamado Mark é enviado para o planeta. Quando chega é recebido pelos padres e sacerdotes como um Messias de uma antiga profecia: aquele que irá livrar a aldeia dos “Sherns”, os antigos habitantes daquele planeta – eles parecem pássaros em formato humanoide, com vestimentas sujas e escuras.

Rapidamente Mark é contaminado pela atmosfera de delírio e paranoia e começa a acreditar ser mesmo um Deus. Organiza um exército para liderar a travessia do mar para chegar invadir a cidade dos Sherns e exterminá-los.

Mas aumenta a descrença entre alguns padres em relação ao status divino de Mark: começam a acreditar que ele, na verdade, foi expulso da Terra e jamais foi o Messias da profecia.

A “peste”


A primeira tese que o filme levanta é: não importa para onde o homem vá no Universo, trará consigo a “peste”: o niilismo, o vazio, ou, nos termos colocados pelo Existencialismo, o medo da liberdade. O fato de estar sozinho no Universo, de nada ter sentido e de que, por isso, é livre para fazer qualquer coisa é desesperador para o homem.

É esse pânico que os astronautas levam para aquele planeta. Lá encontram “selvagens” habitantes : os “sherns” e uma espécie de nômades indígenas. Em paz consigo mesmos, veem a chegada dos humanos que criam no planeta uma versão caricata das mazelas que deixaram na Terra: a religião e o messianismo.


De um lado do planeta ficou um grupo de astronautas que domina os indígenas fornecendo drogas alucinógenas. E do outro, o “Ancião” que cria uma religião messiânica que, tal como a Católica na época das navegações para a América, também pretende atravessar o mar e destruir os “sherns”.

De um lado o hedonismo alucinógeno. Do outro, o niilismo das guerras santas e dos massacres em nome de Deus.

Dissidentes gnósticos


On The Silver Globe mostra como uma experiência de viagens interplanetárias em busca da liberdade (recomeçar tudo do zero em um novo planeta) resulta em fracasso: como defendia o existencialismo sartreano, o homem tem medo da liberdade. No filme, a visão das grandes planícies desérticas, do grande mar e do imenso litoral incute nos astronautas pânico ao invés da sensação de liberdade. Por isso, acabam recriando os antigos grilhões que os prendiam na Terra – deuses, hierarquias, guerras e o vazio hedonista.


Mas a religião produz seus dissidentes. É interessante como o filme retrata o questionamento gnóstico do messias/Deus (Mark) que começa a crescer entre os sacerdotes e padres. Na verdade, Mark é um demiurgo decaído. Foi expulso da Terra e não passa de mais um prisioneiro naquele planeta distante. Algo parecido com o mito gnóstico do Demiurgo: um anjo que decaiu da plenitude e que pretende recriá-la na esfera material, resultando numa trágica prisão que encarcera o homem e o próprio Demiurgo.

Em muitos aspectos On The Silver Globe lembra o filme Prometheus de Ridley Scott: mostra como as viagens interplanetárias podem ser perigosas, não apenas por encontrar monstros ou predadores. Mas por que lá fora, no vazio do Universo indo em busca de Deus, o homem acaba encontrando a si mesmo – ou outros seres que não são deuses, mas criaturas tão perdidas quanto o homem, como retrata Prometheus.


Ficha Técnica


Título: On The Silver Globe (Na srebrnym globie)
Diretor: Andrzej Zulawski
Roteiro:  Andrzej Zulawski baseado no livro homônio de Jerzy Zulawski
Elenco:  Andrzej Seweryn, Jerzy Trela, Grazyna Dylag, Waldemar Kowanacki, Iwona Bielska
Produção: Zespól Filmowy Kadr
Distribuição: Ostalgica Film
Ano: 1977 - 1988
País: Polônia

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